segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

A arribada do "Senhor na Cruz" 2ª parte

O mar era cada vez mais, empurrado por rajadas de vento que pareciam chegar de várias direcções.
A velha candeia presa na ponta do mastro tinha-se partido quando uma vaga mais forte sacudiu a masseira, como de uma casca de noz se tratasse.
Apesar da madrugada ir alta e pouco faltar para nascer o dia, o céu estava agora ainda mais escuro e tapado de nuvens, que deixavam cair as primeiras pingas.
Em breve chovia a cântaros ofuscando a vista dos homens que não conseguiam distinguir nada à sua frente. Relâmpagos cruzavam o céu em todas as direcções e os trovões eram ensurdecedores.
- Daniel, pega na cunha e escoa-me essa água. Ó Senhora da Bonança, valei-nos nesta aflição. Ave-maria cheia de graça… – e continuou para si a oração com a devoção que só o perigo de vida dá significado.
Não conseguia distinguir as feições dos seus homens apesar de estarem a um ou dois metros dele, mas adivinhava-lhes o pânico e o desespero, face a um naufrágio mais que provável.

O dia amanheceu sem que a tempestade desse mostras de amainar. Talvez o vento não fosse tão forte, não era de certeza, mas o mar embalava em ondas que ora os engolia, ora os suspendia na sua crista. Viam-se os clarões difusos de relâmpagos mas nem se ouviam os trovões, sinal que a trovoada estava muito longe e que para já não oferecia perigo.
O vento de sudoeste obrigava-os a manter o barco com a proa para esse rumo e não mais conseguiram avistar terra, tal era a cortina que a chuva formava. O rapaz ainda não tinha parado de escoar água e o Gaspar tinha-se lhe juntado com outra cunha. Mesmo assim, no fundo do barco a água não baixava e teimava em manter uma mão-travessa onde os baús com o comer e outros pertences da companha flutuavam.
O mestre tinha levantado o leme e pegara num dos remos para que os outros folgassem um pouco.
A meio do dia apenas tinham conseguido roer uns bocados de broa encharcada e beber uns golos de vinho que cada um tinha trazido nos seus baús.
Molhados até aos ossos, apesar dos oleados que traziam vestidos, corpos doridos de mais de quinze horas sentados a remar e a lutar contra o mar, a chuva e o vento.

- Já nem sinto os braços – queixa-se o Rodrigo – só me apetecia fumar um cigarro.
- Eu pego no remo, Tio Rodrigo. – Responde prontamente o Daniel que, de cócoras continuava a trabalhar com a cunha – Posso ir para o remo, tio Tone?
- Vai lá, para o Rodrigo descansar um pouco. E tu Areosa?
- Vamos andando, vamos andando, mas um cigarrinho também me apetecia. Raio de tempo…
- A seguir descansas tu. Quem diria que vinha um andaço destes. Se soubesse, nem da cama tinha saído.
- O mar parece menos e o vento está a cair. Só a chuva é que não pára.
- Tende calma, o pior já passou e a Senhora da Bonança não nos abandonou. Ah, só queria saber onde estamos. Vamos esperar mais um bocado e se o mar acalmar aproveitamos para levantar a vela e navegar para leste até vermos terra. Se formos sempre para leste temos de encontrar terra!
Uma hora depois, desfraldaram a vela e o Tone retomou o seu lugar habitual à popa da masseira. Agora a agulha apontava para leste e todos se afadigavam a perscrutar o horizonte com ansiedade. Já a tarde ia passada quando o Areosa, de súbito, exclama:
- Cheira-me a terra. Já não estamos longe.
- Ó homem de Deus, como é que tu sentes o cheiro?
- Sinto, pronto, sinto…
Pouco depois vislumbraram ainda muito longe as cumeadas de vários montes, que procuravam identificar.
- Aquilo é Espanha e ali parece Santa Tecla.
- Tens razão, aquele é o monte de Santa Tecla, – confirma o tio Tone – Deus seja louvado, estamos perto de casa e havemos de lá chegar sãos e salvos.
- Que dirão de nós? Se calhar julgam-nos perdidos.
- Ai julgam, julgam! Deve haver já muito choro no portinho.
- E os outros barcos, tio Tone? Também passariam aflições? – pergunta o Daniel que continua à proa da masseira.
- Não sei meu rapaz. Oxalá não tenha havido nenhuma desgraça… Talvez tenham tido tempo de se recolher. Só nós é que estávamos tão a sul e a tempestade apanhou-nos de repente. Os outros estavam mais para oeste e muitos tinham vindo para o norte, mais ou menos onde nós estamos agora.

Sem comentários: