sábado, 28 de novembro de 2009

Nos trilhos do contrabando II

O Alípio e o Tone da Águas estiveram presos duas semanas em Melgaço, depois da guarnição da guarda-fiscal ter passado pela aldeia e revirado tudo sem nada encontrar que incriminasse quem quer que fosse.
Estes dois foram levados como podiam ter sido outros, que todos sabiam contrabandistas, se contrabandista se pode chamar aos passadores de mercadorias para lá e para cá e que apenas ganhavam a jorna. Os verdadeiros contrabandistas eram outros que, tal como hoje, não davam a cara e raramente se aproximavam da raia.
Pelo meio, viviam os guardas, quase todos recebiam uma parte dos ganhos para fazerem vista grossa e para os avisarem quando havia perigo.
De vez em quando aparecia um ou outro guarda que combatia ferozmente o estado das coisas, mas que invariavelmente acabava por ser “amaciado”. No caso de ser um graduado era mais difícil, geralmente tinham de esperar que fosse transferido para outro lado.
O país estava em efervescência, as eleições presidenciais tinham sido disputadas pelo Humberto Delgado e a vitória do novo delfim de Salazar, o Almirante Américo Thomaz, tinha o gosto e o cheiro acre da fraude eleitoral. A repressão policial não se fez esperar e os oposicionistas foram implacavelmente perseguidos.
Na cadeia, o Alípio levou algumas bastonadas mas aguentou firme, repetiu sempre a mesma cantiga, “trabalho no campo de sol a sol, não tenho tempo para contrabandos”, “isso é nas outras aldeias, na minha aldeia não há disso”, “não sei de nada, de noite estou a dormir”. O tenente quando viu que nada lhes conseguia tirar e que apenas tinha entre mãos peixe miúdo, libertou-os com a ameaça dos maiores castigos e tormentos, se lhes pusesse outra vez a vista em cima.

Ao chegarem à aldeia um profundo silencio os acolheu. Estavam todos reunidos em frente à igreja e o Alípio depois de abraçar a mulher, os filhos e a irmã, foi sucessivamente abraçado por todos os presentes.
A certa altura interrogou-se “será que o Judas também me veio beijar”, mas afastou esse pensamento, pois agora estava quase convencido que apenas tivera muito azar, o mais certo era terem tropeçado neles quando procuravam outros contrabandistas mais importantes.
Durante meses a rede de passadores da aldeia esteve inactiva, o tenente volta e meia reaparecia e redobrava as ameaças, na expectativa de obter informações. Soube-se que tinham matado dois homens para os lados de Castro Laboreiro e os carabineiros espanhóis tinham feito uma rusga na qual prenderam mais de uma dúzia de mulas carregadas com ovos, café em grão e barras de sabão.
Murmurava-se que o tenente tinha forçado os espanhóis a agir. Seria verdade? Era o que constava e o Alípio que tinha ido a Lamas de Mouro comprar semente para a próxima primavera, ouvira esta versão na venda do Grémio.
O tempo passava devagar e a tensão subia lentamente.
Nunca a pressão da Guarda tinha sido tão intensa, nem a incerteza no futuro tinha sido tão grande. Falava-se agora em ir trabalhar para França, já tinham ido alguns, sem papéis e sem haveres, ao Deus dará. Parte deles tinham sido apanhados e devolvidos pelos espanhóis, um grupo já estava a passar os Pirenéus, que diziam ser maiores que o Gerês, maiores que a Serra da Estrela.

Todos matutavam na forma de apartar o tenente do caminho e vingar as humilhações sofridas ao longo dos últimos meses. Um dia o Alípio foi a Melgaço e no posto da Guarda-fiscal pediu para falar com o tenente, mas informaram-no que não estava, tinha ido em serviço a Monção, só devia voltar passados dois ou três dias. Montou o cavalo e regressou a tempo de ajudar a Olímpia a lavrar o”Beirado de Baixo”, o terreno onde, ano após ano semeavam batatas, as melhores das redondezas.
Na semana seguinte voltou a procurar o comandante do posto e, depois de esperar mais de duas horas, fizeram-no entrar no gabinete onde o tenente o esperava.
- Então, que queres?
- Lembra-se de mim, senhor tenente?
- Achas que me ia esquecer de um malandro como tu? Diz o que queres, que não tenho a tua vida.
- O senhor não quer informações sobre os contrabandistas?
- Hum… E tu o que é que sabes? Bem me parecia que sabias mais do que dizias! Fala!
- Eu não sei nada, venho apenas dar-lhe um recado.
- Um recado? De quem?
- Sei lá, não o conheço.
- O quê? Estás a gozar comigo?
- Deus me livre, senhor tenente. Eu explico, na semana passada apareceu um homem em Lamas de Mouro, lá na venda e propôs-me vir aqui dar-lhe um recado. Pediu-me para lhe dizer que os contrabandistas que você persegue o tinham expulsado sem motivo e ele queria vingar-se. Por isso está disposto a falar, a dizer-lhe tudo o que sabe.
- Ai sim? E quem é esse tipo?
- Já lhe disse que não sei, mas ouvi dizer na venda que era de Caminha ou Seixas, não sei bem.
- Então diz lá a esse tipo que pode vir aqui.
- Não!
- Não? – Admira-se o tenente.
- Se ele quisesse vir aqui não me tinha dado cem mil reis pelo frete.
- Então que raio quer ele? Não sabe que eu é que sou o comandante…
- Sabe sim, senhor tenente, mas é que ele tem medo dos seus companheiros, quer dizer dos seus antigos companheiros. Ele disse-me que espera por si no próximo domingo na aldeia da Gave ao pé do cruzeiro, às dez da noite. Se aparecer só e me prometer que não lhe faz mal e o deixa ir em paz, ele lá estará à sua espera. De contrário não há acordo.
- Então o patife ainda dá ordens?
- Isso não sei, não é nada comigo. Então que lhe digo?
- Diz-lhe que estarei lá, mas à mínima suspeita, abato-o logo com um tiro.
- Esteja tranquilo senhor tenente, ele não me pareceu homem de violências.
(continua)

domingo, 15 de novembro de 2009

Nos trilhos do contrabando I

Devido ao tamanho este conto teve de ser dividido em várias partes que procurarei publicar com regularidade.
A vontade de o escrever chegou depois de ter passado um fim de semana nas terras altas da Peneda e de ter convivido com as belas paisagens, as aldeias, os garranos, os trilhos e as gentes que tão bem sabem receber quem os visita.

Bebeu o vinho que restava na tigela, resmungou uma despedida para o Félix, o dono da taberna e encaminhou-se para a saída. Parou junto à mesa onde se jogava à sueca, enrolou um cigarro, apreciou algumas vazas, trocou um olhar com o Carlos, um olhar que pretendia ser casual.

O estabelecimento era grande, de um lado a taberna, os pipos alinhados na parede do fundo, o balcão forrado a zinco onde os clientes se encostavam Destacava-se o pequeno armário envidraçado onde habitualmente tomavam lugar os pratos com as iscas, as pataniscas ou postas de peixe frito.

Do outro lado ficava a mercearia, com as tulhas em madeira, os fardos e as seiras, o medidor do azeite, a balança, os livros do fiado por baixo da gaveta do dinheiro. Do lado da taberna duas grandes mesas com bancos corridos, pouso dos jogadores de cartas e dominó. Eram quase sempre os mesmos, a aldeia era pequena e os afazeres do campo não deixavam muito tempo livre. Nas épocas de maior labor como nas lavradas, na poda da vinha ou nas colheitas, só mesmo ao domingo é que se juntava mais gente, vindo até das aldeias em redor provar a pinga e os petiscos do Félix.

Saiu para o caminho, piscou os olhos por causa do sol, puxou o boné para baixo, encaminhou-se para casa, já fora da aldeia. Na última volta do caminho, onde o velho castanheiro do Tio Rapão espalhava sombra, sentou-se sobre o estrado de um carro de bois ali desatrelado. Com a navalha entreteve-se a aparar um pauzinho, fazendo tempo para o encontro que se adivinhava.

O Carlos chegou afogueado, tirou o velho chapéu de feltro, limpou o suor da testa à manga da camisa.

- Vamos ali para trás – diz-lhe o Alípio – Espero que não tenhas dado nas vistas…

- Pensas que nasci ontem?

Passaram a cancela de madeira tosca e foram-se abrigar debaixo da vinha frondosa, onde já despontavam pequenos cachos de uvas.

- Então? – Questiona o Carlos.

- Então, esse filho da puta do tenente não ia adivinhar sozinho por que banda íamos passar. Se soubesse quem foi o malandro que o avisou, já lhe tinha dado um tiro.

- Ó homem, assim ainda te desgraças…

- Pelo menos ficavam todos a saber que não admito traidores. Sim, traidores, porque isto foi obra de um dos nossos.

- Podia não ser, podiam ser os de Cochos que falaram. Sabes que eu não me fio desses galegos! Até podiam ter sido os de Fiães. Sei lá!

- Não acredito, isto é obra de alguém cá da terra. Se Deus quiser hei-de encontrar o bandido e logo ficará sem vontade de ir bufar à Guarda. Malditos! – Vocifera o Alípio – Fizeram-nos perder toda a carga e ainda perdemos a mula do Zé Albino que caiu à mina. Vais a Fiães e deixa-te ficar por lá até ao fim da tarde. Conversa como se nada tivesse acontecido. Encontramo-nos aqui, à noite, quando se puser a lua, mais o Tone das Águas e o Barbeitas. Já sabes, nem uma palavra a ninguém sobre a desgraça da noite passada.

Como em muitas aldeias da raia galega, o contrabando era a forma de aliviar a miséria da vida dependente da agricultura. As terras eram pobres, o clima agreste, de verão uma torreira de sol, no inverno tudo branco de neve ou queimado pela geada traiçoeira. Os mais novos tinham abalado para Lisboa e alguns até para o Brasil, mas aqueles que tinham mulher e filhos, por aqui se aguentavam, tirando a custo o pouco sustento que a terra consentia dar.

Montes de agrestes pendentes, salpicadas de áspero granito, onde as cabras se empoleiram, onde os lobos espreitam, os garranos pastam em manadas ariscas, onde o milhafre e a águia vigiam das alturas, assim era aquela terra.

Pequenos pastos de erva amarelada mostravam que a seca ia prolongada, bom para o vinho, mal para o milho que tardava a engrossar a espiga.

Foi direito à loja onde guardavam as ferramentas, pegou na enxada, pô-la ao ombro e juntou-se à Olímpia e à Maria Rita, respectivamente sua mulher e sua irmã, que com eles vivia. Ambas manejavam a enxada entre as fileiras de milho, desalojando com golpes certeiros o gramão, a junça, os saramagos e outras ervas bravas.

Em casa os candeeiros já tinham sido apagados há muito, todos descansavam menos o Alípio, que fumava um cigarro sob a luz baça da lua, filtrada pela latada de vinha que cobria as escadas de pedra. Pacientemente esperava; esperava que a lua desaparecesse, esperava por novidades que os seus homens lhe haviam de trazer, esperava por saber quem era o malandro que os tramara. Podia desconfiar de todos, mas daí a ter certezas ía um passo muito grande. Não lhe saía da cabeça que quem os atraiçoara uma vez, podia muito bem voltar a atraiçoá-los outra e outra vez.

O sino da igreja badalou duas vezes, eram dez e meia, a lua já se aninhava por detrás dos montes do Soajo. No ponto de encontro aguardava o Barbeitas, um homenzarrão com físico de gladiador romano, que adornava a feia carantonha com uma barba espessa.

- Ainda não chegaram os outros? – Pergunta o Alípio, só para fazer conversa.

- Devem estar a chegar… Parece que oiço barulho…

- Também eu, devem ser eles.

Chegaram, sentaram-se no chão e o Carlos começou a contar as novidades.

- Não se falava noutra coisa em Fiães. Todos comentavam a apreensão que o novo tenente da Guarda de Melgaço fizera a noite passada. Mas eles pensam que a carga vinha por conta dos Cunhas, a mim até me perguntaram se tinha visto algum deles por aqui.

- Por aqui?

- Sim, parece que andam fugidos. Logo de manhã foram às casas deles, revistaram tudo e não os encontraram. Segundo dizem, foi esse tenente que comandou a rusga e chegou a dar umas chicotadas ao filho de um deles, um miúdo, para ver se o rapaz falava. Ainda troquei umas palavras às escondidas com o Mendes, disse-me que este tipo veio da Régua e é dos que não come, nem deixa comer. Um animal da pior espécie!

- Mas afinal soubeste como eles deram connosco? Quem é que bufou?

- Não pude falar à vontade, mas o Mendes garantiu-me que ficaram surpreendidos ao darem connosco. O tenente tinha-lhes dito que iam apanhar uma carga de café que ia para lá. Ah… ele disse-me para te avisar, que temos de estar quietos umas semanas até isto sossegar e que não tardarão a fazer uma ronda por aqui.

- Então é melhor tirarmos do teu palheiro o que sobrou e mudar para outro lado, fora da aldeia, senão ainda nos encontram a mercadoria.

(continua)