sábado, 7 de março de 2009

Ilha de solidão

Pareciam todos iguais, mas não eram! Quadradinhos maiores e mais pequenos. Os maiores por cima, os mais pequenos na base. Estreita, quase fina para um vidro tão grosso. Nem se via a luz de lado a lado, apenas uma claridade baça quando estava vazio. Nos últimos tempos dá-me para isso… Concentrei-me nos quadrados que distorciam a imagem reflectida. Passei-lhe o polegar para os aclarar. Em vão, tudo ficou na mesma, talvez a imagem esteja mais pequena. Já tinha reparado nisso! Quanto mais bebo mais pequena ficava a imagem. Não… não pode ser, o copo é outro… Não pode ser o mesmo, o do costume.
Rodo-o entre os dedos, conto doze quadradinhos. Doze ou catorze? Volto a contar, são doze, desvio-o sobre o balcão forrado a madeira, manchada do tinto e da lixívia da Tia Clarisse. Baixo a cabeça, rodo mais um pouco o copo, consigo ver a entrada da loja, se rodar mais um bocadinho até vejo os pipos. Os primeiros a contarem da porta, com o vinho do sul. Inclino-me no banco, para ver através do quadradinho a seguir, vejo a mesa dos que jogam às cartas, à sueca, são sempre os mesmos. Bebo de um trago o que resta no copo. Levanto a mão, faço sinal ao Domingos, ele já sabe… e sem mais, inclina a caneca branca de riscas azuis sobre o copo… o dos quadradinhos.
Agora não vejo nada, o meu mundo está às escuras, como a lua quando é nova. Dura pouco, depois do primeiro gole já vejo pelos quadradinhos de cima, são os maiores, acho que já disse. Mas gosto também dos outros, os da base, fazem uma imagem mais bonita. Mais pequena, mais bonita. Os da mesa ao lado discutem por causa da manilha de copas, fazem barulho por uma dúzia. Raios os partam… É a conversa de sempre, devias ter vindo a trunfo, dei-te sinal para puxares copas, enfim, passam o tempo, como eu.
Ponho as moedas sobre o balcão, parecem-me todas iguais. Não! Há umas mais pequenas e outras maiores…como os quadradinhos. Empurro-as todas em direcção ao Domingos, que separa umas tantas e as deixa cair na gaveta. A que fica com uma parte das minhas contas. O resto entrego à Laurinda… Já deve estar à espera para a ceia. Um prato de caldo, um naco de broa, se houver. Volto a olhar para o copo, ao menos este não me consome o juízo. Posso mexer-lhe, rodá-lo, que não reclama. Levo-o à boca, o vinho enche-me a boca, inunda-me a garganta, fresco, um pouco amargo, a saber a uvas americanas. É melhor que o da semana passada, parecia vinagre, devia ter sido feito com uvas do demónio.
Tenho de ir, levanto-me, dou um olhar de despedida ao meu copo… anda tudo à roda… deixo passar o enjoo. Quero ir para a porta mas as pernas demoram a obedecer. Acho que vou um bocado adornado, faz-me falta o ar fresco do fim da tarde. Os da sueca devem estar a falar de mim, já é costume. Já bebeu de mais, vai assim, vai assado. Merda para eles, que não lhes pedi nada. Aceno uma despedida ao Domingos, componho a boina e a samarra, na rua já faz frio trazido pela brisa do norte. De madrugada, quando arrancarmos para as fanecas, até deve cortar… é a vida.