quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

A arribada do "Senhor na Cruz" 3ª parte

Em breve a escuridão voltou a rodeá-los. Com a noite, o vento amainou, a vela folgou e não houve outro remédio que colhê-la, dada a sua inutilidade.
Do fundo do baú do Gaspar saíram umas pataniscas e umas batatas cozidas que foram repartidas entre todos, pobre manjar que não aplacou a fome que agora sentiam, passada a angustia que a tempestade lhes causara. Dos restantes baús nada se aproveitava pois a água salgada tudo estragara.
Voltaram à faina dos remos, sempre para sudeste, cada vez mais perto de terra e mais perto do porto que os viu partir. Dois dias perdidos, um susto que nunca mais esqueceriam, a preocupação e a dor que certamente causaram às suas famílias, raio de vida.
Silenciosos, os homens remavam e matutavam nas agruras da vida do mar, a incerteza do ganho, o risco de vida.
À volta do “Senhor na Cruz” o mar já não era o do dia anterior. Apesar de ainda haver alguma ondulação, a ausência do vento tinha-lhe dado um tom de prata velha, reflectindo à parca luz do minguante. O silencio que só no mar é possível, apenas quebrado pelo chapinhar dos remos e o ranger de alguma tábua.

- Parem de remar – ordena o mestre, levantando-se para melhor observar as águas à volta do barco.
- Que se passa tio Tone?
- Temos sardinha à nossa volta. Rápido, preparem a rede, vamos dar um lance. Areosa, já sabes, tu continuas aos remos. Rodrigo, podes largar!
A rede castanha de fio de algodão, encascada há meia dúzia de dias, começou a sair borda fora, arrastando a cortiçada que havia de a manter à superfície. Com o leme virado a estibordo, a masseira ia largado lentamente a rede sardinheira em arco ligeiro. Agora distinguia-se perfeitamente o cardume perto da superfície, que fazia agitar as águas, como se fervessem. Mal tinham acabado de largar toda a rede, logo o mestre ordenou que a recolhessem sem demora.
- Já? Ainda agora largamos, tio Tone.
- Vamos alar que a rede já está pesada. Força aí na polé, Rodrigo.
Lentamente o pescador retira da água, braça a braça, unindo a cortiçada aos pandulhos, deixando cair a rede serpenteante no fundo da masseira. Não tardou a brilhar no escuro o dorso prateado das sardinhas emalhadas.
- Gaspar, ajuda-o que a rede está carregada. Com jeito para não melar a sardinha. Temos de ir desmalhar a terra…
Cada vez mais sardinha subia a bordo presa àquela armadilha, agonizando em estertores inúteis, logo coberta por outras braçadas de rede e mais sardinha agonizante.
Quando acabaram, o barco tinha apenas um palmo de borda fora de água, tal a carga que recolhera e a aurora já se anunciava.
- Vamos rapazes, hoje a Senhora da Bonança está connosco e também tem direito a quinhão, não seja eu homem de palavra. Já vejo a luz da Ínsua, daqui a nada estamos no portinho.

As noites eram curtas, faltavam duas semanas para o S. João, já era dia alto quando a masseira carregada passou ao largo da Ponta das Medas e entrou no portinho, esgotando as poucas forças que restavam àqueles esforçados remadores.
Um silencio respeitoso fez-se em terra e foram muitos os que se benzeram ao verem aquela embarcação e a companha que já tinham dado como perdida.
Quando o fundo tocou suavemente na areia, foram muitas as mãos que os ajudaram a saltar em terra. O silêncio quebrou-se com o choro da mulher do Gaspar que se lhe pendurou ao pescoço. Aquele pobre ainda tentou resistir, mas a comoção foi mais forte e duas grossas lágrimas rolaram preguiçosamente pela cara abaixo, marcando um trilho pela barba de três ou quatro dias.
- Ah Tone, que te julgamos perdido. Por onde andaste? Onde te abrigaste? – Pergunta o Manuel Catalão, dando uma forte palmada de amizade nas costas do Tone da Vista Alegre.
- Não me abriguei tio Manel. Mantivemo-nos ao largo e fomos arribados para Espanha, lá para o norte de La Guardia.
- Pois olha que aqui já ninguém dava nada por vós, as vossas mulheres puseram luto e até mandaram rezar missa.
- Ainda não foi desta e com a graça da Senhora da Bonança regressamos vivos e com a rede cheia de sardinha. Vamos começar a desmalhar que já se faz tarde e é preciso levá-la para a venda. Vamos a isso rapazes!
FIM

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