quarta-feira, 23 de julho de 2008

Nas Azenhas de Vilar de Mouros


Estávamos em Julho de 1976 e as aulas já tinham terminado. Para juntar algum dinheiro, a malta costumava ir à ribeira apanhar percebes, mexilhões, musgo e sargaço para vender.
Era um biscate duro, pois andávamos dentro de água horas seguidas a carregar sacos pesados, a escorrer água para tirar o sargaço e levá-lo praia acima até às dunas, para ser estendido e seco. Trinta ou quarenta quilos ao sair da água, que depois de seco ficava nada, um ou dois quilos, no máximo. Uma miséria!
Os percebes eram vendidos nos cafés entre os trinta e quarenta escudos para de seguida serem postos à venda por oitenta ou cem escudos, outra roubalheira, pois nós é que lixávamos as mãos, nós é que ficávamos dentro de água enregelados, pois naquele tempo não havia fatos de neoprene para ninguém. Isso foi uma modernice que apareceu muito depois!
Estávamos divididos por equipas de três ou quatro elementos, pois era mais fácil assim do que individualmente e os meus parceiros eram o Nelson e o Zé da Linha, ambos da Laje. Trabalhávamos habitualmente entre Penedim e o Quintino, apenas íamos a Afife para os percebes.
Ainda hoje acho que fazíamos uma boa equipa, pois alem de nos entendermos bem, tínhamos genica suficiente para deixar os outros a bufar de raiva. Éramos os primeiros a chegar e os últimos a sair da água. Também era verdade que saíamos mais mortos que vivos de tão demolhados estarmos.
Isto vem a propósito de ganharmos algum dinheiro para as nossas “coboiadas” pois os nossos pais não eram ricos e o dinheiro era espremido.
Nesse ano de 1976 decidimos ir acampar uma semana para as Azenhas em Vilar de Mouros e por isso precisávamos de “massa”, apesar de fazermos os abastecimentos principais por descarga directa das despensas das nossas casas.
Depois de algumas hesitações, com desistências à mistura, partimos cinco à aventura. Eu, o Nelson, o Mac, o Tone do Talho e o João. O Nelson já o apresentei, o Mac (quase a minha alma gémea) que é filho da D. Amélia professora, o Tone filho do Sr. Ernesto do Talho e o João que era de Lisboa e que vinha passar férias a Âncora todos os anos.
Ele ainda é parente da mulher do meu primo Fernando Meira e foi assim que nos conhecemos e ficamos amigos.
Já não me lembro bem mas parece-me que eu e o Mac fomos de bicicleta e os outros apanharam boleia com do irmão do Tone, o Ernesto, que foi levar as tralhas no seu reluzente Fiat 128, que ainda possui.
Tínhamos três tendas canadianas que eram ocupadas pelo Nelson e por mim, noutra ficava o Mac e o Tone e na última ficava o João, que adorava o estatuto de ter uma tenda só para ele. Pudera, ninguém queria ficar com ele pois ressonava muito e cheirava a chulé que empestava. Deixem-me dizer que nenhum de nós era muito melhor, mas o João era o que tinha pior fama.
Em 1976 as Azenhas eram um local muito mais recatado que hoje, os carros só com muita dificuldade lá chegavam e praticamente só para lá ia banhar-se a malta da zona, nada de forasteiros.
Nós éramos uma excepção, mas éramos bem aceites pela “fauna” local, pois conhecíamos a malta toda que estudava no Externato de Santa Rita em Caminha ou no Liceu em Viana. E além disso já tínhamos acampado lá nos anos anteriores, pelo que já éramos quase da casa!
Instalámos as tendas no terreno do fundo, que hoje está cheio de silvas e nessa altura era todo relvado, as tendas em linha, com o “rabo” virado ao rio; ao lado da nossa tenda havia (e ainda lá está) um enorme eucalipto, no qual penduramos um pequeno espelho para as nossas vaidades.
Um dia foi preciso fazer arroz (de feijão) para acompanhar umas bifanas que o Tone trouxera e fui o encarregado de preparar o tal arroz. Depois de muitas invenções, o arroz estava como o cimento e só eu e o Mac, por solidariedade, o conseguimos comer. Os outros acabaram por embrulhar as bifanas no pão que sempre era mais macio. Nunca mais me pediram para fazer mais nenhum cozinhado, apenas me cabiam tarefas menores como descascar batatas, ir buscar água ou lavar a louça.
Durante o dia preguiçávamos ali pelas azenhas entre o areal, as tendas e a água, fazíamos (algum) sucesso entre as raparigas (ah, ah) e ao anoitecer íamos até à aldeia por um estreito carreiro entre os campos de milho e o rio Coura.
Hoje passa lá um caminho calcetado e no espaço onde se cultivava o milho realiza-se o Festival de Vilar de Mouros. Mas naquele tempo o caminho era estreito e só por lá se circulava a pé ou de bicicleta com as devidas cautelas.
Na aldeia íamos sempre para um estabelecimento do qual não me recordo o nome e onde também nos abastecíamos, pois no rés-do-chão era a mercearia e o café no andar superior.
Decorria um acontecimento que nos empolgava e nos prendia a atenção durante horas ao televisor, fosse no único canal português, quer na “espanhola”, canal com melhor captação, muito mais nítido e com melhor informação.
Eram os Jogos Olímpicos de 76 em Montreal no Canadá e na ginástica, Nadia Comaneci dava cartas e arrasava a concorrência. Todos gostávamos destas emissões, particularmente o João que era um verdadeiro fanático e que não nos deixava arredar pé enquanto na televisão desse alguma coisa sobre isso. Acho que a partir daí, fiquei um bocado enjoado com os jogos olímpicos…
Bebíamos uns finos, roíam-se uns amendoins e jogava-se às cartas entre uma e outra olhadela à televisão, até a proprietária do café nos “chutar” porta fora, já depois da meia-noite. E lá vínhamos nós para as azenhas, primeiro até à ponte medieval que, permitam-me um parêntesis, precisa urgentemente de ser consolidada, senão qualquer dia passa a ser a ex-ponte medieval e iremos ver uma quantidade de hipócritas a carpir a sua morte.
Mas, dizia eu, que atravessávamos a ponte e virávamos à esquerda pelo tal “carreiro” de que vos falei, todos em fila indiana, o primeiro com um foco e outro, lá para o meio, com outro foco.
Naquele tempo não haviam focos com “leds”, nem pilhas alcalinas, nem focos recarregáveis e muito menos lojas dos chineses para comprar essas “merdas”.
Por isso a luz era escassa e muito poupada. Cedo reparamos que o João, que todos sabíamos medricas, queria ir sempre entalado entre os dois focos e nunca ficava para trás, por motivo algum.
Uma bela noite combinamos pregar-lhe uma partida para lhe meter um “cagaço”. Era uma coisa simples, quando à noite estivéssemos de regresso às tendas, o da frente que habitualmente era o Nelson, apagava a lanterna e todos fugíamos para o meio do milho às escuras e a berrar que nem desalmados.
O nosso amigo sentou-se no chão a tremer e só não chorou porque o medo lhe gelou o sangue e as lágrimas. Quando regressamos ao seu convívio, a rir, todos prazenteiros, o João “pintou-nos a manta” de tão zangado que estava.
Mas esse problema de ser medricas ainda havia de causar outra “cena”, como se diz agora, pois uma noite, às tantas da madrugada, já estávamos a dormir, apareceram uns gajos com várias motorizadas a fazer um cagaçal tremendo, com os motores bem acelerados ali perto das tendas.
Na verdade ninguém se aproximou de nós, nem nos provocou, mas uns rapazes enfiados às escuras dentro de umas frágeis tendas num local recôndito, por muito valentes que sejam ou queiram mostrar que são, acabam sempre por se borrar todos de susto.
Foi o que nos aconteceu; eu e o Nelson tínhamos dentro da tenda uma espingarda de caça submarina (acho que era do Mac) e esticamos os elásticos, por causa das moscas. Na tenda seguinte o Tone e o Mac chamaram baixinho por nós e estabelecemos algum diálogo de vizinhos. Da tenda do João é que nem pio.
A certa altura os gajos lá se foram embora e após algum tempo de expectativa e de sossego, decidimos sair das tendas, até porque o João continuava sem dar acordo de si.
Verificamos com espanto que a tenda dele estava aberta e que ele tinha desaparecido. Foi em vão que o chamamos e como o sono já tinha ido, fizemos uma fogueira à volta da qual nos sentamos.
Muito tempo depois, pelo menos assim nos pareceu, surge o João do meio de um campo de milho que havia na banda de cima do nosso acampamento. Vinha com um ar tranquilo e explicou-nos que tinha ido dar uma volta. É preciso ter lata! Então tinha ido dar uma volta, heim? O gajo tinha-se pirado e certamente ficou encolhido entre espigas e pondões, até ter a certeza que o sobressalto tinha partido para não mais voltar. E ainda por cima vinha tentar meter-nos os dedos nos olhos!
É claro que ninguém mais voltou para a cama, até porque o dia já nascia e havia muito que vadiar.
Um dia assistimos à chegada de mais uns campistas, vários casais com várias tendas, já não me lembro, três ou quatro, que as montaram um pouco mais para o interior do terreno. Ali junto ao rio, só nós! Traziam um belo cão Pastor Alemão que rapidamente acamaradou connosco e logo passou a cirandar por entre as tendas sem que ninguém se sentisse incomodado.
O problema foi quando o descobrimos a mastigar regaladamente um dos frangos que iria ser o nosso jantar. Pelos vistos o ar do campo tinha-lhe aberto o apetite… Ora nós tínhamos dois frangos, o que até nem era muito para aqueles cinco galifões; se o cão tinha comido um deles, estão a ver o problema, ia ser uma barrigada de fome. Lá tínhamos nós de fazer um reforço com mais um par de trigos secos.
O Nelson ficou danado e foi ter com o dono do animal que não acreditou que ele tivesse feito uma maldade dessas. Não acreditou até ver os poucos despojos que sobraram, depois ficou de orelha murcha, pediu desculpas e não teve outro remédio que ir comprar outro frango para nos compensar as perdas. Vá lá que o homem foi consciencioso e trouxe um frango bem maior que o “desaparecido”.
O desgraçado do cão é que passou a ficar amarrado a uma árvore como castigo para tamanha gulodice. Ficou preso, mas pelo menos, estava de barriga cheia!
Um sábado à noite recusamo-nos a ir ver a estopada dos jogos olímpicos e fomos todos ao cinema. Sim, ao cinema em Vilar de Mouros, em 1976.
Havia uma casa, junto ao cruzamento com a estrada que vai para Covas, que hoje está em ruínas, um tipo de Centro Cultural ou Recreativo e que passava uma “fita” aos sábados à noite, sentando-se os espectadores em bancos corridos e cadeiras avulso, tendo como tela um simples lençol branco. Foi daquelas idas ao cinema que nunca mais esqueci, uma maravilha.
Sei que os meus pais ainda foram lá uma vez abastecer-me de mercearia e o Ernesto passou por lá várias vezes descarregando carne para o irmão (e para os amigos esfomeados).
Nunca esta equipa voltou a acampar juntos, apenas eu e o Mac continuamos por mais alguns anos a vadiar, nesta espécie de turismo selvagem, em que tínhamos uma tenda, um saco cama e pouco mais. Claro que as tendas eram canadianas, daquelas baixinhas em que se entra de gatas. Era o que havia!
Apesar que termos deixado de ser parceiros de acampamentos, a amizade ficou e hoje tenho muito gosto em contar estas simples peripécias, que marcaram uma fase da minha, da nossa juventude.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Serra d`Arga

Fotografia de Carlos Venade

terça-feira, 8 de julho de 2008

Euclides, o comunista

Este conto é baseado em acontecimentos reais, ocorridos na década de cinquenta do século passado.

O vento chegava em rajadas, era vento de norte, o frio cortava e a rua não oferecia abrigo aos raros peões que se atreviam a sair.
O Domingos Verde aconchegou o grosso sobretudo regulamentar, que vestia sobre o blusão azul-escuro, quase negro, da farda policial. Pesava-lhe o cinturão largo, que suportava a pistola e o casse-tete, doíam-lhe os pés, depois de ter passado quase todo o turno de giro em Leça, desde a praia, até ao quartel dos bombeiros, ziguezagueando por uma infinidade de ruas.
Fez esse percurso várias vezes, só tinha parado ao início da manhã para entrar na leitaria do Esteves e tomar um galão e um pão com manteiga, não esteve parado mais de dez minutos, nunca se sabe quem está a observar, para mais, ele ainda era novo na corporação.

Ao passar junto ao gradeamento do quartel, um carro vem em sentido contrário, afrouxa e pára a meia dúzia de metros. O condutor baixa o vidro e chama o jovem polícia de turno:
- Senhor agente, uma informação. Onde fica a pensão Godinho?
- A pensão Godinho é aqui em Leça, mas, do outro lado. O senhor dá a volta e vai até à rua onde está a farmácia, sabe onde é?
- Não, eu conheço mal esta zona.
- Se seguir por aquela rua vai ter a um jardim; depois de o passar vira à sua esquerda. Essa é a rua da Farmácia. Tem uma loja de ferragens logo à esquina. Quando lá chegar, vira na… deixe-me ver, na tercei…, não, na quarta rua à sua direita, a pensão Godinho é a cinquenta metros. Não tem que se enganar, no início da rua há uma carvoaria.
- Obrigado senhor agente…, mas, eu não o conheço? Você não trabalhou no Lindoso?
- Eu também o estou a conhecer, senhor engenheiro. Trabalhei sim senhor, na barragem.
- Eu bem me parecia, quando vejo uma cara, não costumo enganar-me! Então agora está na polícia?
- É verdade, quando comecei a trabalhar na barragem, já tinha metido os papéis para a polícia, mas como nunca mais me chamavam, aproveitei e ainda lá trabalhei quase nove meses.
- O senhor agente é que me podia fazer um grande favor.
- Se puder, diga senhor engenheiro.
- Você lembra-se do Euclides, o técnico das máquinas?
- Lembro-me perfeitamente.
- O Euclides foi preso e está aqui no Porto.
- Que fez o senhor Euclides para ser preso, ele que era tão boa pessoa?
- Olhe azares da vida, não teve culpa, mas está a ser chateado pela PIDE.
- Oh diabo, então mete a PIDE? Que quer o senhor engenheiro que eu faça?
- Senhor agente, venha comigo à pensão, que eu vou lá ficar com os meus filhos e lá conversamos.
- Não posso ir já, senhor engenheiro. Só termino o serviço à uma da tarde, se quiser encontramo-nos lá às duas, duas e pouco.
- Muito bem, eu fico na pensão à espera. Até logo senhor agente… desculpe mas esqueci-me do seu nome…
- Verde, agente Verde, ao seu dispor, senhor engenheiro.
O Chevrolet negro com o engenheiro Ogando e os dois filhos, arrancou suavemente, contornou o pequeno canteiro em frente aos bombeiros e perdeu-se pela rua em direcção ao jardim. O frio continuava a apertar e por ter estado parado aquele tempo todo a conversar, tinham-lhe arrefecido ainda mais os pés. Lembrava-se que o pai do eng. Ogando, também formado em engenharia civil, fora o responsável técnico pela construção do Casino da Póvoa do Varzim.
Já passava do meio-dia e eram horas de se dirigir calmamente para a esquadra que ainda ficava longe, fazer o relatório e consultar a ordem do próximo serviço, que devia começar à uma da próxima madrugada.

Quando saiu da esquadra foi directo à casa de pasto do Aníbal, um transmontano de Carrazeda de Ansiães, com porta aberta há mais de vinte anos, uma casa muito asseada, onde comiam a maior parte dos agentes da esquadra de Matosinhos, funcionários das casas comerciais das redondezas e estivadores da doca de Leixões.
Depois de ter engolido uma jardineira fumegante, que a Laurinda lhe apresentou, dirigiu-se para a pensão Godinho, onde o esperava o engenheiro Ogando, que sem mais delongas lhe explicou.
- Pois o nosso amigo Euclides está metido em trabalhos. Tudo começou quando apareceram uns panfletos do Partido Comunista afixados numas árvores, a caminho da barragem. A PIDE foi chamada pela Guarda Republicana, andaram para lá a investigar e encontraram um desses papéis no armário do Euclides. Nem quiseram saber de mais nada. Trouxeram-no para Ponte da Barca e daí transferiram-no para o Porto, desconfio que para a sede da PIDE, você sabe onde é?
- Sei, é na Rua do Heroísmo, perto de Campanhã.
- Pois era isso que eu queria que fizesse, ia comigo à PIDE, ver se me deixavam visitar o Euclides, para lhe perguntar algumas coisas do serviço, que estavam pela mão dele. Como você é polícia, se calhar, é mais fácil deixarem-me vê-lo.
- Se é só isso, não vejo problema, eu vou consigo – diz o jovem agente, convencido do poder persuasor da farda que envergava.
- Então vamos no meu carro, que chegamos lá num instante.

Quando chegaram à Rua do Heroísmo, no Porto, o Domingos apeou-se e dirigiu-se à portaria do edifício, sendo interpelado de imediato, por um plantão da PIDE.
- Que deseja?
- Eu venho saber se está aqui um tipo de Ponte da Barca chamado Euclides, que trabalhava na barragem do Lindoso.
- E para que quer saber?
- Está ali fora o antigo chefe dele, um engenheiro, que queria falar-lhe por causa do serviço lá da barragem.
- Um momento, que vou saber. – Dirigiu-se a um telefone pendurado na parede ao fundo da salinha que fazia de recepção e falou baixo durante breves instantes. Depois de desligar, dirigiu-se ao Domingos, dizendo-lhe para entrar e aguardar na primeira sala do corredor à esquerda.
Não esperou mais de dez minutos, até que um sujeito de meia-idade, com o escasso cabelo empastado de brilhantina, fato negro e voz nasalada entrou na sala e lhe disse à laia de cumprimento:
- Então é você que quer ver o Euclides? Que é que tem a ver com ele, hein? Conhece-o de onde? Vamos lá a identificar-se.
O agente Verde puxa da carteira, tira o cartão da PSP, entrega-o ao PIDE e repete-lhe a história.
- Há quanto tempo está na polícia, hein?
- Fiz a escola e estou em Matosinhos há seis meses.
- Seis meses, hein! Sente-se aí e aguarde.

O tempo ia passando e ninguém mais se aproximou da sala onde o Domingos, só esperava que lhe dissessem alguma coisa. Lá fora o engenheiro devia estar ansioso por novidades. Ainda ninguém lhe tinha confirmado que o Euclides estava lá preso, mas também lhe tinham dito o contrário.
A sala estava aquecida e o tempo de espera dava-lhe sono. Com sorte, hoje ainda podia dormir algumas horas, até entrar outra vez de serviço. O raio do homem é que nunca mais vinha, se calhar estava a consultar o processo ou a pedir instruções a algum superior.
Quase duas horas depois, entrou novamente o PIDE na sala, entregou o cartão de identificação ao Domingos dizendo-lhe:
- Tome lá isto, desapareça e não volte a pôr os pés aqui na directoria a não ser que o chamem. Diga lá ao engenheiro, que o comunista que trabalhou na barragem está aqui e que na cela dele, ainda cabem mais um ou dois, hein. Se quiserem?...
Dito isto, virou costas e saiu tão silenciosamente como tinha chegado. O Domingos sentia-se ruborizado pela forma arrogante como tinha sido tratado, ele que também era uma autoridade e só ali estava para fazer um favor. Saiu do edifício, deixando para trás o sorriso zombeteiro do plantão, que certamente ouvira a conversa, atravessou a rua e entrou no Chevrolet do engenheiro Ogando.
- Então senhor agente que novas me conta.
- Novas?... Eles têm lá o Euclides, fizeram-me esperar este tempo todo, mandaram-me desaparecer e ainda me ameaçaram que na cela dele havia lugar para nós, para mim e para si.
- Então não se pode fazer nada.
- Pois não senhor engenheiro, com estes tipos não se brinca…Vamos embora, que eu preciso de ir dormir e pouco falta para as seis da tarde.