quarta-feira, 26 de março de 2008

Crónicas do filho da puta (1ª parte)

Estas crónicas do filho da p*** são apenas uma mera cópia de uns originais que li há muitos anos e que procurei reproduzir o melhor que pude, introduzindo novas variedades, novas espécies de filhos da p***, uma raça em constante evolução.

O filho da p*** existe e encontra-se em todos os sítios e em todos os ambientes. Do pouco que se sabe acerca dele, de como a sua roupa e a sua figura não basta para o definir, restam alguns traços que o caracterizam - os seus gostos e lugares preferidos, as suas grandes especializações, o seu sistema de entreajuda, perguntas que faz, a sua sempre escondida vida particular, a sua casa lar como lugar excelso, os seus modos de recreio e diversão, os seus tiques e aspectos anedóticos, os seus temores e receios, enfim, de como é, acima de tudo, um filho da p***.
A grande dúvida que ainda existe em relação ao filho da p*** é se ele já nasce filho da p*** ou se a vida é que o faz...

Pois, o filho da p*** também vai à pesca. Encontramo-lo por aí, sozinho ou em grupos de que apenas faz parte por pouco tempo, com a cana na mão. Digo que apenas faz parte por pouco tempo, porque é breve o espaço temporal que o grupo leva a descobrir que por lá paira um filho da p*** e, tal como a uma purulenta borbulha, procede à sua excisão, normalmente de forma gradual e pouco notada, até que o próprio filho da p*** já não tenha coragem de voltar, pois sabe que ali não se safa...
O filho da p*** nunca se define à primeira vista - esta é, aliás, uma das suas principais características.
À primeira vista, o filho da p*** faz tudo para mostrar a disponibilidade que acha própria, e ocultar a própria indisponibilidade. À primeira vista, o filho da p*** diz quase sempre que “está bem”, que "se vai ver", o filho da p*** é quase sempre assim, “sim senhor”.
É só depois, às vezes muito depois, que o filho da p***, por vocação superior e para constar, diz que "não, não senhor", e mostra que não está na disposição: nem de viver nem de deixar viver.
Por isso, ele, o filho da p***, ocupa-se e preocupa-se sobretudo com os outros, e uma das coisas que mais o ocupa e preocupa é a despreocupação dos outros, e esse é a segunda das suas principais características. Até se pode dizer que nada preocupa tanto o filho da p*** como a despreocupação dos outros, que nada o incomoda tanto, nada o perturba de tal modo como a despreocupação dos outros.
Ele, o filho da p***, tem por máxima preocupação construir toda a espécie de mais valias, e assim ocupa a vida com essa preocupação, isto é, ocupa a vida ocupando-se com o modo de conseguir sempre o que mais valia, sacrificando-se para conseguir sempre o que mais vale...
O filho da p*** não gosta de viver, mas gosta de reviver, gosta mais de reviver que de viver, e assim ocupa grande parte do seu tempo. Deste modo se entende que seja sempre imensa a saudade que ele, filho da p***, tem do passado, imenso o seu desejo de ambição de regressar (se possível) ao estado embrional, esse estado em que ia para todos os lugares sem chegar a sair do mesmo lugar.
Na pesca, o filho da p*** quer sempre pescar mais que os outros, seja lá como for. Se alguém apanha algum peixe, o filho da p*** logo a ele se encosta para pescar no mesmo lugar e vai apertando, sem quaisquer contemplações, até que o outro se afaste. Se estiver longe irá lançar exactamente para a frente do outro, de modo a incomodá-lo...
Quando não apanha nada é porque é um tipo com azar, porque os outros ficaram nos melhores locais e tinham melhor isco - para o filho da p*** cada pescaria é um concurso - e se fica mal "classificado" não consegue esconder o mau humor e a filha da putice que o envenena. é nesta altura que deixa de se controlar e não consegue evitar o focinho coberto de ódio contra tudo e todos.

Para o filho da p*** a captura de espécies que não irá aproveitar para a mesa é a forma de vingança contra o mundo e contra os outros - e os pontapés, pisadelas e outras formas de crueldade contra o desgraçado do peixe surgem, incontroláveis, proporcionando um sorriso escondido e um acalmar imediato, mas por pouco tempo, dos recalcamentos e do ódio latente nas suas entranhas...
Lançar lixo à água ou deixá-lo nos pesqueiro é um dos gozos supremos do filho da p*** na pesca - saber que quem vier a seguir vai encontrar toda a merda que lá deixou, e que contribuiu com mais algum lixo para a poluição das águas, fá-lo sentir-se importante - e o prazer de saber que incomodará os outros leva-o a um êxtase indescritível, já que ele vive basicamente para lixar a vida aos outros.
O filho da p*** utiliza material de pesca barato - porque que iria dar uma pipa de massa por uma boa cana ou carreto? Porquê gastar dinheiro nestas merdas, encher o cú a esses chulos das casas de pesca? Nem pensar!!! Ele é um gajo com azar e o dinheiro faz-lhe muita falta...
A técnica do filho da p*** muda de época para época e de lugar para lugar. A felicidade e o gosto pela vida que os outros manifestam é incompreensível para si - porque é que os outros não têm tanto azar como ele? Que mal é que ele, filho da p***, fez, para ter tanto azar????
(Continua)

sábado, 22 de março de 2008

Esquecimento


Chovia que se fartava. As pingas batiam-lhe na cara e no blusão, escorrendo em direcção ao solo. Encostava-se o mais possível às paredes na vã tentativa de escapar ao bombardeamento das pingas.
Ao chegar ao fundo da avenida abrigou-se na entrada lateral do Banco. Ao menos ali não chovia. Passou a mão pela cara e pelo cabelo, penteando-o para trás com os dedos. Logo se arrependeu porque a água escorregava agora pelo pescoço, alagando o colarinho da camisa. O candeeiro de iluminação pública com a sua luz amarela, mostrava uma cortina de água à sua volta.
Quando saíra de casa, apenas a uns trezentos metros de distância ainda não chovia e nem sequer se apercebeu da iminência da bátega de água, que se iria abater dentro de alguns segundos. Tinha sido de repente!
Tudo aquilo por causa de um esquecimento. Esquecera-se de pagar a factura da Internet e já passavam dois dias do prazo limite. Podia ser que ainda fosse possível o pagamento por Multibanco.
Voltou a perscrutar o tempo, parecia que já chovia menos. O vento é que se mantinha de sudoeste. Ia ser uma noite de temporal.
Bateu com os pés no chão, passou outra vez a mão pela cara ainda encharcada e fez o que já não fazia há muitos anos, se calhar desde jovem. Inclinou-se para a frente e sacudiu violentamente a cabeça, borrifando de água os vidros da porta do banco. Voltou a passar a mão pelo cabelo e encontrou-o mais enxuto.
Agora chovia menos, tinha a certeza, era preciso continuar, só precisava de contornar o banco até à outra entrada, onde estava a caixa Multibanco. Levantou a gola do blusão e com determinação desceu para o passeio.
Ao chegar ao destino baixou o fecho do blusão de forma a alcançar a carteira, retirou o cartão, meteu-o na ranhura, digitou o código e procurou a factura em débito. No bolso direito, no bolso esquerdo, junto à carteira, nas calças… Onde raio estaria a factura? De repente lembrou-se, pousara-a sobre a mesa da sala enquanto vestia o blusão.
Soltou uma gargalhada enquanto retirava o cartão da máquina. De regresso a casa assobiou todo o caminho…

segunda-feira, 17 de março de 2008

A magia da cor, é o Rio Âncora!

Um pequeno degrau em direcção ao mar

Foto de Raul Videira

sexta-feira, 14 de março de 2008

Litos, o traficante (2ª parte)

O Chico continuaria a ser o seu homem de mão. Guarda-costas e intermediário entre ele e os gajos que iriam vender, que nem tinham necessidade de o conhecer. O Chico era de confiança, se é que se podia confiar em alguém.
Conhecera-o há muito tempo, pouco depois de vir viver para o Porto, era o Chico porteiro de uma discoteca na Foz. Nessa altura era um gajo que metia respeito. Apesar de não ser muito grande, era suficientemente forte para dar conta de qualquer cliente mais recalcitrante.
Depois meteu-se nos copos e foi-se abaixo, perdeu empregos uns atrás dos outros e chegou a um ponto que já ninguém o queria por perto. Uma vez arreou uma porrada num gajo que passou três meses no hospital depois de lhe retirarem um rim esmagado. Como já tinha cadastro, foi “dentro” e reencontrou-se com o Litos em Custoias.
Quando saiu, o Litos chamou-o para o ajudar no negócio, mas só lhe dizia o que lhe convinha, nada de sociedades, nem sequer sabia da oficina de restauro, nem onde ele morava. Quando queria, telefonava ao Chico de uma cabine pública, o seu telemóvel só para receber chamadas, que isto das escutas era caso sério.
Iam ser três gajos a vender e o Chico a tomar conta deles. Cada um tinha de vender vinte pacotes por dia, pelo menos, para dar algum. O mais difícil tinha sido escolhê-los mas tinha de arriscar, nunca se sabe, apesar de já os ter debaixo de olho há muito tempo.

Tinha de ir buscar um pacote, já estava combinado com o tipo que o fornecia. Iriam encontrar-se na estação de serviço da A-28 perto de Viana do Castelo. A troca seria feita nos lavabos com a maior discrição e nunca no mesmo sítio por duas vezes seguidas.
Desta vez tinha encomendado a mais, já a pensar no novo âmbito do negócio, sim negócio, que o Litos abominava os consumidores, apenas via neles uma fonte de rendimentos fácil, embora arriscada, porque quando ressacavam, descontrolavam-se e nunca se sabia o que podia surgir.
Hesitou entre levar o Ax ou o Audi que guardava na garagem, mas preferiu ir no “chaço” que dava menos nas vistas. Dissimulação era a alma deste negócio.
Saiu do Porto pela Circunvalação, percorreu a Via Norte, pouco trânsito àquela hora da tarde e seguiu pela Nacional 13 até Esposende, onde parou para beber um café e verificar algum movimento estranho.
Ninguém o seguia, entrou no Citroen e dirigiu-se à A-28, faltavam poucos quilómetros para a estação de serviço. Quando chegou à área de serviço abasteceu combustível e estacionou no parque entre os outros veículos.

Dirigiu-se à cafetaria, comprou a Bola, olhou naturalmente em volta e não fixou o olhar em coisa nenhuma, mas viu distintamente o seu contacto que parecia entretido com um problema de palavras cruzadas.
Tomou outro café, esperou um pouco e caminhou em direcção aos lavabos. Lá dentro um miúdo lavava as mãos. O Litos urinou e ao seu lado, a dois urinóis de distância o seu contacto fez o mesmo. Trocaram rapidamente dois embrulhos plásticos, o outro saiu de imediato, ele foi lavar as mãos.
O embrulho da droga no bolso direito do blusão parecia que queimava. Saiu e não viu nada de estranho, caminhou devagar para o exterior e sentiu uma picadela nas costas, a vista escureceu e as pernas dobraram-se.
Acordou algemado, no banco traseiro de um automóvel. A vista continuava desfocada e sentia as costas dormentes. Ainda viu o seu contacto, igualmente algemado ser enfiado noutro carro. Um tipo com colete azul da polícia sentou-se ao seu lado, outros dois sentaram-se nos bancos da frente e arrancaram em direcção à auto-estrada.
Já não viu o Chico sair do gabinete da administração da estação de serviço, onde tinha assistido a toda a operação através do circuito de vídeo vigilância na companhia de alguns inspectores da Judiciária.
Fim

terça-feira, 11 de março de 2008

Litos, o traficante (1ª parte)

Voltou a olhar para ambos os lados, não viu nada de alarmante na penumbra da rua, entregou a prata ao tipo que estava plantado na sua frente. Dele já tinha recebido os vinte euros que faziam companhia às outras notas no bolso interior do blusão. Fez sinal com a mão, e do escuro aproximou-se outro tipo que, sem qualquer conversa, lhe estendeu a nota azulada, recebendo em troca outra pequena prata.
O Litos era traficante, apenas um pequeno vendedor que mudava frequentemente de sítio de forma a passar o mais despercebido possível pela polícia. Agora estava a fazer a noite perto do Bairro do Cerco.
Lá dentro, nas ruas do bairro, o negócio fazia-se à descarada, tanto na rua como em certas casas. Havia dias que faziam bicha nas escadas dos prédios onde estavam localizados os apartamentos dos traficantes. O problema eram as rusgas que a polícia fazia de vez em quando e lá iam meia dúzia dentro.
Mesmo que acabassem por sair, já ficavam marcados e para não serem perseguidos a cada momento, acabavam por ir dando uns bitaites à bófia. O Litos evitava ao máximo as confusões, tinha começado no “mundo” a gamar auto-rádios e umas carteiras, a “passar” erva ou qualquer coisa que desse um guito para a bucha.
Por causa de um descuido esteve preso em Custoias durante nove meses, foi lá que aprendeu a arte da dissimulação e os passos certos para o negócio da coca e do cavalo. Nunca fora consumidor e ainda sentia um certo nojo só de se lembrar que uma vez tinha fumado uma pedra de haxixe e passara a noite a vomitar.
Aos poucos estabeleceu um grupo mais ou menos fixo de clientes, que ele avisava cada vez que mudava de poiso.

- Põe-te a milhas, estás a olhar para mim porquê? Andor!!!
O magricelas alto e completamente ganzado, cambaleante, virou-se lentamente, tomou balanço e afastou-se aos tropeções.
- Este não dura muito – resmunga entre dentes.
Um carro avança lentamente do fundo da rua. Ouve um assobio, era o Chico a avisar. Recua para o interior de uma porta e fica no escuro à espreita. O veículo passa, pode ser um dos carros civis da bófia, estão sempre a mudá-los.
Antigamente conhecia-os todos, mas agora é mais difícil, até lhe tinham dito que os trocavam com os carros de Lisboa.
Farto de bater com os pés no chão para aquecer e como já há mais de meia hora não aparecia ninguém para comprar, decidiu ir embora. Fez um sinal para o sítio onde devia estar o Chico escondido, que apareceu de imediato e juntos caminharam para o seu velho Citroen AX que estava estacionado numa rua ali próxima.
- Que tal? – Pergunta o Chico.
- Fraco… Fiquei com metade por vender.
- Os gajos ainda ontem encheram a ramona no bairro, é por isso que a malta se está a cortar.
- Humm… Não tem é guito. Ainda hoje o Broas que tem sempre algum, estava liso e deixou-me ficar um relógio.
- É pá, então estás a aceitar essas merdas? Já ninguém dá nada por relógios.
- Este é bom, um Seiko. Cinquenta vale sempre, pelos menos.
Deixou o Chico junto à Câmara de Matosinhos e seguiu para a sua casa que não ficava longe. Estacionou o Citroen a dois quarteirões do prédio onde vivia, meteu a saca plástica com algumas pratas debaixo do tapete do lado do pendura, fechou-o cuidadosamente e esquadrinhou a rua deserta àquela hora da madrugada.
Tinha sempre o cuidado de deixar o carro longe e não entrava em casa até ter a certeza que ninguém o estava a observar.

Subiu no elevador até ao quarto piso, percorreu o corredor suavemente iluminado, abriu a porta do seu apartamento e suspirou de alívio.
O salão à sua frente era grande, o piso em madeira impecavelmente envernizado, cortinados verdes protegiam as vidraças da enorme janela virada para sul. Tirou o blusão, escolheu uma garrafa de whisky no bar, juntou alguns cubos de gelo, preparou a bebida e recostou-se no enorme sofá de couro negro.
Esvaziou o bolso do blusão e dedicou toda a atenção à tarefa de endireitar e ordenar aquele monte de notas amarrotadas. Mais algumas semanas e deixava a rua, era a sua primeira meta, pôr alguém a fazer o trabalho de venda. Era mais seguro, ele só tinha de controlar.

No dia seguinte acordou tarde como habitualmente e quando saiu de casa foi para ir ao Gaveto, uma marisqueira onde era cliente assíduo. Depois de um caril de gambas e uma generosa dose de pudim francês, foi buscar o velho AX e conduziu até à sua oficina, numa transversal da Constituição.
O salão era grande mas estava atravancado de moveis antigos, que ele ia recuperando lentamente e que servia de camuflagem para o seu verdadeiro negócio. Era também aí que guardava a droga, que fazia as pesagens ou o corte, e como trabalhava de porta fechada ninguém o ia lá incomodar. Apenas um ou outro proprietário dos móveis a restaurar é que lhe telefonavam a saber se já estava a obra pronta.

Tinha aprendido o ofício com o Rafael, um marceneiro resmungão do Marco, sua terra natal, que ele aturara durante dois ou três anos, desde que saíra da escola, até que se chateou e veio para o Porto em resposta a um anuncio, onde pediam um aprendiz de polidor.
Conseguiu o emprego, conheceu amigos e não tardou muito a ajudá-los a aliviar alguns carros dos respectivos auto rádios, para depois venderem. Como faltava ao trabalho e muitas vezes ia para lá dormir, o patrão acabou por mandá-lo embora e ele decidiu que já chegava de trabalhar para os outros, ter de os aturar, para no fim do mês receber uma côdea.
Passou a ajudar o Tesouras, um carteirista à moda antiga, daqueles que metia as mãos nos bolsos dos lorpas e eles ainda se riam. Nada de esticões nem de facas a ameaçar, só técnica. Trabalhavam nos autocarros e na linha da Póvoa, mas tiveram de desistir dos comboios porque já estavam a ser topados pelos revisores, que avisavam os passageiros.
Um dia o Tesouras ainda levou uns tabefes, o que lhe valeu foi chegar um polícia que estava de folga e que o tirou daquela enrascada, pois já havia uns gajos que o queriam mandar abaixo do comboio.
Foi quando começou a vender erva à porta de discotecas, porque o Tesouras agora estava mais cauteloso e o que ganhavam não dava para nada.
Uma noite, quando ia passar para a mão de um cliente uma pedra de haxixe, sentiu fechar-se no pulso uma argola de metal frio, era um polícia disfarçado de cliente e ele tinha sido apanhado em flagrante.

Em Custoias ofereceu-se para trabalhar na carpintaria, onde ninguém o chateava e as horas passavam mais depressa. Depressa ganhou a confiança do encarregado da oficina e dos guardas, passando a ter uma liberdade invejável, até porque não havia risco de fuga por a pena ser muito curta.
Ainda ganhou uns cobres a servir de correio entre os poderosos e mandantes da cadeia e, acima de tudo, ganhou confiança com eles, ganhou contactos e informações que esperava serem de utilidade quando pusesse os pés na rua.

(continua)

quinta-feira, 6 de março de 2008

A mania das pressas


Um domingo logo de manhãzinha, a Minda e o Tone meteram-se no comboio em Valença, rumo ao Porto. Viajaram no “Flecha”, só parava nas estações, os apeadeiros eram para o comboio que vinha a seguir.
Chegados à tabela a S. Bento, tinham o Fernando Castilho à espera, com o nervoso miudinho que o caracterizava e que o impelia a percorrer para lá e para cá, vezes sem conta a gare, à espera dos cunhados que iam à sua casa almoçar. Ao fim da tarde, retomariam o comboio em sentido inverso até Valença, onde moravam no cruzamento da estrada de Monção, para o Monte do Faro.

Depois dos cumprimentos, saíram da monumental estação ferroviária, atravessaram a rua em direcção à Avenida dos Aliados onde esperaram pelo 82, o autocarro que os levaria até à Avenida Fernão Magalhães, à casa do Fernando, a dois passos do Estádio da Antas, numa transversal ali próxima.
Enquanto o autocarro não chegava, ainda houve tempo para um cafezinho rápido ao balcão do “Embaixador”. Finalmente em casa, a Minda foi logo ajudar a irmã, a Letinha que se afadigava na cozinha, para ter o almoço pronto a horas, enquanto os cunhados se sentavam tranquilamente nos sofás do escritório.
- Fernando, você sempre arranjou os bilhetes?
- Claro, já os tenho há mais de uma semana.
Tinham combinado ir ao futebol, às Antas, ali ao lado. O Tone ligava pouco à bola, mas o Fernando era um doente pelo seu querido Futebol Club do Porto. Só via o Porto, fosse em que modalidade. O que interessava é que o Porto ganhasse.

Chegada a hora de almoçar, foram para a sala de jantar, saborear um arroz de cabidela, feito com esmero e para o qual tinha sido convidado um frango, que a Letinha havia comprado no Bolhão, que o mataram e depenaram ali mesmo, na frente dela.
O almoço arrastou-se com a conversa, agora vem o arroz doce e mais logo está na hora do café, servido com uma aguardente, que o Fernando trouxera de Âncora, da última vez que lá tinha estado. Impaciente como era, olhou várias vezes para o relógio, não se conteve e disse:
- Eu vou para o estádio.
- Ó Fernando, não é ainda um bocado cedo? – Pergunta o Tone, que já nem se lembrava do futebol.
- É, mas eu vou para arranjar lugares para nós. Você depois vai lá ter comigo.
- E como é que o encontro no meio de tanta gente?
- Tome lá o seu bilhete. Quando chegar ao estádio, entre pela porta sete, aquela que está mesmo em frente. Você entra e eu estou ali à mão direita, à beira da entrada.
- Então está bem. – Concorda o Tone, acendendo mais um cigarro.
O Fernando sai quase a correr e a Letinha diz:
- Estais admirados? Muito aguentou ele hoje. Se não estivésseis cá, já tinha ido para o estádio há muito.
- Mas ainda falta quase hora e meia…
- Que quereis, ele é assim!

Quando se aproximou a hora do jogo, o Tone levanta-se, dirige-se para o bengaleiro da entrada e veste a gabardina que tinha trazido. Fez algum esforço para enfiar o segundo braço, olhou para si próprio, reparou nas mangas por meio do antebraço e chamou:
- Ó Minda, anda cá ver a gabardina. Parece que encolheu…
- Tu não estás bom, ainda há bocado a trazias vestida e estava bem, como…Ah, encolheu mesmo!
- Eu bem te disse! – Dizia o Tone com a gabardina vestida, que apenas lhe chegava a meio das coxas.
- Essa gabardina é do Fernando. – Esclareceu a Letinha que saíra da sala para ver o que se passava.
- Então deve ter levado a minha gabardina, por engano.
- Deve ir com ela quase a arrastar pelo chão.
- Se a mim fica um bocado grande, que fará a ele! Não faz mal, nem sequer está frio, eu levo a gabardina dele no braço e chegando lá ao estádio trocamos.

E assim fez, encontrou com facilidade o cunhado, que, com a mania das pressas, ainda nem tinha reparado na “albarda” que trazia vestida.
Desfeito o engano, trocadas as gabardinas que eram do mesmo formato e da mesma cor, divergiam no tamanho, começou o desafio. Não sei quem ganhou, espero que tenha sido o Porto. Nisso, saio ao meu tio Fernando!