segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Anjo

Este conto constitui a minha participação na colectânea de prosa e poesia "A Arte pela Escrita III" da editora Mosaico de Palavras.

Senti-me observado, incómodo, não estava mais ninguém por perto, mas aquele olhar penetrante, atento, fixo, de uma imobilidade perturbadora, transformou-me numa espécie minúscula, quase microscópica, escalpelizada sob o vidro da lupa, qual verme tentando escapar, ondulante, que é o único andar que conhece. Levantei-me, lentamente, muito lentamente fui em sua direcção, mas não reagiu, Saramago diria que era um anjo, daqueles que não perdoam porque não é essa a sua função, este teria como missão observar-me, talvez fosse dos que castigam. Castigar? Porquê? Não será castigo demais as armas e os barões assinalados, apontados a dedo e filmados, dia após dia, tragédias contemporâneas do berço, da saia, da estrada, do crime sem castigo, que a justiça alem de cega, é surda e manca. Não será demais a contradição do homem, que cresce, aprende saberes que o envaidecem, terminando ele próprio como um destroço arrastado na grande vaga do tempo. Pelo canto do olho procurei o seu olhar, parece-me que se mexeu um pouco, talvez mais para norte, enfrentando a ventania de meia tarde. Agora que estava de perfil podia ver-lhe melhor a cabeça cinzenta e o olho negro atento aos meus movimentos, até aos meus pensamentos, se realmente for o tal anjo. Este deve ser dos que dão as novidades, que levam e trazem as boas novas, ainda à moda antiga, batendo as asas pelos céus, que no paraíso coisas modernas ficam à porta. Mas eu não sou carpinteiro, nem devoto de água benta, não tenho direito a novas por decreto celeste, muito menos por anjos de recado encomendado, Ele tem mais que fazer do que se preocupar com as minhas interrogações. Ao longe, ouvem-se os gritos e risos de quem se banha entre a espuma equilibrada na crista das ondas. As cabeças sobem e descem, desaparecem por instantes como que a purificarem-se das arrelias diárias aforradas nos invernos tristes, sombrios, das vidas sem interesse, sem viço e sem memória. Em volta, olhares ociosos procuram os seus, que a praia é grande e crianças são como areia a escorregar entre os dedos. Outros, transformam a vista no instrumento da cobiça, descarados, dissimuladas, pensamentos dissolutos, que nem o anjo descortina, que essa também não parece ser a sua especialidade. Para isso teria de chamar um de nível superior, um querubim ou se o caso for demasiado grave, um serafim. Agora não vale a pena, a tarde caminha para o crepúsculo, todos se secam, todos se vestem, a cobiça regressa à anterior modorra até ao novo dia, desculpem, não vale mesmo a pena incomodarem-se por isso, é normal e não chegariam todos os anjos do Paraíso para percorrerem as praias do litoral, a meterem juízo nas cabeças, pensamentos pios e castos. Alguns irão à missa das seis, nem se lembram do pecado, se é que isso ainda existe para tão pequena e banal distracção. Se existe não deve ser dos graves, de contrário Ele já se teria aborrecido com tamanha falta de vergonha e não deixaria o assunto nas mãos de um anjo menor, de cabeça cinzenta e olhos negros, que acomoda as asas brancas com um trejeito de ombros e me segue enquanto dou voltas pela sala. Vou à varanda, quero vê-lo de perto, falar-lhe. Talvez tenha alguma mensagem e esteja à minha espera, olá, disse eu, que não sei como cumprimentar um anjo, virou a majestosa cabeça bem de frente, baixou-a um nada, como a avaliar-me, tal como o alfaiate aprecia o freguês. O silêncio quebrado apenas pelos retardatários que na avenida rodeiam as tendas dos gelados, colares e fantasias que tornam mulheres formosas, não perturba o nosso frente a frente. Percebi que não me iria falar, não precisava e eu compreendi finalmente aquele olhar penetrante que me pedia ajuda. Sim, ajuda, era a mensagem daquele ser, agora estou convencido que é um anjo, não dos serafins, nem querubins, mas dos anjos da guarda que apesar do nome não andam armados, para isso temos os bandidos, uns com farda, outros nem isso. Aquecimento global, poluição das águas, desflorestação, derrame de petróleo, ocupação desregrada e corrupta dos solos, que Terra iremos deixar aos nossos filhos? E que filhos estás tu a preparar para esta Terra, diz-me o anjo que não fala, mas eu entendo, já te esqueceste que foram os filhos e os netos dos teus antepassados que nos estão a levar à ruína? Tens razão, e que faz o teu Senhor, não pode lançar um vento que corra com todos os incompetentes, corruptos e demais auxiliares dessa grande confraria. Alea iacta est, que é como quem diz, a sorte está lançada, respondeu-me o anjo, deixando que o vento do crepúsculo lhe acariciasse a alva pelagem. Baixou a cabeça, talvez um saudar, até qualquer dia, abriu as asas e juntou-se ao bando de gaivotas que regressavam à penedia.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Nos trilhos do contrabando VII

Na sala grande, frente ao televisor, uma senhora idosa estava sentada no cadeirão de couro castanho a condizer com a restante mobília. Ao fundo, no fogão de sala, amorrinhavam algumas brasas.
Cabelos brancos, um rosto enrugado onde sobressaíam os olhos negros, com mais vida que o corpo alquebrado. Fez um esforço e ergueu-se apoiada na bengala. Fomos ao seu encontro, instalamo-nos no sofá à sua direita. O Esteves quis oferecer-nos os aperitivos que recusamos. Estava mais interessado em ouvir a anciã e a Paula ainda estava mais curiosa que eu.
- Então foram vocês que encontraram o esqueleto lá em cima?
- Lá em cima? – Perguntei.
- Sim, na Branda da Aveleira.
- Ah!… Sim, fomos nós.
- Ó `Mingos, vai-te lá embora, que tenho que falar com estes senhores.
- Mas avó, não vê…
- Nem mas, nem meio mas… Quando acabar, eu chamo-te. E não te esqueças de dizer à tua mulher para pôr mais dois pratos.
Obedientemente o Esteves saiu e fechou a porta atrás de si. Notava-se que a velhota tinha uma personalidade forte, apesar da idade e que sabia muito bem impor a sua vontade. Encarou-nos com um olhar tão agudo que me incomodou e começou a falar.
- Quero que me prometam nunca dizer a ninguém aquilo que vos vou contar. Mas a ninguém mesmo, compreendem?
- Sim…
- Então prometam!
- Ok, prometemos…
- A senhora também – diz a velhota, olhando a Paula.
- Prometo, mas porque é que nos quer contar não sabemos o quê, se nem nos conhece e nem quer que o seu neto escute?
- Já vos explico tudo, – inclinou-se para a frente, as mãos apoiadas na bengala, a voz mais baixa meio-tom – eu não sou desta terra, mas de uma freguesia perto da raia. Vim para cá depois de casar com o meu Afonso, que Deus tenha… - fez um silêncio significativo em sua memória e prosseguiu – Mas não é disso que vos quero falar. Eu sou de uma aldeia lá mais para riba, perto de Espanha e antigamente nós só sobrevivíamos com a ajuda do contrabando. A terra pouco dava, é como hoje… e a carregar umas coisinhas para lá e para cá, amanhávamos mais uns tostões. Era uma vida miserável, meus filhos! Na aldeia havia um grupo de homens que carregavam os burros e as mulas com o que os verdadeiros contrabandistas queriam, lá iam eles por aqueles montes acima, sempre com medo dos carabineiros espanhóis que eram uns malandros. Os nossos eram melhores, bastava dar-lhes qualquer coisa e fechavam os olhos, coitados, também passavam mal só com o soldo da Guarda. Mas havia um deles, o comandante que era um filho da puta, com a vossa licença e que muito nos apoquentou. Levou preso o meu irmão que era o que dava as ordens aos outros homens. Ainda esteve em Melgaço algumas semanas, já não sei quantas, a passar fome e a levar porrada para falar. Esse Guarda, um tenente, fez-nos a vida negra durante meses e meses, embirrou com a nossa aldeia e com os de Castro Laboreiro onde uma noite a Guarda, por ordem dele, matou dois homens a tiro. Um dia disse para o Alípio, o meu irmão, que tínhamos de apanhar esse cachorro do tenente. Ao princípio ele recusou com medo, mas levei a minha avante e preparamos-lhe uma armadilha. Ninguém mais sabia o que preparávamos, só eu e ele. Conseguimos que o tenente viesse sozinho aqui à Gave, eu levei-o por um carreiro e o Alípio abateu-o com uma cachaporra na cabeça. Morreu ali mesmo e nem lhe valeu ter a pistola na mão. Levamo-lo para a Branda e enterramo-lo ainda durante a noite. Por cautela, matamos a mula que o carregou e deixamo-la a apodrecer por cima da tumba do tenente. Assim, o mau cheiro afastava qualquer um que ali passasse. Logo que acabamos de o enterrar, metemo-nos a caminho para a Espanha pelos caminhos mais difíceis e depois de muitos sacrifícios chegamos a França, onde vivemos mais de trinta anos. Durante mais de uma semana andaram à procura do tenente, mas não encontraram rasto dele. Um dia encontraram o boné e o casaco da sua farda perto de Ourense, fomos nós que a levamos para lá, deixando-a onde era fácil encontrá-la. Só para desviar as suspeitas e eles pensarem que o tenente tinha sido levado para Espanha. Deu resultado porque deixaram de o procurar deste lado. Quando cheguei a França comecei logo a trabalhar, a fazer limpezas e a ajudar no mercado, ainda de madrugada, mas… acabei por abortar. Foi quando conheci o meu Afonso, que trabalhava nas obras do hospital e ia visitar-me sempre que podia. Estive muito mal, quase três meses sem me poder mexer.
- Espere aí! Então abortou mal chegou a França e só depois é que conheceu aquele que iria ser o seu marido? Foi assim?...
- Foi...
- Então quem era o pai? Hum... Desculpe, se calhar não devia ter perguntado...
- Não faz mal, meus filhos. Já passou tanto tempo e eu prefiro contar-vos a verdade que levá-la comigo para o além. O pai era esse filho da puta do tenente, com a vossa licença. Foi ele que me fez o filho e depois negou-o. Assinou a sentença no dia em que se riu na minha cara a dizer-me que não me conhecia de banda nenhuma, a mim, que me entreguei a ele apenas para não voltar a prender o nosso Alípio. Ahhh... mas pagou-as! Só tive medo que ele reconhecesse a minha voz quando o fui chamar, apesar de a ter disfarçado. Estão a ver, se ele me reconhecesse ia o plano por água abaixo, mas tudo correu bem. A história acaba aqui, senhores. O meu irmão já morreu há doze anos e quando se estava a finar, obrigou-me a prometer-lhe que se um dia o cadáver fosse descoberto eu devia contar a verdade a alguém.
- E porque é que nos escolheu Dona… nem sabemos como se chama?
- Chamo-me Maria Rita e escolhi-os porque foram vocês que o descobriram e porque queria conhecê-los.
- Mas nós podíamos agora ir contar tudo à polícia.
- Ora, uma promessa é para se cumprir… e vocês prometeram!
FIM

domingo, 10 de janeiro de 2010

Nos trilhos do contrabando VI

Peguei na máquina fotográfica e nos binóculos, meti-os na mochila e com ela às costas atravessei a Branda em direcção ao regato. O Snoppy trotava à minha frente, nariz rente ao chão com mil odores por descobrir.

A manhã estava linda, não soprava uma aragem, as folhas das árvores brilhavam em mil reflexos, nas alturas alguns milhafres vigiavam.

Parei junto à fita colorida que os Guardas tinham estendido no dia anterior, vários técnicos trabalhavam no local. O Inspector Peres da Judiciária viu-me e fez sinal para me aproximar dele. Prendi o cachorro com a trela, baixei-me, ultrapassei a fita e pude observar que estavam a escavar utilizando umas ferramentas minúsculas, como as que são usadas na arqueologia.

- Então já descobriram alguma coisa? – Perguntei eu.

- Para já descobrimos que há dois esqueletos, um humano e outro que pertence a um cavalo ou mula.

- Um cavalo?

- Sim, precisamente em cima do cadáver humano.

- Quer dizer que essa pessoa morreu por o cavalo ter caído em cima dele?

- Bem, isso não sei, ainda é muito cedo para se tirarem conclusões. Só depois da autópsia.

- E os cadáveres estão aí há muito tempo?

- Seguramente há muitos anos. Pelo menos vinte ou trinta anos, mas durante a autópsia somos capazes de estabelecer uma data mais aproximada.

- Nós podemos ir embora?

- Claro, não precisamos de vocês para já. No decurso do inquérito é natural que tenham de prestar declarações, mas serão convocados nessa altura.

Os meses foram passando, já nem me lembrava frequentemente do episódio, até que recebemos duas convocatórias do Tribunal de Melgaço para prestarmos declarações na segunda-feira seguinte.

Mais uma vez a enfadonha tarefa de contar como as coisas aconteceram, tudo dito aos soluços, vagarosamente, para dar tempo à funcionária escrever no computador. Finalmente assinamos as declarações e quando saímos, meio-dia estava passado.

Cruzamo-nos no corredor com o inspector Peres da Judiciária, o mesmo que tinha iniciado o inquérito e que conhecêramos na Branda. Após nos cumprimentar, disse-nos que nada de especial tinham descoberto a respeito da identidade e a causa da morte terá sido eventualmente um traumatismo craniano.

Apenas podia confirmar sem margem para dúvidas que eram dois esqueletos, de um homem e de um cavalo ou mula. Percebi pelo seu encolher de ombros que também não deveriam ter perdido muito tempo com as investigações, a polícia tem sempre novos casos, muito mais mediáticos e os meios para a investigação são cada vez mais escassos.

Quando nos dirigíamos para o parque de estacionamento onde tínhamos deixado o carro um homem que já tínhamos visto no átrio do tribunal quando entráramos, perguntou-me:

- Foram os senhores que encontraram o cadáver na Aveleira?

- Sim, fomos. Porquê?

O homem hesitou, percebia-se que estava acanhado e não sabia bem onde pousar os olhos. Acabou por nos dizer que era por causa da avó, que desde que soubera que tinham encontrado um cadáver na Aveleira se tinha mostrado muito interessada e não lhe dera mais descanso, pedindo-lhe para ir procurar as pessoas que tinham feito a descoberta.

Enquanto ele falava aproveitei para apreciar o nosso interlocutor. Teria uns quarenta anos, não mais, usava uma roupa rústica, mas asseada. As mãos, com dedos grossos e musculosos, denunciavam o trabalho no campo. Finalmente pediu-nos para visitarmos a velhota, seria um grande favor que lhe faríamos. Ainda argumentamos que não tínhamos comido, mas ele logo atalhou, dizendo que tinha muito gosto em que almoçássemos na sua casa.

- Onde é que mora o senhor...? – Perguntou a Paula.

- Domingos Esteves, minha senhora. Moramos à entrada da Gave. Sabem onde é?

- Mais ou menos, fica perto da Aveleira. Já lá passamos uma ou duas vezes. Vamos lá ver a sua avó, mas não podemos demorar...

Seguimos a carrinha do Esteves e no início da Freguesia de Gave viramos à direita por um caminho calcetado, ladeado de vivendas tipicamente construídas por emigrantes. Aquele estilo espalhafatoso, com marcas e modelos estranhos à região, os telhados negros, as persianas douradas, os barbecues e os repuxos no jardim, chancelas indeléveis de culturas transportadas e mal assimiladas.

A vivenda de dois pisos frente à qual paramos era mais sóbria, folha de pedra à vista, balaustradas em madeira, uma casa de campo com tractor e alfaias à vista, vacaria ao fundo do terreno, galinhas e perus à solta, esgravatando aqui e ali.

- Tem de falar um bocado alto que a avó ouve mal, de resto está muito bem, exceptuando as artroses.

- Quantos anos têm?

- Quase noventa, mas não parece. Entrem, entrem…

(continua)