quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Pérolas Amargas (1ª parte)

O barulho cadenciado da máquina a vapor de tripla expansão adormecia-lhes os sentidos. O barulho e os tragos de aguardente que tinham embarcado discretamente em Buenos Aires, no estuário do Rio da Prata onde tinham recebido os sacos de milho, que enchiam os porões do cargueiro inglês.

A viagem começara com bom tempo, Janeiro era mês de Verão nos mares do sul e tinham apanhado uma verdadeira calmaria até à escala de reabastecimento na ilha do Sal, em Cabo Verde. Uma escala rápida, apenas vinte e quatro horas para encher as tulhas de carvão e os depósitos de água.

Já tinham deixado a Madeira para trás e passavam agora ao largo do Cabo de S. Vicente quando o barómetro começou a cair como uma pedra. O Capitão Jones resmungou uma praga e bateu com os nós dos dedos no mostrador redondo do aparelho, como que a certificar-se do seu bom funcionamento. A oeste, no horizonte, uma estreita faixa cinzenta reflectia sobre as águas azuis uma mancha baça que ia crescendo a cada hora que passava.

- Vamos apanhar borrasca na costa de Portugal, capitão? – pergunta o imediato Sullivan, um galês trigueiro, alto e magro que tinha de se curvar ao passar nas portas do navio.

- Parece que sim… Vá lá abaixo e diga ao chefe que dê o que puder na máquina… A ver se chegamos a Vigo sem levar muito…

Na sala da máquina o calor era infernal, os maquinistas de almotolia em punho lubrificavam bielas e chumaceiras, enquanto os fogueiros se afadigavam a alimentar a fornalha da caldeira. Ao escutar as novas ordens, o grego que superintendia a maquinaria encolheu os ombros e aumentou dois pontos à pressão da máquina, perante o olhar furibundo dos fogueiros que adivinharam um ritmo maior de trabalho. Um deles não se inibiu de escarrar e bater ostensivamente com um pé no chão metálico e fuliginoso como que a discordar da opção do chefe.

Durante a noite, empurrado pelo vento, o mar ia aumentando, tinha já vaga de quatro metros, nada que assustasse estes marinheiros confiantes na experiencia de muitas viagens, confiantes na robustez do “Antinous”, construído quinze anos antes nos estaleiros Thompson, R. de Southwick, na Inglaterra.

De manhã, o Capitão Jones tinha os olhos vermelhos da falta de descanso e dos inúmeros grogues feitos à base de aguardente argentina, bem melhor que a cachaça de cana brasileira.

Da máquina viera a informação que tinham de reduzir drasticamente o andamento porque uma válvula de retorno não funcionava convenientemente. Uma ladainha de pragas e mais um gole na caneca de alumínio foi a resposta eloquente do capitão, que deitou uma olhada ao mapa estendido sobre a mesa na salinha anexa à ponte de comando.

A meio da tarde a chuva que até aí se fizera sentir ligeira, aumentou de intensidade fustigando impiedosamente as chapas metálicas do “Antinous”. A visibilidade ficou reduzida a poucas dezenas de metros e um marinheiro foi guarnecer o sino de bronze que repicava a cada trinta segundos.

Os homens que não estavam de serviço deixavam-se ficar nos catres, acabrunhados com a tempestade que tanto elevava como afundava o navio nas ondas coroadas de alva espuma. As chapas rangiam e qualquer novato se atemorizaria com este som lugrebe. Mas não estes, que já tinham passado por muitas tempestades de meter medo. Apenas se aborreciam porque não conseguiam dormir com o balanço, com o barulho da máquina, da chuva e do sino, uma combinação infernal, mesmo para quem fazia do mar a sua casa.

O telegrafista entregou ao capitão uma mensagem proveniente do Comando Naval, a informar que as barras de Portugal estavam encerradas, excepto Lisboa e Setúbal. A mensagem terminava com a informação que o mau tempo se iria manter por mais vinte e quatro horas.

Amarrotou impaciente o bilhete e pensou que teria de seguir em frente até ao destino, abandonando em definitivo a ideia de se abrigar na barra do Douro, apesar do perigo que constituía a sua entrada com mar grosso.

- Vamos para as Rias… Merda de país, que nem um porto de abrigo tem…

Deixou-se cair exausto no seu cadeirão ainda com o aviso telegrafado na mão. O Imediato Sullivan pigarreou e quando o capitão levantou a cabeça disse-lhe:

- Porque é que não vai descansar uma ou duas horas, senhor? Eu fico aqui e se houver algum problema chamo-o…

- Não, Senhor Sullivan… é meu dever estar ao comando. Vou sentar-me aqui um bocado… isso basta-me. Envie um marinheiro à cozinha para me trazer alguma coisa de comer… e de beber.

As horas passaram, o mar continuava grosso e a chuva caía com abundância, como nunca se viu em terra firme. Entre períodos de modorra e espertina, o Capitão Jones manteve-se no cadeirão de comando instalado na ponte, mesmo ao lado da enorme roda do leme. A noite cerrou-se e um clarão fugaz adivinhava-se, mais do que se via, a leste, entre a cortina de chuva que nada fazia abrandar.

- Capitão… senhor – chamou o imediato – vê-se um clarão a estibordo… certamente um farol.

O Capitão Jones aguardou alguns minutos com a cabeça encostada ao vidro de uma janela lateral da ponte, com as mãos a fazerem uma concha junto aos olhos. Debruçou-se sobre o mapa e apontou para um ponto na costa portuguesa e correu o dedo até outro ponto. Abriu o compasso, mediu na escala, calculou mentalmente o tempo que demoraria a travessia e concluiu:

- Três horas… Daqui a três horas temos abrigo. Marinheiros, olhos bem abertos ao próximo farol… e quero o sineiro a tocar como um homem… parece um rabeta a fazer-lhe cócegas…

(continua)