quinta-feira, 9 de abril de 2009

Crónica ao espelho de um quarto de hotel

Há dias li uma crónica do António Lobo Antunes onde fazia uma reflexão frente ao espelho de um qualquer quarto de hotel. Para dizer a verdade já não me lembro muito bem sobre o propósito da reflexão, mas retive a ideia que o quarto era sempre o mesmo só mudava de terra e de país sucessivamente. A mesma cama, o mesmo espelho, os mesmos cortinados em volta da janela. A mesma cadeira onde ele se sentava para escrever a crónica, um misto de obrigação contratual com a revista e a vontade de escrever qualquer coisa, só para não perder a mão.
Lembrei-me dos tempos em que também vivia mais tempo nos hotéis que em casa por dever de ofício. Dos tempos em que saltava do hotel para o restaurante, da residencial para a tasca, da cidade para a aldeia, da auto-estrada para o sinuoso caminho municipal. Com objectivos, mas sem fim. O ciclo repetia-se uma e outra vez, a ponto de tudo me parecer igual, mesmo diferente. Tal como o quarto de hotel do António.
Nos balcões de recepção onde já era tratado pelo nome, onde me cumprimentavam com modos quase familiares, já não preenchia fichas, recolhia a chave e subia sem precisar de ser orientado dentro do edifício. Também eles sempre iguais, corredores compridos, números nas portas, números altos como tivessem aquela quantidade de quartos…
Sube-se sempre, é algo fantástico, nunca os quartos de hotel são em pisos inferiores. Sempre a subir, abre-se a porta e é sempre o mesmo. O roupeiro com três cruzetas, o espelho e a mesa com o bloco e a esferográfica. A televisão a um canto em frente às duas camas gémeas, a Bíblia na gaveta da mesinha de cabeceira.
Na casa de banho a sanita selada com a tira de papel branco, o rolo do papel higiénico com a dobra em v, as toalhas turcas dobradas sobre o varão, o copo de vidro virado sobre a prateleira ao lado do espelho iluminado. Por falar nisso, prefiro os espelhos dos quartos, como o António.
Com uma moldura fina em madeira, são geralmente mais humanos, dão-nos imagens mais simpáticas, mais quentes que os espelhos da casa de banho. Caras ensonadas, por barbear, cabelos em pé de triste figura. Sem falar nas caretas involuntárias que oferecemos ao espelho cada vez que fazemos a barba, a olhar de lado, a esticar a pele do pescoço ou do queixo, macaquices aproveitada pelos Beans para ridicularizar os espelhos… não a nós.
Mas é com o espelho do quarto de hotel que nós falamos, que apresentamos o problema que durante a tarde nos deixou sem resposta. Quem sabe se esses espelhos são feitos de algum produto especial, com algum magnetismo para nos sugerirem soluções?
Basta sentarmo-nos à sua frente, pousar as mãos sobre a mesa, pegar no bloco e na esferográfica publicitária, nem sequer é preciso fazer uns rabiscos… Desculpem, se calhar convêm, para a concentração.
Quando levantamos a cara para o espelho vemos um sujeito de ar cansado, que não sabe muito bem o que está ali a fazer, que não vê a família há um par de dias, que fala como um papagaio de circo para tipos que tem pouca vontade de o aturar e que também não vêem a família ainda há mais tempo e também dormem em quartos de hotel, com espelhos como este, que todos os dias olham… e não se reconhecem, como eu.