terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O Largo do Sol Posto

Nasci numa casa da rua 5 de Outubro em Vila Praia de Âncora, que tinha saída nas traseiras, para o Largo do Sol Posto, o local de todos os convívios e brincadeiras da rapaziada, ao longo de muitas gerações. As minhas recordações, extraídas do baú coberto de poeira, como todas as recordações com mais de quarenta anos, tardavam em aparecer.
A ajuda veio, mais uma vez, da minha mãe, que aos noventa e um anos, ainda não se esqueceu do que a mim, já não me lembra. Muitas das personagens que vou tentar repor, não são”do meu tempo”, mas outras ainda me são familiares, mesmo que já não consiga definir as suas feições ou outros pormenores.

Quem entrava no Largo do Sol Posto, vindo da rua 5 de Outubro, dava de frente com a casa da Tia Claudina, mais tarde comprada pela Gloria do Libas e que ainda lhe pertence onde vive com o filho, o Hernâni, o mais novo da geração que, como eu, cresceu a brincar no Sol Posto. A Tia Claudina negociava em manteiga que comprava nas feiras e vendia em Valença, provavelmente para seguir para Espanha, deduzo eu. Apesar de solteira, tinha três filhos, o Rui, o Luís e o Zé que abriu uma sapataria onde hoje (ainda) é a loja de fazendas do, recentemente falecido, sr. Luís Gomes.
Para o lado esquerdo (norte) vivia a Taputa, naquela casinha pequena que fica no quintal do Tampa. Alguns dos seus filhos eram mais ou menos da idade das minhas irmãs e eram seus parceiros de brincadeiras. Anos mais tarde, foram viver para o bairro dos pescadores.
A seguir morava a Maria de Jesus e o António, pais do Tio Tampa, que depois herdou a casa, na qual ocorreu uma tragédia, quando uma das crianças da Maria de Jesus caiu pelas escadas exteriores e espetou-se com uma tesoura, que lhe causou a morte. Um dos outros filhos, era conhecido pelo “Maldito” e uma das filhas, a Lina Ramos mais tarde teve uma loja na rua Miguel Bombarda. O António Verde era pescador e amigo, parece que em demasia, do “copo”. Nesta casa, anteriormente terá vivido o Pedro Bogalho, que era familiar dos Tampa e seria de origem galega.
Na casa seguinte vivia a Tia Sara, que depois comprou casa na rua 5 de Outubro e vendeu a anterior à Pinotas, que vendia peixe e ao homem que era pescador. Pelo menos um filho dela andou comigo na escola, lembro-me que lhe faltava um dedo do pé.
Depois havia a casa da Tia Maria Chapa e do Tio Manel, ainda o recordo com o baú na mão e os socos a arrastar na calçada, quando vinha do mar. Nessa casa criaram-se muitos filhos e uma rapariga, a única de oito irmãos. Ainda me lembro de alguns, como o Faustino, o Lula, o Manuel e a Carmesinda. Todos eles já tinham idade para serem meus pais.
Onde hoje mora a Apolónia morava a Pataca, cujo marido também era pescador mas não sei o nome. Um dos filhos casou com a Gabina e moravam no Bairro, outro filho era o Vermelho, que abalou para a França. A Pataca, vim agora a saber, era irmã do pai da minha sogra, o Rile.
A última casa era da Pinta e da irmã, a Cassilda. O nome da Pinta era Maria do Gaspar, andava ao jornal e a Cassilda servia na casa do Luís carteiro. Este Luís, morava também no Largo do Sol Posto, na casa que mais tarde foi do sr. Casimiro da Luz. O carteiro tinha fama de ser caloteiro, de abrir correspondência e tirar os valores que traziam. Se calhar não era só fama!
A Pinta tinha um filho e, alem de andar ao jornal, também vendia peixe, indo às vezes na camioneta, com o meu avô Abel. Parece que não iam só vender peixe… A Cassilda tinha uma filha que vivia em Lisboa. Mais tarde venderam a casa ao Rile e à mulher, a Lurdes Pregueira, avós maternos da minha mulher. Hoje a casa pertence à minha sogra.
Lá para cima, só havia a casa do Apolinário, que vivia num autêntico deserto. Só muitos anos depois, o Almirante Ramos Pereira construiu a sua casa, a “casa do monte”, num terreno escarpado, que lhe foi oferecido pelo Larica.

Na quelha, hoje rua Higino Lagido vivia a Cristovinha que era parteira, ou melhor ajudava aos nascimentos, que naquele tempo aconteciam em casa. Foi ela que assistiu à minha avó Delfina durante os cinco partos que teve. Tinha uma filha que casou com um irmão da Cândida Moreira, falecida recentemente e foram morar para Lisboa. A Cristovinha acabou por ir para junto da filha e deixou a casa para o Tenente Ribeiro e a mulher a Rosinha, que ali tiveram e criaram os filhos.
Também ali morava a Tia Deolinda com o filho, o Daniel e o marido, que emigrou para o Brasil. O apelido deles era Brita Aranha, não sei se da parte da mulher, se da parte do marido. Tempos depois, a Tia Deolinda acabou por ter uma filha, de um parente dos Eduardos, de apelido “Caseiros”; essa rapariga a Leonilde, mais tarde casou com o Álvaro, que também ficou conhecido por Brita Aranha.
Quem foi morar para a quelha foi o Chico do Chiné quando casou com a sr. Ingrácia. O Chico era funileiro, como o irmão, o Juca e tinha uma pequena oficina na rua 31 de Janeiro, um pouco abaixo do antigo posto da GNR.
Do outro lado da quelha, morava a Tia Lourença que tinha duas filhas, a Umbelina e a Joaquina; esta ultima, mais tarde, teve uma taberna na rua Laureano Brito, mais conhecida por “rua das árvores”.
A Umbelina casou com um tipo bem parecido, mas um bocado vadiola, que costumava passar os dias pelas tavernas ou a jogar à malha. Deste casamento nasceram três filhos, o Faustino, a Judite e a Soledade que ficou com a casa e hoje vive no Lar de Santa Rita. A Soledade teve, na juventude, um filho do Adérito dos Eduardos, o Fernando Moreira, que apesar de bastante mais velho, ainda brinquei algumas vezes com ele. Digamos que, no meu tempo, o Fernando era o chefe das “tropas” (e o que mais disparates fazia), que pelo Sol Posto andavam.
Na esquina da quelha, com a rua do Sol Posto, ficava a casa do Regedor, homem alto e magro que tinha cinco filhos, a Castorina, a Constança, o Luís, a Maria e o Tone, mais conhecido por Tone Poipa. A Castorina teve dois filhos do Dr. Fanzeres que morava na Praça da Republica, mais ou menos onde hoje é a papelaria; depois esse tal dr. Fanzeres foi viver para a Meadela.
Numa casinha do quintal, morava a Tia Júlia Pelada e a filha a Ester, a quem já me referi num conto anterior, sobre o meu avô. A Tia Júlia, conheci-a já velhinha, mas toda despachada, a entregar os telegramas e a trocar noticias, novidades e outras coscuvilhices, por todo o lado. Não era por acaso que chamavam a Pelada.
Os do Cravo moravam do outro lado da quelha e negociavam em ovelhas e cabras. Havia duas raparigas, a Rosa e a Zulmira que mais tarde foi servir para Lisboa ou para o Brasil. O Zé do Cravo é filho de uma delas e de um indivíduo que era carregador da CP na estação de Viana. Esta casa passou para o Poipa e ainda lá vivem os seus herdeiros.
A Tia Deolinda mais a filha, acabaram por vender a casa da quelha e comprar a casa seguinte, do lado direito, para quem desce a rua do Sol Posto.
A seguir morava o sr. Casimiro da luz, que depois mudou para outra casa, no largo do Sol Posto, em frente à casa da Tia Claudina. Depois era a casa do Cagante e da mulher, a Eva da Cutêla que tinham um barrasco de cobrição. O Cagante era um bocado bronco, não falava com ninguém e mudaram-se, mais tarde, para a zona do Viso.
Já quase a chegar ao largo, vivia a Pulquéria a quem todos tratavam por Quera e o marido, que acabou por morrer num naufrágio e não tinham filhos. A Quera era muito amiga da srª. Maria, mulher do Casimiro da luz, que viviam com algumas dificuldades; o dinheiro era escasso e muitas as bocas para alimentar. A Quera que vendia peixe por essas freguesias dentro, regressava com algumas ofertas que obtinha nas casas de campo. Ora vinham uns nacos de broa, ora uma talhada de toucinho, às vezes uns ovos, umas couves, sei lá, o que se arranjava. A Quera partia essas dádivas com a amiga e assim ajudou-a a sustentar, aquele rancho de filhos.
Depois da Quera ter ido viver com uns familiares, julgo que a Prudência e o Zé João, do outro lado da passagem de nível dos bombeiros, mudou-se para essa casa o Juca e a Bonança.
O Juca era latoeiro ou funileiro e trabalhava numa divisão ao lado da casa, que era minúscula. Lá nasceram os filhos o Zé e o Tóninho, nossos parceiros de brincadeiras e era uma delícia estar perto do Juca, pois estava sempre bem disposto e pronto para uma boa partida ou para uma piada. É “mundialmente” famosa, a história do porco, que o Juca dizia não gostar de farinha.
Em frente havia uma casa e terreno que eram da Ana do Presa, que vendeu ao Augusto Meira de Afife e à mulher a Ingrácia, que aí tiveram quatro filhos, o Jorge, o Simão, o Álvaro e a Natalina. O Álvaro morreu novo, com vinte anos, de tuberculose, o Jorge casou com a Ana da Botica e o Simão casou com a irmã mais velha da minha mãe, a Felisbela. A Lina Meira que herdou a casa faleceu há poucos anos e era casada com o Toninho carregador.
Ali também vivia o Rogerinho, filho da Maria Bezunza, que apesar de ser bastante mais velho que eu, era óptimo parceiro para a brincadeira.

Já dentro do Largo do Sol Posto, havia um terreno que pertencia ao sr. José Gonçalves e à D. Hermínia, os pais da D. Maria Vitória (Nem), que venderam parte do terreno e da casa na rua 5 de Outubro, ao Zé Ferreiro, que tinha ganho muito dinheiro nos negócios de volfrâmio, lá para os lados de Orbacém. Foi neste terreno que nasceu a oficina de reparação de automóveis, que o Zé Ferreiro montou e que era a nossa catedral de brincadeiras, quando éramos catraios. Quando estava fechada, o portão era uma das balizas, sendo o portão preto da quinta, a outra baliza. Eu já vou falar dessa quinta.
A seguir era a pensão dos meus avós, que fazia esquina com a rua 5 de Outubro. Do outro lado, aquelas casas que tem frente para a rua principal e traseiras para o Sol Posto, numa das quais eu nasci, eram duns parentes da D. Laura, a velha, porque tinha uma filha também chamada Laura. Pois essa D. Laura, herdou aquelas casas, ela que era de Caminha, casada com o Libório das Finanças e, segundo consta, tinha um “amigo” que também era hóspede da sua casa, o Magalhães de Lisboa.
Na época, vendia as casas por 1.500$00 e ninguém quis, nomeadamente o meu avô Abel, a quem ela lhe rogou a venda, várias vezes.
A filha desta senhora, como já disse, tinha o mesmo nome da mãe, foi casada com um funcionário das finanças, o Cardoso.

Finalmente havia a D. Carolina Maia, que tinha vindo do Brasil e era proprietária dos terrenos, a tal quinta com o portão preto, onde hoje está construído o mercado, os arruamentos e a casa principal com a frente para a 5 de Outubro.
O marido desta D. Carolina fez duas filhas, a Henriqueta e a Laida, a uma peixeira, infelizmente não sei o nome, que foram criadas na casa da “madrasta”, se assim se pode dizer. A Carolina Maia, por dificuldades financeiras, começou a pedir dinheiro emprestado à D. Clementina Morais Cabral, que era de Valença, até que esta acabou por ficar com a quinta a troco de 800$00, naquela época 800.000 reis o que era uma ninharia.
A D. Clementina teve dois filhos, um rapaz que chegou a juiz desembargador e a filha morreu em criança. Imagino que a árvore gigantesca, uma Araucária que está no jardim e que é um dos ex libris da nossa terra, tenha sido plantada ainda antes da D. Carolina Maia ter vindo do Brasil.

E pronto, cheguei ao fim, contei-vos aquilo que apurei, se calhar com algumas incorrecções e certamente com muitas omissões. Cada uma destas casas tem uma história, não, cada uma destas casas, tem muitas histórias, tantas como as gerações por lá passaram.
O Largo do Sol Posto com a abertura dos múltiplos arruamentos ao longo dos últimos vinte e tal anos perdeu protagonismo, passa despercebido, quase incógnito perante os apressados automobilistas que o cruzam e voltam a cruzar a toda a hora. Isso não significa que perdeu, de todo, a sua identidade e que não guarda a memória, de tantas vidas.
Vidas como a minha. E eu não quero esquecer!
Esta crónica foi escrita há cerca de dois anos. Entretanto a vida no Sol Posto decorre como em qualquer outro lugar, chegam uns, partem outros.
A minha mãe faleceu na semana passada e apenas restam a D. Glória e o sr. Teles como residentes mais antigos.