terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O fim da "Macaca"

A “Macaca” era um barco tipo poveiro, com quilha, de seis bancos e com uma tripulação de doze homens.
O Galinhaço era o arrais e um dos seus proprietários, em sociedade com a tia Ana Rosa, viúva do Domingos Verde, que após ter naufragado na entrada do portinho, pouco tempo durou.
Dizem que foi de estar muito tempo na água, mas o desgosto daquele lobo-do-mar, foi a sua principal doença, que o levou em pouco mais de dois meses. Deixou ao cargo da mulher criar os três filhos, duas raparigas e um rapaz, a Tia Ana Rosa, de baptismo Ana Rosa Malhão Verde, após ter esgotado as lágrimas salgadas como o mar, arregaçou as mangas e tratou de garantir o sustento dos seus.
Destemida e obstinada, como sempre fora, fizera sociedade com o tio Galinhaço, pai do Amílcar e do Plácido Silva, e exploravam a meias, um dos melhores barcos do nosso portinho.

Ao fim de algum tempo, a tia Ana Rosa que apontava todas as capturas e respectivas vendas, para mais tarde cobrar e no fim da semana fazerem contas, começou a desconfiar que nem tudo era feito às claras e com o seu conhecimento.
Com ou sem razão, desconfiava que havia peixe que era desviado para ser vendido por fora, manobra que era feita com o acordo do arrais. Seria assim? Não o sabemos, mas este foi o motivo porque decidiram acabar com a sociedade.
O Galinhaço dispôs-se a comprar a parte da Tia Ana Rosa, mas ela não queria ceder ao seu ex-sócio. Como tinha boas relações com o Galinhaço, o próprio tenente da capitania veio interceder, para que a recalcitrante Tia Ana Rosa reconsiderasse e vendesse a sua parte do barco ao Galinhaço.
- É para deixar aos seus filhos, mulher! – Argumentava o tenente
- Pois é sr. Tenente, mas eu também tenho um filho e quero-lhe deixar a ele o barco. Vender, não vendo, mas se o Galinhaço quiser, compro-lhe eu a ele, pode-lhe dizer isso da minha parte.

Mas o Galinhaço, desfeiteado por aquela mulher teimosa, também ele não cedeu e após muitas tentativas de acordo falhadas pela intransigência dos ex-socios desavindos, decidiram serrar o barco ao meio, operação efectuada no portinho, perante todo a gente que quis assistir.
Depois de sorteadas as partes, calhou ao Galinhaço a proa e à tia Ana a popa, bocados que, tempos depois, começaram a ser desfeitos para lenha do fogão.
Foi este o triste fim da “Macaca” que se consumiu nas entranhas de ferro dos fogões onde fervia o caldo e que aqueciam as pobres habitações durante o rigoroso e longo Inverno ancorense.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O encontro

O encontro do Rio Âncora com o Oceano Atlântico, em Vila Praia de Âncora

Foto de Filipe Araújo



terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A martelada

O assunto já estava combinado há muito. Faltava chegar o mês de Agosto, para na primeira semana fazermos mais um acampamento. Vai o Pedro e o João, que já fazem isto há vários anos, vou eu e a minha filha Joana, também já acostumada a estas aventuras.
O João só não vai mais vezes porque a mulher parece confiar pouco nele e ainda menos nos amigos dele. O homem anda todo o santo ano a prepará-la psicologicamente para o acontecimento, as férias de verão com a malta, mas é sempre uma fita das antigas, principalmente quando lhe telefona. E telefona-lhe um par de vezes por dia. Durante a primavera, disse-nos várias vezes, que estava a ficar gordo e que tinha de fazer dieta.
- Quando formos acampar, só vou comer sopas de hortaliça, que já aprendi a fazer e saladas, muitas saladas.
- Ainda te vão crescer asas, como os grilos – brincávamos nós.

Fomos, para variar, para o sítio do costume, a Galiza. Os dois “cromos” decidiram não levar automóvel e foram de bicicleta. Para isso estiveram várias semanas a treinar a musculatura e o traseiro, amolecidos durante o Inverno. Combinamos que eles iriam à frente, logo de manhã, para poderem ir nas calmas, e eu iria durante à tarde, no Ford Fiesta da minha mulher.
Como só ia eu e a Joana, levávamos pouca tralha e o Fiesta chegava e sobrava. Eles tinham engatado o pai do Pedro, o Celestino que às vezes também alinha numas escapadelas de fim-de-semana, para levar-lhes os “tarecos” e ajudá-los a montar a tenda. O Pedro deixou o habitual iglô em casa e trouxe uma confortável tenda familiar, algo antiga, mas espaçosa e ainda em bom estado.
Quando eu cheguei, estavam os três de volta da armação da tenda, a tentar encaixar os ferros. Claro que com a minha chegada o trabalho parou e começamos todos a dar à língua.
Contaram-me que tinham chegado cedo ao parque e foram de imediato até à piscina dar um mergulho. Só ao fim de largos minutos dentro de água, é que o Pedro se lembrou que tinha o telefone no bolso dos calções. E lembrou-se porque o desgraçado começou a vibrar. Estavamos a começar bem!
Mas a melhor, a melhor mesmo, é que o Pedro tinha arranjado uma admiradora, uma espanhola chamada Consuelo, que se derretia toda, cada vez que o via. Só havia um problema, é que a rapariga era um bocadinho forte, “un pouquito ancha”, pesava seguramente mais de cento e vinte quilos!!!
- É pá, não sabia que tinhas carta de pesados!
- Então, na tropa andaste em artilharia, não?
E continuamos com a brincadeira, até que o Celestino começou a impacientar-se:
- Vamos embora, vamos embora, senão nunca mais acabamos.

Relutantemente lá voltaram ao trabalho enquanto eu e a Joana começamos a descarregar o carro e a montar a nossa tenda, o iglô azul celeste, que já é mais conhecido que os tremoços, naquelas bandas.
Às tantas, ouvi um deles dar um sonoro “aiiii…”, olhei e vi o João agarrado a uma mão.
- Que foi, pá, aleijaste-te? Como é que arranjaste isso?
Vermelho como um tomate, ele nem piava, agarrado ao dedo, afinal tinha sido um dedo, um polegar que tinha levado uma martelada do Celestino que, como não conseguia unir os encaixes, decidira usar um maço de borracha para ajudar na tarefa. Como o João estava segurar um dos ferros acabou por levar uma “bordoada” do pai do seu amigo Pedro, que se atirou para o chão, sufocado com o riso. Com amigos destes…
Um agarrado ao dedo, outro à gargalhada, o Celestino muito sério, dizia: - Devias ter tirado o dedo, quando comecei a martelar.
- Vai meter isso dentro de água – aconselhei eu, que também me queria rir, não por ver o parceiro a sofrer, mas por saber que ele devia ter uma vontade maluca de mandar uns “carvalhos” e uns “coza-se”, que só não o fazia, por respeito pelo Celestino.
Acabaram por ir os dois pôr o dedo de molho, fiquei com o Celestino a ajudá-lo a montar a tenda. Calmamente, ele explicou-me: - Estás a ver, foi ao martelar aqui, ele tinha a mão assim e dei-lhe!
- Então porque é que não o avisaste para segurar mais atrás?
- Pensei que ele ia tirar a mão.
- Olha lá, se pegas no martelo, vou-me já embora – avisei-o eu.
Estávamos com a tarefa praticamente terminada, quando eles apareceram, um ainda a rir o outro com o polegar levantado como no sinal OK, meio arrocheado e inchado.
- Dói-te?
- Fogo…, nem queiras saber.
Se já pouco fazia, o novo incapacitado aproveitou para dar ares de capataz e comandar o resto da companhia.
- Vai buscar aquilo, leva para acolá, tira isso daí…
O Celestino acabou por nos deixar sozinhos e aí começou o gozo, pois o João confessou logo que o que mais lhe apeteceu foi mandar o Celestino àquela banda, principalmente quando ele se desculpou, dizendo que pensava que o outro ia tirar o dedo.
O telemóvel aquático do Pedro era outro dos motivos de chacota, até porque o nadador salvador da piscina, fez uma cara de espanto, quando viu o Pedro a tirar o telefone do bolso dos calções, dentro de água. O homem terá pensado que era uma nova tecnologia portuguesa de telefones submarinos!

- Deixa lá o dedo e vamos dar uma volta. No regresso temos de fazer compras. Vocês trouxeram alguma coisa de comer?
- Trouxemos batatas e cebolas.
- Olha estes! Então vindes carregados de Portugal com isso? Parece que não há batatas em Espanha. Nem uma garrafa de vinho, nem um chouricito? Que raio tendes na geleira que está tão pesada.
- São uns iogurtes e uns sumos que eu ando a tomar, são light, com poucas calorias – diz o João.
- Outra vez a merda da dieta? Estamos feitos.
- É pá, foi a minha mulher que comprou, tinha que trazer.
- Pois, e o que vamos comer logo?
- Podemos fazer uma feijoada, – diz o Pedro – que dizeis?
- Por mim está bem, e tu Joana?
A Joana que nunca diz não à comida, também assentiu. Viemos carregados do supermercado com latas de feijão, toucinho fumado, vários tipos de chouriças (huuum…), costela e sei lá que mais; e vinho, claro! Se calhar pensavam que ia comer feijoada, com os sumos sem calorias, que o outro gajo levou!
Primeira dificuldade foi arranjar um tacho à medida, acabando por ser eleita uma panela toda bonita, com uns remates dourados, de dimensões generosas, que o João surripiou lá em casa. Ai quando a mulher soubesse…

O Pedro é o habitual encarregado dos refogados, que tempera a preceito e aos quais junta um pouco de quase tudo. Leva cebola, alho, cenoura, às vezes pimentos, folhas de loureiro, sal, pimenta e azeite, nunca óleo. Acho que não esqueci nada.
Fomos cozinhando, petiscando, brincando com o dedo (ainda ao alto) do nosso infortunado amigo, acho que jogamos às cartas enquanto refogavam as carnes, a noite caía e já era hora de acender o nosso projector, um luxo que não dispensamos, quando “tocou o pau no balde”. Era uma panela e peras!!!
- Tanta comida, ainda vai sobrar para amanhã.
- E então, eu gosto de feijoada aquecida, do dia anterior. Ainda fica melhor.
Começamos a comer e conforme os pratos esvaziavam, voltavam a ser servidos.
- Então essa é que era a tua dieta? Só sopa de hortaliça e saladas – gozava o Pedro
- Aquela martelada abriu-me o apetite, amanhã, faço uns quilómetros de bicicleta e já recupero.
Depois de muito comermos, o Pedro espreita para dentro da panela e desabafa:
- Também só por isto, não vai ficar!
E toca de esvaziar o resto da feijoada no prato. Ainda hoje não sei onde meteu tanta feijoada…
Na hora de lavar a louça o João ficou isento, mas solidariamente acompanhou-nos aos lavadouros, enquanto o Pedro vaticinava: - Agora tenho de dar umas voltas para desgastar.
- Vais ter de ir até Âncora a pé, pelo que tu comeste.
- Comi bem, mas não foi nada de mais…
- Vá comer as guelras ao c… - dizíamos nós.

Aquele parque tem uma longa avenida central, de extremo a extremo, talvez uns trezentos ou quatrocentos metros, que foram percorridos muitas vezes, lentamente, em passo de passeio, a conversar, com algumas paragens, apenas para reabastecer, umas “bejecas” fresquinhas.
Estávamos em pleno exercício de caminhada quando nos cruzamos com a Consuelo que nos diz: “Lo mas guapo, es lo mas pequeno”. Claro que o mais pequeno é o Pedro que já não sabia onde se havia de meter e olhou para nós como a dizer “não me deixem só, por favor”.
Naquela noite, como habitualmente, decidiram dar um verdadeiro conserto de roncos que rivalizou com o canto dos grilos e das cigarras. Ora subia um de tom, ora subia o outro. Eles dizem que eu também ressonei mas é mentira, pura mentira!

No dia seguinte, a Joana acordou mal disposta, mas não nos preocupamos em demasia, devia ser passageiro, mas o certo é que o mal-estar persistiu durante o dia e nem sequer quis ir para a piscina, que ela adora. Preferiu ficar na tenda, quase todo o dia a ler.
Ainda de manhã, o Pedro e o João foram a Valença comprar um telemóvel novo, enquanto o aquático, estava com as tripas ao sol a secar, em cima de uma das tendas.
Ao almoço, comemos qualquer coisa ligeira e à noite decidimos jantar algo mais substancial, visto estarmos cada vez com mais apetite. Massa com carne, outra vez na mesma panela e em dose idêntica à feijoada. Também não sobrou, apesar da Joana praticamente não ter comido nada. Ainda a tentei convencer a regressarmos a casa, mas ela insistiu em ficar.
Entretanto, a Consuelo que aproveitava sempre que via o Pedro, para lhe acenar ou dizer um piropo, “acampava” à noite, na esplanada do bar com um casal de velhotes, se calhar os avós, para deitarem abaixo umas canecas de cerveja. O velhote que andava apoiado numa bengala, com passos algo incertos, quando tocava a despejar a cerveja não lhe davam os tremeliques. Era vê-lo a meter a caneca aos queixos e o nível da mesma a baixar.
- Ainda se vai afogar – dizia o João, maravilhado com aquele prodígio da hidráulica.

Das sopas de hortaliça, das saladas e dos passeios de bicicleta é que ainda não viramos nada. Quando queríamos ir a algum lado, todos se dirigiam para o Fiesta; as bicicletas estavam lá encostadas a uma árvore e só serviam para pendurarmos as toalhas molhadas da piscina.
Ao terceiro dia, a Joana acordou com febre, vomitou e tinha diarreia; decidi desmontar a tenda e regressar a casa imediatamente, pois era uma gastroenterite e não havia nada a fazer. Foi para a cama repousar, enquanto os nossos amigos, lá ficaram mais algum tempo.
O João foi-se embora um dia depois de mim, devia estar com saudades da “cara-metade”, o Pedro recebeu a companhia do Celestino e da Quera e ficou mais uma semana.
Ah…! O telemóvel aquático, depois de seco, ficou a trabalhar lindamente e o Pedro, pelo que me disse, continuou a esquivar-se da Consuelo. Livra!!!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

As choupas... e o Mitra

Desde pequeno que gosto de pescar, comecei no rio a apanhar mujos e enguias, só muito mais tarde aprendi a pescar no mar. O equipamento era rudimentar, as canas eram "da India", as linhas duravam anos e só eram trocadas quando estavam manifestamente podres.
O meu primeiro carreto de mar, foi um Sofi ao qual lhe perdi o rasto, se calhar emprestei-o a alguém e esqueci-me. As primeiras pescarias eram feitas à noite no praial de Âncora, em conjunto com outros colegas, que também tinham o gosto pela pesca. Apanhavam-se uns cachiços e umas chincaronas ou umas fanecas, de verão com o mar "chão".
Ainda sou do tempo de levar uma vela, que acendíamos dentro dum buraco cavado na areia, para termos luz para iscar e desensarilhar as tansas. Focos eléctricos eram luxos raros, os quais não estavam ao nosso alcance.
Aprendi umas coisas com o Cabuca, naquela altura um "ferrinho" da pesca e um conhecedor das condições do mar. "Hoje não vale a pena, porque o mar mexe muito por baixo" ou "é de ir, hoje é lua, mas só depois das nove, com a maré para cima".
Estas certezas ainda hoje funcionam, baseadas num conhecimento de muitos anos de experiência e de ouvir dizer os mais antigos. A minha experiência, porque eu agora também tenho (alguma) experiência, leva-me a concluir que nem todos estes conhecimentos são verdadeiros, pelo menos nunca os consegui provar. Mas que muitos funcionam, lá isso funcionam.
Outra coisa que aprendi com a pesca, foi a desconfiar da treta de alguns, que pescam sempre muito, mas quando estão sozinhos. Enfim, albarda-se o animal à vontade do freguês...

Também aprendi que só se contam as vitórias, as derrotas ficam no esquecimento, ninguém conta aventuras de pescarias, onde não se apanhou nada.
Com o tempo, conversando com outros pescadores, lendo uns artigos, fui evoluindo, fui adquirindo novo material, experimentando novas técnicas, fui aprendendo. Não apareci pescador feito, como outros, que começam a pescar hoje e na semana a seguir já discutem como se tivessem com eles o conhecimento de uma vida. Há gajos assim!
Foi realmente a pescar à noite, no praial de Âncora que comecei, aproveitando para ir para Afife ou Moledo quando arranjava boleia. Ainda cheguei a ir algumas vezes de bicicleta e motorizada, nomeadamente com o Cabuca que, em regra, apanhava mais peixe, que os outros todos juntos.
Costumávamos usar a "sintética" como isca, nome que damos à teagem. Entre Viana e Matosinhos é conhecida como "linhas", não tendo conhecimento de outra terra, sem ser Âncora, onde a teagem é conhecida por sintética, nem sei porquê.
Esta isca é muito fina, muito eficaz e um grande "pincel" para a apanhar. Apanhamo-la encostada às pedras, enterrada na areia, nos restos de conchas e de pequenos seixos, que tem de ser retiradas à mão. Quem quiser ter mãos e unhas apresentáveis não pode mesmo ir apanhar isca. Depois de lavada, a isca é metida em serrim de pinho e conservada em local fresco ou no frigorifico, aguenta viva dois dias.
Desde há meia dúzia de anos, tem sido introduzido o casulo e a coreana, que se compra em Viana, no Jaime Ferraz, para aqueles que não podem ou não querem "lixar" as mãos.
Estas iscas usam-se na areia, pois na pedra, durante o dia, usam-se iscas como o caranguejo de muda, a lula, a amêijoa, a sardinha ou a navalha. Mas se pescar na areia é para quem quer, na pedra é só para quem sabe e mesmo para esses não é fácil.

Muito mais tarde é que apareceu a técnica de pescar com amostra, seja colher, peixe de borracha ou as mais sofisticadas Rapallas. Chama-se a isso corricar; lança-se para a água e colhe-se mais ou menos lentamente, fazendo nadar a amostra, enganando o peixe que se atira e fica preso no anzol.
Aconteceu-me um episódio curioso nos primeiros tempos de aprendizagem da amostra, que vos quero contar. Uma tarde, peguei na cana e fui para o Caído, na extrema entre Vila Praia de Âncora e Moledo, uma zona que faz uma enseada e na qual se pode pescar confortavelmente de cima de uma das grandes pedras que por lá existem. Montei a bóia de água, pus um estralho (tenso) comprido, com um peixinho avermelhado.
Experimentei e como trabalhava em condições, toca de explorar o mar à minha frente. Ora atirava para sul, ora atirava par norte, quase a roçar aquela pedra, até que senti uma dor na nuca, como se tivesse levado uma pedrada. Passei a mão pelo sítio dorido e encontro o meu peixinho lá espetado profundamente. "Que grande merda" pensei eu, sem saber muito bem o que fazer. Sangrava um pouco, doer só se mexesse e não havia forma de sair.
Tinha acontecido que ao fazer um lançamento, esqueci-me que a amostra baloiçava no final do estralho comprido e, por azelhisse, não deixei parar o tal balancear, acabando o anzol por se espetar na minha nuca, quando chicoteei a cana para frente.
Cortei a linha junto da amostra, arrumei a cana e demais apetrechos, rumei para a Policlínica, onde me apresentei com um flamejante peixe vermelho a adornar a "mona".
O enfermeiro, depois de rir e gozar com a situação, foi buscar um vulgar alicate, com que cortou o bico logo atrás da barbela e desenfiou tranquilamente resto do anzol. Nunca aquele anzol tinha apanhado um animal tão grande!

Foi da maneira que aprendi com o erro, nunca mais me aconteceu nada do género. O que me acontecia frequentemente era perder as amostras e as bóias. Foi uma aprendizagem relativamente cara, mas o que importa é que aprendi a pôr a amostra, mais ou menos onde queria.
E ao fim de várias sessões de pesca lá apanhei o meu primeiro peixe a corricar. Ao princípio até pensei que tinha, mais uma vez, prendido em algum sargaço ou alguma pedra, só tomei consciência que era mesmo um robalinho, quando senti o gajo a "espernear". Acho que me senti um pescador a sério, um pescador que “já sabia umas merdas”. Como estava enganado!
Outro dos primeiros peixes que apanhei a corricar foi em frente à minha casa, na boca do rio, com um Raglou vermelho (peixe de borracha) e que pesava um pouco mais de quilo e meio. Ainda por essa época, um dia acabei dentro de água, junto com a cana e o peixe, pois ao tirar um “cachiço” perto das Paredes Altas, desequilibrei-me e caí ao mar. Mais uma vez, a falta de experiência a vir ao de cima, embora isso de cair à água, aconteça ao mais pintado.

Voltando à pesca ao fundo, na pedra, modalidade difícil mas compensadora, quando se tira um peixe, quase sempre de tamanho superior aos que se apanham na areia, um dia fui pescar, ao inicio da tarde para o Quintino, perto do Forte do Cão.
O tempo estava nublado, corria uma brisa não muito forte de sudoeste, a maré estava quase no baixa-mar e o pesqueiro já estava ocupado. “Raio de sorte” pensei eu cá em cima, junto ao parque infantil, olhando também para as “primeiras pedras”, mais a norte, logo a seguir à pequena enseada. Já lá estavam dois ou três pescadores espalhados e a ocupar os melhores sítios.
“Bem, vou para baixo, para o Quintino, está lá aquele gajo, mas há vários sítios onde pescar” e desci, cavalgando as pedras com a cana numa mão e o zote ao ombro, sempre com cuidado para não escorregar nas pedras molhadas, cobertas de sargaço e limo. Ao aproximar-me do pescador que já lá estava, reconheci o Mitra, um tipo que pesca bem, um verdadeiro mitra cheio de saberes e de manhas, não foi por acaso que lhe puseram o nome.
Como nos damos bem, até andamos juntos na escola primária, fui até à beira dele perguntar como estavam a correr as coisas; disse-me que já tinha uma ou duas choupas e convidou-me a pescar ao lado dele, porque havia espaço para isso. Como era mesmo para ali que eu queria ir, aproveitei o convite, preparei a cana, isquei e lancei para perto, pois o Mitra dizia-me que tinha tirado as choupas ali perto.
Só para me mostrar como era, tirou outra logo de seguida. Ele estava pescar com caranguejo de muda o que era uma enorme vantagem à partida, pois de uma forma geral, quando não se apanha uma choupa com caranguejo de muda, não se apanha com mais nada. Ora eu só tinha amêijoa branca, um isco bom para o robalo e apenas razoável, na maioria das vezes, para as choupas ou para os sargos. Podia ser que estivessem com fome e não fossem esquisitas!

E o Mitra ia tirando regularmente mais uma choupa, mais outra choupa e eu a “coar água”, nem um escorpião para amostra, nem um toque, as iscas iam e vinham direitas.
A maré subia, íamos recuando pelo interior da enseada e o meu amigo às tantas diz-me que se vai embora, contente com as suas oito choupas e a “abada” que me estava a dar. As choupas não eram grandes, mas tomara eu muitas daquelas, eu que ainda não tinha estreado.
Arrumou os tarecos e abalou deixando-me só em cima duma laje grande, já perto da areia. “Mais dois lançamentos e se não der nada ponho-me a andar”, pensava eu, deitando contas à vida e ao relógio.
No ultimo lançamento, estiquei mais para fora, onde há uns cabeços de pedra e areia entre eles, com a esperança no ponto mais baixo e sem fé nenhuma no sucesso daquele dia, quando de repente vejo a cana, que estava entalada habilidosamente numa fraga da laje, a dar um grande esticão e a ficar toda curvada.
O carreto, um velho, mas fiavel Mitchell 498, chiou quando a embraiagem funcionou e corri para a cana com o coração aos saltos. Levantei a cana, puxei-a suavemente para trás e senti o “melro” na outra ponta.
“Hum… choupa não é, pelo toque, isto é robalo”, afinei a embraiagem fechando-a meia volta, comecei a colher, devagar, devagar mas sem deixar folgar a linha. E o gajo a dar esticões, mas sempre a vir para terra, uma vezes mais ligeiro, outras vezes mais devagar, que nestas coisas não deve haver pressas.
Quando chegou perto da laje onde eu estava, vi que era peixe para mais de dois quilos, não deveria chegar aos três, mas às vezes engana.
Uma das rotinas que me habituei a fazer ao pescar nas pedras, é verificar sempre qual o melhor caminho para “encalhar” um peixe, se tiver a sorte de o apanhar. É que já vi muita boa gente com um peixe na ponta da cana, sem saber o que fazer e eu não quero fazer essa triste figura.
Por isso, sabia bem que tinha de passar o “melro” à volta da laje e fazê-lo encalhar entre duas pedras que estavam lá atrás. Dizer isto é fácil, fazer é um pouco mais difícil, como sabe perfeitamente, qualquer pescador que esteja a ler estas linhas.
O certo é que o gajo lá se foi encaminhando para o sítio ideal e com a ajuda da ondulação, acabou por ficar mesmo a jeito. Foi só saltar da laje e meter-lhe dois dedos nas guelras e o polegar pela boca abaixo de forma imobiliza-lo. Estava bem ferrado e o único perigo tinha residido no facto frequente, de roçar a linha em alguma pedra e “adeus peixe”. Mas este tinha-se portado bem e tinha salvo a tarde de pesca e a honra deste vosso amigo, que não se livrou de ter ficado a ver o Mitra a “limpar” as choupas, mesmo em frente ao nariz.

Se já estava convencido antes, mais convencido fiquei que o caranguejo de muda é “infalível” para as choupas desde que elas lá estejam. Confirmei nesse dia e reconfirmei depois, muitas outras vezes, que aquele pesqueiro, quando o tempo vira a sudoeste moderado, é muito bom e o peixe não costuma andar longe. Façam-me um favor, não digam a ninguém, isto são segredos, que não se contam a qualquer um!
Ah… o robalo mal chegava aos dois quilos e meio, foi preparado no forno, com umas batatinhas assadas, que vos digo, divinal…só é pena não apanhar peixe assim, todas as vezes que lá vou.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

A arribada do "Senhor na Cruz" 3ª parte

Em breve a escuridão voltou a rodeá-los. Com a noite, o vento amainou, a vela folgou e não houve outro remédio que colhê-la, dada a sua inutilidade.
Do fundo do baú do Gaspar saíram umas pataniscas e umas batatas cozidas que foram repartidas entre todos, pobre manjar que não aplacou a fome que agora sentiam, passada a angustia que a tempestade lhes causara. Dos restantes baús nada se aproveitava pois a água salgada tudo estragara.
Voltaram à faina dos remos, sempre para sudeste, cada vez mais perto de terra e mais perto do porto que os viu partir. Dois dias perdidos, um susto que nunca mais esqueceriam, a preocupação e a dor que certamente causaram às suas famílias, raio de vida.
Silenciosos, os homens remavam e matutavam nas agruras da vida do mar, a incerteza do ganho, o risco de vida.
À volta do “Senhor na Cruz” o mar já não era o do dia anterior. Apesar de ainda haver alguma ondulação, a ausência do vento tinha-lhe dado um tom de prata velha, reflectindo à parca luz do minguante. O silencio que só no mar é possível, apenas quebrado pelo chapinhar dos remos e o ranger de alguma tábua.

- Parem de remar – ordena o mestre, levantando-se para melhor observar as águas à volta do barco.
- Que se passa tio Tone?
- Temos sardinha à nossa volta. Rápido, preparem a rede, vamos dar um lance. Areosa, já sabes, tu continuas aos remos. Rodrigo, podes largar!
A rede castanha de fio de algodão, encascada há meia dúzia de dias, começou a sair borda fora, arrastando a cortiçada que havia de a manter à superfície. Com o leme virado a estibordo, a masseira ia largado lentamente a rede sardinheira em arco ligeiro. Agora distinguia-se perfeitamente o cardume perto da superfície, que fazia agitar as águas, como se fervessem. Mal tinham acabado de largar toda a rede, logo o mestre ordenou que a recolhessem sem demora.
- Já? Ainda agora largamos, tio Tone.
- Vamos alar que a rede já está pesada. Força aí na polé, Rodrigo.
Lentamente o pescador retira da água, braça a braça, unindo a cortiçada aos pandulhos, deixando cair a rede serpenteante no fundo da masseira. Não tardou a brilhar no escuro o dorso prateado das sardinhas emalhadas.
- Gaspar, ajuda-o que a rede está carregada. Com jeito para não melar a sardinha. Temos de ir desmalhar a terra…
Cada vez mais sardinha subia a bordo presa àquela armadilha, agonizando em estertores inúteis, logo coberta por outras braçadas de rede e mais sardinha agonizante.
Quando acabaram, o barco tinha apenas um palmo de borda fora de água, tal a carga que recolhera e a aurora já se anunciava.
- Vamos rapazes, hoje a Senhora da Bonança está connosco e também tem direito a quinhão, não seja eu homem de palavra. Já vejo a luz da Ínsua, daqui a nada estamos no portinho.

As noites eram curtas, faltavam duas semanas para o S. João, já era dia alto quando a masseira carregada passou ao largo da Ponta das Medas e entrou no portinho, esgotando as poucas forças que restavam àqueles esforçados remadores.
Um silencio respeitoso fez-se em terra e foram muitos os que se benzeram ao verem aquela embarcação e a companha que já tinham dado como perdida.
Quando o fundo tocou suavemente na areia, foram muitas as mãos que os ajudaram a saltar em terra. O silêncio quebrou-se com o choro da mulher do Gaspar que se lhe pendurou ao pescoço. Aquele pobre ainda tentou resistir, mas a comoção foi mais forte e duas grossas lágrimas rolaram preguiçosamente pela cara abaixo, marcando um trilho pela barba de três ou quatro dias.
- Ah Tone, que te julgamos perdido. Por onde andaste? Onde te abrigaste? – Pergunta o Manuel Catalão, dando uma forte palmada de amizade nas costas do Tone da Vista Alegre.
- Não me abriguei tio Manel. Mantivemo-nos ao largo e fomos arribados para Espanha, lá para o norte de La Guardia.
- Pois olha que aqui já ninguém dava nada por vós, as vossas mulheres puseram luto e até mandaram rezar missa.
- Ainda não foi desta e com a graça da Senhora da Bonança regressamos vivos e com a rede cheia de sardinha. Vamos começar a desmalhar que já se faz tarde e é preciso levá-la para a venda. Vamos a isso rapazes!
FIM

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

A arribada do "Senhor na Cruz" 2ª parte

O mar era cada vez mais, empurrado por rajadas de vento que pareciam chegar de várias direcções.
A velha candeia presa na ponta do mastro tinha-se partido quando uma vaga mais forte sacudiu a masseira, como de uma casca de noz se tratasse.
Apesar da madrugada ir alta e pouco faltar para nascer o dia, o céu estava agora ainda mais escuro e tapado de nuvens, que deixavam cair as primeiras pingas.
Em breve chovia a cântaros ofuscando a vista dos homens que não conseguiam distinguir nada à sua frente. Relâmpagos cruzavam o céu em todas as direcções e os trovões eram ensurdecedores.
- Daniel, pega na cunha e escoa-me essa água. Ó Senhora da Bonança, valei-nos nesta aflição. Ave-maria cheia de graça… – e continuou para si a oração com a devoção que só o perigo de vida dá significado.
Não conseguia distinguir as feições dos seus homens apesar de estarem a um ou dois metros dele, mas adivinhava-lhes o pânico e o desespero, face a um naufrágio mais que provável.

O dia amanheceu sem que a tempestade desse mostras de amainar. Talvez o vento não fosse tão forte, não era de certeza, mas o mar embalava em ondas que ora os engolia, ora os suspendia na sua crista. Viam-se os clarões difusos de relâmpagos mas nem se ouviam os trovões, sinal que a trovoada estava muito longe e que para já não oferecia perigo.
O vento de sudoeste obrigava-os a manter o barco com a proa para esse rumo e não mais conseguiram avistar terra, tal era a cortina que a chuva formava. O rapaz ainda não tinha parado de escoar água e o Gaspar tinha-se lhe juntado com outra cunha. Mesmo assim, no fundo do barco a água não baixava e teimava em manter uma mão-travessa onde os baús com o comer e outros pertences da companha flutuavam.
O mestre tinha levantado o leme e pegara num dos remos para que os outros folgassem um pouco.
A meio do dia apenas tinham conseguido roer uns bocados de broa encharcada e beber uns golos de vinho que cada um tinha trazido nos seus baús.
Molhados até aos ossos, apesar dos oleados que traziam vestidos, corpos doridos de mais de quinze horas sentados a remar e a lutar contra o mar, a chuva e o vento.

- Já nem sinto os braços – queixa-se o Rodrigo – só me apetecia fumar um cigarro.
- Eu pego no remo, Tio Rodrigo. – Responde prontamente o Daniel que, de cócoras continuava a trabalhar com a cunha – Posso ir para o remo, tio Tone?
- Vai lá, para o Rodrigo descansar um pouco. E tu Areosa?
- Vamos andando, vamos andando, mas um cigarrinho também me apetecia. Raio de tempo…
- A seguir descansas tu. Quem diria que vinha um andaço destes. Se soubesse, nem da cama tinha saído.
- O mar parece menos e o vento está a cair. Só a chuva é que não pára.
- Tende calma, o pior já passou e a Senhora da Bonança não nos abandonou. Ah, só queria saber onde estamos. Vamos esperar mais um bocado e se o mar acalmar aproveitamos para levantar a vela e navegar para leste até vermos terra. Se formos sempre para leste temos de encontrar terra!
Uma hora depois, desfraldaram a vela e o Tone retomou o seu lugar habitual à popa da masseira. Agora a agulha apontava para leste e todos se afadigavam a perscrutar o horizonte com ansiedade. Já a tarde ia passada quando o Areosa, de súbito, exclama:
- Cheira-me a terra. Já não estamos longe.
- Ó homem de Deus, como é que tu sentes o cheiro?
- Sinto, pronto, sinto…
Pouco depois vislumbraram ainda muito longe as cumeadas de vários montes, que procuravam identificar.
- Aquilo é Espanha e ali parece Santa Tecla.
- Tens razão, aquele é o monte de Santa Tecla, – confirma o tio Tone – Deus seja louvado, estamos perto de casa e havemos de lá chegar sãos e salvos.
- Que dirão de nós? Se calhar julgam-nos perdidos.
- Ai julgam, julgam! Deve haver já muito choro no portinho.
- E os outros barcos, tio Tone? Também passariam aflições? – pergunta o Daniel que continua à proa da masseira.
- Não sei meu rapaz. Oxalá não tenha havido nenhuma desgraça… Talvez tenham tido tempo de se recolher. Só nós é que estávamos tão a sul e a tempestade apanhou-nos de repente. Os outros estavam mais para oeste e muitos tinham vindo para o norte, mais ou menos onde nós estamos agora.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A arribada do "Senhor na Cruz" 1ª parte

A noite estava abafada e a lua já se tinha escondido há muito. No portinho as sombras moviam-se silenciosamente, aqui e ali a ponta vermelha de um cigarro brilhava no escuro.
Uma masseira deslizava pesadamente sobre os rolos, empurrada à força dos braços da companha em direcção à água. Os pescadores de calças arregaçadas chapinhavam à borda da água, quase sem ondulação. Estava uma calmaria podre que não os deixaria navegar à vela.
Lentamente, como num ritual, as masseiras foram metidas à água e flutuavam agora na pequena enseada de abrigo. No pequeno mastro do “Senhor na Cruz” tremelicava a luz da candeia, que pouco ou nada alumiava.
- Então para onde vai hoje, tio Tone?
- Vou dar um lance a Afife, como ontem. Não me correu mal a vida, não senhor. E tu Manel, também vais para o sul?
- Não! Eu vou rumar a oeste, aqui em frente. Tenho cá uma fé… não sei explicar.
- Vai com Deus Manel, vai com Deus. Vamos lá armar os remos que se faz tarde e ainda temos muito que andar.
A masseira do tio Tone avançou com cautela por entre os outros barcos em direcção ao largo. Ao passar o Sabugo já o segundo par de remos golpeava a água em perfeita sincronia. Era admirável a forma como, em plena escuridão, os quatro remos se moviam em uníssono, fazendo deslizar a velha masseira, negra de alcatrão.

Sentado no banco da ré, uma mão sobre a cana do leme, outra apoiada sobre a borda, uma beata entre os dedos rudes, o Tone da Vista Alegre, patrão da embarcação sardinheira, mantinha-se atento a tudo o que o rodeava. Contrariamente ao que esperava, ao largo o calor não diminuira e o tempo continuava abafado.
- Vamos lá a ver se não cai uma trovoada – resmunga entre dentes, mas suficientemente alto para ser ouvido pelos seus homens.
- Deus nos livre – diz o seu irmão Rodrigo que remava no banco da proa, a bombordo.
- O céu continua limpo, pode ser que se aguente. Se ao menos corresse uma aragem para içar a vela…
Pelas bandas da Gelfa, puxou um pouco o leme e a agulha de marear, pousada ao seu lado sobre o banco, passou a apontar para sudoeste. Já não faltava muito e a espaços pressentiam-se pequenos cardumes de peixe, certamente sardinha, que rebolhavam à tona.

Cada vez se afastavam mais da costa e o Tone tinha-se levantado para tentar distinguir na penumbra da costa as marcas do pesqueiro. As luzes da ponte de Afife tinham de alinhar pela casa branca do padeiro, que se distinguia perfeitamente pelo fumo que saia toda a noite pela chaminé.
- Vamos lá rapaziada! Toca de preparar a rede para largar. Areosa, tu continua a remar. Rodrigo não largues já, só quando eu disser.
De súbito, uma aragem de vento quente acaricia-lhes o rosto, seguida de uma rajada forte e ainda mais quente.
- Mas que raio… Jesus, que é aquilo? Parece uma parede!
- Armai outra vez os remos e tapai-me essa rede – grita o tio Tone sobre o barulho do vento que soprava cada vez mais forte.
As rajadas já não eram tão quentes e encapelavam o mar que minutos antes estava manso e liso como a palma da mão. Cachões de espuma esvoaçavam e pequenas ondas embatiam com violência crescente na masseira.
- Aproai ao vento, aproai ao vento, depressa rapazes.
E uma vaga, felizmente pequena, entrou de través na masseira encharcando os dois homens da proa, o Rodrigo e o Daniel, o mais novo da companha, ainda um rapazinho, que a lide do mar fizera teso.
Apesar dos seus dezasseis anos feitos pelo Natal, era o melhor remador daquela embarcação, o “Senhor na Cruz” e já tinha sido admitido para tripulante do salva vidas, por vontade do mestre Manuel Catalão, que via naquele rapaz calmo e pouco dado a folias, o filho que ele nunca tivera. Quis a sina que tivessem sido quatro raparigas que a Rosinda lhe dera, antes de ter apanhado aquela fraqueza nos pulmões à qual não tinha resistido.