terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

As choupas... e o Mitra

Desde pequeno que gosto de pescar, comecei no rio a apanhar mujos e enguias, só muito mais tarde aprendi a pescar no mar. O equipamento era rudimentar, as canas eram "da India", as linhas duravam anos e só eram trocadas quando estavam manifestamente podres.
O meu primeiro carreto de mar, foi um Sofi ao qual lhe perdi o rasto, se calhar emprestei-o a alguém e esqueci-me. As primeiras pescarias eram feitas à noite no praial de Âncora, em conjunto com outros colegas, que também tinham o gosto pela pesca. Apanhavam-se uns cachiços e umas chincaronas ou umas fanecas, de verão com o mar "chão".
Ainda sou do tempo de levar uma vela, que acendíamos dentro dum buraco cavado na areia, para termos luz para iscar e desensarilhar as tansas. Focos eléctricos eram luxos raros, os quais não estavam ao nosso alcance.
Aprendi umas coisas com o Cabuca, naquela altura um "ferrinho" da pesca e um conhecedor das condições do mar. "Hoje não vale a pena, porque o mar mexe muito por baixo" ou "é de ir, hoje é lua, mas só depois das nove, com a maré para cima".
Estas certezas ainda hoje funcionam, baseadas num conhecimento de muitos anos de experiência e de ouvir dizer os mais antigos. A minha experiência, porque eu agora também tenho (alguma) experiência, leva-me a concluir que nem todos estes conhecimentos são verdadeiros, pelo menos nunca os consegui provar. Mas que muitos funcionam, lá isso funcionam.
Outra coisa que aprendi com a pesca, foi a desconfiar da treta de alguns, que pescam sempre muito, mas quando estão sozinhos. Enfim, albarda-se o animal à vontade do freguês...

Também aprendi que só se contam as vitórias, as derrotas ficam no esquecimento, ninguém conta aventuras de pescarias, onde não se apanhou nada.
Com o tempo, conversando com outros pescadores, lendo uns artigos, fui evoluindo, fui adquirindo novo material, experimentando novas técnicas, fui aprendendo. Não apareci pescador feito, como outros, que começam a pescar hoje e na semana a seguir já discutem como se tivessem com eles o conhecimento de uma vida. Há gajos assim!
Foi realmente a pescar à noite, no praial de Âncora que comecei, aproveitando para ir para Afife ou Moledo quando arranjava boleia. Ainda cheguei a ir algumas vezes de bicicleta e motorizada, nomeadamente com o Cabuca que, em regra, apanhava mais peixe, que os outros todos juntos.
Costumávamos usar a "sintética" como isca, nome que damos à teagem. Entre Viana e Matosinhos é conhecida como "linhas", não tendo conhecimento de outra terra, sem ser Âncora, onde a teagem é conhecida por sintética, nem sei porquê.
Esta isca é muito fina, muito eficaz e um grande "pincel" para a apanhar. Apanhamo-la encostada às pedras, enterrada na areia, nos restos de conchas e de pequenos seixos, que tem de ser retiradas à mão. Quem quiser ter mãos e unhas apresentáveis não pode mesmo ir apanhar isca. Depois de lavada, a isca é metida em serrim de pinho e conservada em local fresco ou no frigorifico, aguenta viva dois dias.
Desde há meia dúzia de anos, tem sido introduzido o casulo e a coreana, que se compra em Viana, no Jaime Ferraz, para aqueles que não podem ou não querem "lixar" as mãos.
Estas iscas usam-se na areia, pois na pedra, durante o dia, usam-se iscas como o caranguejo de muda, a lula, a amêijoa, a sardinha ou a navalha. Mas se pescar na areia é para quem quer, na pedra é só para quem sabe e mesmo para esses não é fácil.

Muito mais tarde é que apareceu a técnica de pescar com amostra, seja colher, peixe de borracha ou as mais sofisticadas Rapallas. Chama-se a isso corricar; lança-se para a água e colhe-se mais ou menos lentamente, fazendo nadar a amostra, enganando o peixe que se atira e fica preso no anzol.
Aconteceu-me um episódio curioso nos primeiros tempos de aprendizagem da amostra, que vos quero contar. Uma tarde, peguei na cana e fui para o Caído, na extrema entre Vila Praia de Âncora e Moledo, uma zona que faz uma enseada e na qual se pode pescar confortavelmente de cima de uma das grandes pedras que por lá existem. Montei a bóia de água, pus um estralho (tenso) comprido, com um peixinho avermelhado.
Experimentei e como trabalhava em condições, toca de explorar o mar à minha frente. Ora atirava para sul, ora atirava par norte, quase a roçar aquela pedra, até que senti uma dor na nuca, como se tivesse levado uma pedrada. Passei a mão pelo sítio dorido e encontro o meu peixinho lá espetado profundamente. "Que grande merda" pensei eu, sem saber muito bem o que fazer. Sangrava um pouco, doer só se mexesse e não havia forma de sair.
Tinha acontecido que ao fazer um lançamento, esqueci-me que a amostra baloiçava no final do estralho comprido e, por azelhisse, não deixei parar o tal balancear, acabando o anzol por se espetar na minha nuca, quando chicoteei a cana para frente.
Cortei a linha junto da amostra, arrumei a cana e demais apetrechos, rumei para a Policlínica, onde me apresentei com um flamejante peixe vermelho a adornar a "mona".
O enfermeiro, depois de rir e gozar com a situação, foi buscar um vulgar alicate, com que cortou o bico logo atrás da barbela e desenfiou tranquilamente resto do anzol. Nunca aquele anzol tinha apanhado um animal tão grande!

Foi da maneira que aprendi com o erro, nunca mais me aconteceu nada do género. O que me acontecia frequentemente era perder as amostras e as bóias. Foi uma aprendizagem relativamente cara, mas o que importa é que aprendi a pôr a amostra, mais ou menos onde queria.
E ao fim de várias sessões de pesca lá apanhei o meu primeiro peixe a corricar. Ao princípio até pensei que tinha, mais uma vez, prendido em algum sargaço ou alguma pedra, só tomei consciência que era mesmo um robalinho, quando senti o gajo a "espernear". Acho que me senti um pescador a sério, um pescador que “já sabia umas merdas”. Como estava enganado!
Outro dos primeiros peixes que apanhei a corricar foi em frente à minha casa, na boca do rio, com um Raglou vermelho (peixe de borracha) e que pesava um pouco mais de quilo e meio. Ainda por essa época, um dia acabei dentro de água, junto com a cana e o peixe, pois ao tirar um “cachiço” perto das Paredes Altas, desequilibrei-me e caí ao mar. Mais uma vez, a falta de experiência a vir ao de cima, embora isso de cair à água, aconteça ao mais pintado.

Voltando à pesca ao fundo, na pedra, modalidade difícil mas compensadora, quando se tira um peixe, quase sempre de tamanho superior aos que se apanham na areia, um dia fui pescar, ao inicio da tarde para o Quintino, perto do Forte do Cão.
O tempo estava nublado, corria uma brisa não muito forte de sudoeste, a maré estava quase no baixa-mar e o pesqueiro já estava ocupado. “Raio de sorte” pensei eu cá em cima, junto ao parque infantil, olhando também para as “primeiras pedras”, mais a norte, logo a seguir à pequena enseada. Já lá estavam dois ou três pescadores espalhados e a ocupar os melhores sítios.
“Bem, vou para baixo, para o Quintino, está lá aquele gajo, mas há vários sítios onde pescar” e desci, cavalgando as pedras com a cana numa mão e o zote ao ombro, sempre com cuidado para não escorregar nas pedras molhadas, cobertas de sargaço e limo. Ao aproximar-me do pescador que já lá estava, reconheci o Mitra, um tipo que pesca bem, um verdadeiro mitra cheio de saberes e de manhas, não foi por acaso que lhe puseram o nome.
Como nos damos bem, até andamos juntos na escola primária, fui até à beira dele perguntar como estavam a correr as coisas; disse-me que já tinha uma ou duas choupas e convidou-me a pescar ao lado dele, porque havia espaço para isso. Como era mesmo para ali que eu queria ir, aproveitei o convite, preparei a cana, isquei e lancei para perto, pois o Mitra dizia-me que tinha tirado as choupas ali perto.
Só para me mostrar como era, tirou outra logo de seguida. Ele estava pescar com caranguejo de muda o que era uma enorme vantagem à partida, pois de uma forma geral, quando não se apanha uma choupa com caranguejo de muda, não se apanha com mais nada. Ora eu só tinha amêijoa branca, um isco bom para o robalo e apenas razoável, na maioria das vezes, para as choupas ou para os sargos. Podia ser que estivessem com fome e não fossem esquisitas!

E o Mitra ia tirando regularmente mais uma choupa, mais outra choupa e eu a “coar água”, nem um escorpião para amostra, nem um toque, as iscas iam e vinham direitas.
A maré subia, íamos recuando pelo interior da enseada e o meu amigo às tantas diz-me que se vai embora, contente com as suas oito choupas e a “abada” que me estava a dar. As choupas não eram grandes, mas tomara eu muitas daquelas, eu que ainda não tinha estreado.
Arrumou os tarecos e abalou deixando-me só em cima duma laje grande, já perto da areia. “Mais dois lançamentos e se não der nada ponho-me a andar”, pensava eu, deitando contas à vida e ao relógio.
No ultimo lançamento, estiquei mais para fora, onde há uns cabeços de pedra e areia entre eles, com a esperança no ponto mais baixo e sem fé nenhuma no sucesso daquele dia, quando de repente vejo a cana, que estava entalada habilidosamente numa fraga da laje, a dar um grande esticão e a ficar toda curvada.
O carreto, um velho, mas fiavel Mitchell 498, chiou quando a embraiagem funcionou e corri para a cana com o coração aos saltos. Levantei a cana, puxei-a suavemente para trás e senti o “melro” na outra ponta.
“Hum… choupa não é, pelo toque, isto é robalo”, afinei a embraiagem fechando-a meia volta, comecei a colher, devagar, devagar mas sem deixar folgar a linha. E o gajo a dar esticões, mas sempre a vir para terra, uma vezes mais ligeiro, outras vezes mais devagar, que nestas coisas não deve haver pressas.
Quando chegou perto da laje onde eu estava, vi que era peixe para mais de dois quilos, não deveria chegar aos três, mas às vezes engana.
Uma das rotinas que me habituei a fazer ao pescar nas pedras, é verificar sempre qual o melhor caminho para “encalhar” um peixe, se tiver a sorte de o apanhar. É que já vi muita boa gente com um peixe na ponta da cana, sem saber o que fazer e eu não quero fazer essa triste figura.
Por isso, sabia bem que tinha de passar o “melro” à volta da laje e fazê-lo encalhar entre duas pedras que estavam lá atrás. Dizer isto é fácil, fazer é um pouco mais difícil, como sabe perfeitamente, qualquer pescador que esteja a ler estas linhas.
O certo é que o gajo lá se foi encaminhando para o sítio ideal e com a ajuda da ondulação, acabou por ficar mesmo a jeito. Foi só saltar da laje e meter-lhe dois dedos nas guelras e o polegar pela boca abaixo de forma imobiliza-lo. Estava bem ferrado e o único perigo tinha residido no facto frequente, de roçar a linha em alguma pedra e “adeus peixe”. Mas este tinha-se portado bem e tinha salvo a tarde de pesca e a honra deste vosso amigo, que não se livrou de ter ficado a ver o Mitra a “limpar” as choupas, mesmo em frente ao nariz.

Se já estava convencido antes, mais convencido fiquei que o caranguejo de muda é “infalível” para as choupas desde que elas lá estejam. Confirmei nesse dia e reconfirmei depois, muitas outras vezes, que aquele pesqueiro, quando o tempo vira a sudoeste moderado, é muito bom e o peixe não costuma andar longe. Façam-me um favor, não digam a ninguém, isto são segredos, que não se contam a qualquer um!
Ah… o robalo mal chegava aos dois quilos e meio, foi preparado no forno, com umas batatinhas assadas, que vos digo, divinal…só é pena não apanhar peixe assim, todas as vezes que lá vou.

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