segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O Juca do Chiné

Já aqui contei que a minha infância passou-se entre a rua 5 de Outubro e o Largo do Sol Posto. No tempo em que ainda não havia televisão, nem computadores, nem consolas, nem sequer bicicletas para nos entreterem, as nossas brincadeiras variavam conforme as temporadas e nunca percebi quem ditava ou quem comandava essas mudanças.
Por exemplo, quando começava a escola, em Outubro, era tempo do pião, semanas depois, passava toda a rapaziada a jogar ao eixo, ao espeto, ao botão ou à bilharda, já não me lembro, como era a sequencia.
Havia no entanto alguns jogos que eram universais e que os utilizávamos a qualquer momento, dependia dos parceiros, se éramos muitos, jogávamos à bola, se éramos poucos, podia-se “andar” às escondidas ou aos “cóbois”.

Os desafios de futebol do Sol Posto eram famosos e às vezes até tinham assistência. Os do Sol Posto desafiavam ou eram desafiados pelos rapazes dos outros lugares. As balizas eram o portão preto da quinta no topo norte e o portão da oficina do Zé Ferreiro ao sul.
Estes desafios só se realizavam depois da oficina fechar ou quando o Zé Ferreiro não estava, pois ele não queria ver a malta a chutar em direcção à oficina e os automóveis que lá estavam, a servirem de guarda-redes. Desde que não lhe mandássemos a bola para dentro da oficina estava tudo bem. O que ele não sabia, é que às vezes, eram os seus empregados que nos pediam para lhes passarmos a bola, de forma a eles também darem uns toques.
Mas também havia rapazes, que embora não morassem naquele zona, estavam sempre por ali e já quase eram do nosso grupo, já não eram estranhos. Lembro-me que o Luís, filho do Zé Ferreiro, mais conhecido pelo “Didon”, estava habitualmente acompanhado pelo Luís Gomes, o “La Rache”, o Ernesto do talho, o Esteves, e mais alguns que agora não recordo. O Dimas também fazia parte do grupo, mas esse morava ali em cima.
Na oficina dos automóveis, trabalhavam o Silvestre e o Berto que eram os mais velhos, recordo-me do “Zotopec” e o Vasco, irmão do Dimas, que moravam a escassos cem metros e eram filhos do tenente Ribeiro. Acho que era o Berto que tinha uma moto pesada, um daqueles modelos ingleses e que era o encanto da miudagem.
Mais tarde, saiu com o Silvestre e estabeleceram-se por conta própria, no fundo da Rua 31 de Janeiro, em frente ao matadouro. Antes deles já tinham saído, também para se estabelecerem por conta própria o Zé Rocha e o Armando, mas disso não me lembro, já não foi no meu tempo.

Quando não dava para um jogo ou outra brincadeira, íamos até ao Juca, vê-lo trabalhar e até nos deixava ajudar. Trabalhava de latoeiro ou funileiro, num barraquito ao lado da casa e era aí que fabricava as caleiras ou algerozes, os cântaros, as bacias e punha uns pingos de solda para vedar qualquer panela furada.
Uma das expressões favoritas do Jucas era: “Também queres que te ponha um pingo”? Perguntava ele com o seu ar malandreco!
Nunca vi aquele homem chateado ou a fazer má cara, fosse para quem fosse, muito menos para os miúdos. É deveras conhecida a história do porco do Juca, na qual ele dizia que o animal estava tão farto, que nem queria comer mais farinha. É tão conhecida como a história do Portela…

Mas este homem tem muitas mais histórias, como por exemplo quando lhe deram uma camisa que estava como nova, excepto nas costas que estava toda rota. Ora o Juca e a Bonança, a mulher, foram ao baile à Sociedade e ele levou a dita camisa, por baixo do casaco. Esqueceu-se que nos bailes da Sociedade, ao fim de pouco tempo, fazia um calor infernal. A sala era pequena, muita gente e mesmo com as janelas abertas o calor abrazava e o Juca a escorrer água.
- Oh Juca, não tens calor? Tira o casaco, homem!
- Deixa estar, estou bem assim.

Mas deixem-me contar-vos a cena do porco, porque ainda há quem não a conheça. O Juca dizia que tinha um porco que comia tanto, que até estava enjoado de farinha, já nem a queria. Claro que ninguém acreditava, porque a farinha era cara e o Juca um pobre, que mal tinha para si e para a família, quanto mais para o porco. Mas ele não desarmava, insistia e até demonstrava:
- Queres ver? Anda daí. – E entrava na corte do porco, tirava um punhado de farinha de um saco e deitava na pia. O porco avançava para a pia, metia o focinho na farinha, fungava e virava costas.
- Estás a ver, eu não te dizia? Já nem quer farinha!
O porco estava com uma “larica” desgraçada, mas ainda não se habituara a comer o serrim de madeira, que o Juca lhe deitava. Pois é, a farinha era serrim…

Uma vez, engataram o Juca para ser da Legião Portuguesa. Foi o “Nequinha” Sottomayor que o “convidou” e o Juca não teve como dizer que não. Naquela época era assim! Como a Legião era uma estrutura muito pouco eficiente e muito desleixada, o Juca também nunca se importou, porque não lhe dava canseira nenhuma e ainda recebia algumas ajudas lá para casa, até que foi nomeado encarregado do fardamento da quina ou lá como se chamava o agrupamento da Legião ancorense.
Já não me lembro como era o fardamento da legião, mas ainda vi uma ou duas vezes no campado, os “nossos” legionários a marcharem. Um dia, alguém foi dizer ao chefe da quina ou do terno, que o Juca vestia as camisas da legião para trabalhar, foi-lhe instaurado um processo disciplinar e acabou mesmo ali a sua brilhante carreira de legionário. Foi expulso da Legião e só lhe restou um cinto ao qual laboriosamente alterou a fivela para não ser reconhecida, senão ainda lhe dava mais chatices.

Anos depois, o Juca chegou a emigrar para França, mas pouco tempo lá esteve, regressou e construiu uma casita na Vista Alegre, onde passou a trabalhar. A Bonança, uma mulher calada e que tinha um coração enorme para aturar as maluqueiras do Juca quer estivesse sóbrio, quer estivesse com os copos, faleceu ainda nova, embora os filhos já estivessem criados.
O mais velho, o Zé, abalou para a França onde ainda vive, o Tòninho que saiu ao pai, amigo do copo, da brincadeira e da palhaçada, depois de trabalhar muitos anos no Hotel Meira, emigrou para Andorra, mas vem até Âncora duas ou três vezes por ano.
Este “melro” andou na escola comigo e era o meu parceiro para tudo. Como era mais velho que eu, safou-me de algumas enrascadas nas quais eu me metia com “demasiada” facilidade na escola. O Toninho era uma espécie de meu segurança privado, que eu recompensava, ajudando na resolução dos problemas da aritmética.
Acho que lhe paguei tudo o que fez por mim, no dia em que o tirei nas águas dos “Caldeirões” onde ele se ía afogando e todos pensávamos que estava na brincadeira. Todos não, eu achei que não era brincadeira, e não era mesmo. O gajo estava a afogar-se mesmo à nossa frente! Os amigos são para as ocasiões!

Havia aqui em Âncora um homem a quem chamavam o “Cristo” e como o apelido de Juca era Jesus, cada vez que o encontrava, ajoelhava-se e dizia-lhe: - Cristo, dá a tua bênção a Jesus. E o “Cristo” entrava no jogo e respondia – Eu te abençoo-o, Jesus. Vamos beber um copo, hoje pago eu.
Por mera casualidade, a minha mulher abriu uma pequena mercearia na Vista Alegre, em frente da casa do Juca. Às vezes era um cinema, bastava o Juca estar bem disposto ou bem bebido, para haver uma “matiné”, em que ele se metia com todos e era um fartote de tanto rir. Uma ocasião, combinado com a minha mulher, ele chegava à loja e da porta perguntava muito sério:
- Paula, já chegaram as chiolas?
- Ainda não, tio Juca.
- Então, não disseste que chegavam hoje? Estão a fazer-me tanta falta…
Nesta altura havia sempre alguém, alguma freguesa, que se metia na conversa e perguntava:
- Que é isso das chiolas, Juca?
- É um pau com duas bolas.
- Ah… Ai o ordinário…
E o Juca regressava a casa, bastava-lhe atravessar a rua, a rir-se à gargalhada.

Certo dia, o Juca foi à farmácia comprar “camisas”, esperou um momento que não estivesse ninguém, entrou acelerado quando viu a oportunidade e disse para o Durval Brito:
- Arranje-me aí umas “camisas”, sr. Brito.
- Das do costume ou queres umas novas, que são mais baratas.
- E são boas, à mesma?
- É a mesma coisa, só muda a marca – explica o farmacêutico.
- Então dê-me uma dúzia dessas mais baratas.
O Juca lá saiu da farmácia todo contente com o embrulhinho no bolso e quando usou a primeira teve uma surpresa, pois o preservativo era tamanho XXL, quero dizer era grande e saia com muita facilidade. Vou abrir um parêntesis para explicar que esta história, contou-me ele próprio. Então dizia-me ele:
- Oh Brito, as “camisas” pareciam sacos de fazer o café!
- Você é que não punha aquilo direito.
- Punha! Aquilo dava é para um cavalo, tu havias de ver. Mas eu fui lá reclamar à farmácia e quase me chateava com ele.
- Chateava porque? – Perguntava eu que quase chorava de tanto me rir.
- Quando lhe disse que aquilo era muito grande e que se desenfiava, aquele filho da mãe disse-me que eram camisas para a p… de homem. Tu estás a ver?
- Estou, estou… E você, que lhe disse?
- Eu disse-lhe que, se não fosse educado, lhe respondia. Virei as costas e saí.
- Mas afinal, se lhe respondesse o que é que lhe dizia?
- Dizia-lhe que a mulher dele é que ia ver quem tinha p… de homem. Mas não disse nada, só pensei.

Quando enviuvou o Juca passou a viver só, apesar de ter arranjado, tempos depois, uma amiga, a Rosa, que o visitava, mas cada um vivia em sua casa.
Todos os sábados de manhã ia ao cemitério, lavar a campa e pôr flores à “sua” Bonança. Havia mulheres, que também iam ao cemitério e esperavam que ele passasse para o acompanharem, pois parece que eram um pagode aquelas viagens. Imaginem o Juca, só, no meio dum rancho de mulheres. Todas a puxarem por ele, o “paleio” havia de ser bonito!
Uma das expressões que recordo dele, a propósito de mulheres: - Porque é que Deus nos tira a força e não nos tira a ideia?
Outra coisa que achava piada, era quando lhe perguntavam.
- Então Juca, o que comeste hoje?
- Uma lampreia cozida, com hortaliça e umas batatas.
Ou outro disparate qualquer, que lhe viesse à cabeça. Adoeceu, passou a comer dieta, deixou de beber e eu pensei cá para mim, “isto vai arrumar o Juca”. Ainda arribou, durou pouco mais de um ano e foi-se.
Revi o Zé, o seu filho mais velho que já não via há muitos anos. Chorei silenciosamente a morte daquele homem. Tinha perdido um amigo.