domingo, 27 de dezembro de 2009

Nos trilhos do contrabando V

Estávamos a almoçar na varanda quando vimos o Nissan Patrol verde serpentear o caminho de acesso à Branda. Alguns minutos depois, convidamos os dois agentes a entrar em casa e voltamos a repetir o acontecimento. Já começava a estar farto de tantas vezes contar a mesma coisa. Mais valia ter usado o pequeno gravador que tinha no carro, assim bastava-me carregar no botão e a estória repetia-se as vezes que fossem precisas.
Pediram-nos para lhes mostrar o achado e quando saíamos de casa, surgiu o Agostinho, proprietário da casa que alugáramos; tinha ido à aldeia levar um grupo de turistas holandeses, que iriam ficar lá alojados alguns dias, mas ao ver o jipe da GNR parado junto à nossa casa, para lá se dirigiu a fim de saber o que tinha acontecido. Mais uma vez contei como tínhamos achado os ossos e logo ele se prontificou a acompanhar-nos.
O Snoopy, qual herói desprezado, ficara na varanda com ar aborrecido, preso à trela, com uma gamela de água e outra de ração à disposição.

Fomos todos no jipe das autoridades até ao início do carreiro, que partia da pequena ponte, construída apenas com grossas pranchas de pedra xistosa, assentes em pilares do mesmo material. Não me admiraria se a datassem da Idade Média.
O primeiro cuidado que tiveram foi delimitar a área com fita plástica e fotografar, minuciosamente o maxilar e os restantes ossos visíveis. Depois recolheram tudo para uns sacos plásticos aos quais lhes colaram umas etiquetas numeradas. Um dos agentes usou uma pequena espátula semelhante a uma colher de pedreiro e com ela retirou mais terra do buraco iniciado pelo cachorro.
Em breves instantes escavou o suficiente para pôr à vista à vista a caveira à qual certamente pertencia o maxilar. O agente endireitou-se e disse para o colega:
- Liga para o comandante e diz-lhe que temos aqui um cadáver com ossos à superfície e outros enterrados. Diz-lhe também que encontramos o crânio.
O agente regressou ao jipe, sentou-se ao volante e depois de vencer as resistências da estática conseguiu ligação rádio, tendo contado as novidades ao superior, com uma linguagem onde abundavam os termos técnicos e o habitual “escuto” de cada vez que dava a palavra.
Aproximou-se do nosso pequeno grupo que aguardava à sombra de um amieiro e informou-nos que viria uma equipa técnica, provavelmente de Braga, para continuar as investigações. Até à chegada desses técnicos, os dois agentes iriam manter-se de guarda ao local. Pela cara deles via-se logo que estavam aborrecidos com a tarefa, mas não tinham outro remédio senão obedecer.

Regressamos a pé, em conversa com o Agostinho que nos contou a história daquelas paragens, como os pastores levavam os rebanhos na primavera para a Branda e lá permaneciam durante todo o Verão, regressando às aldeias apenas a meados de Setembro.
Durante a tarde passeamos pelos montes, percorremos um sem número de caminhos e carreiros, demos um mergulho retemperador na pequena presa à entrada da aldeia, onde já estavam, alem dos holandeses, mais duas famílias com grande profusão de crianças pequenas.
Ao final da tarde bateu-nos à porta um indivíduo que se identificou como sendo da Polícia Judiciária, o Inspector Peres, ao qual voltei a contar como se tinham descoberto as ossadas.
Ao contrário dos agentes da GNR que só tinham aceitado um café, este aceitou uma cerveja bem fria, tomada confortavelmente na varanda, enquanto tomava notas num caderninho de capa amarela.
Findo o interrogatório, já estava o sol no ocaso, convidei-o para outra cerveja que recusou e retirou-se, deixando-nos com a sensação de um fim-de-semana mais movimentado do que o desejado. Pelo menos não poderíamos dizer que nos tínhamos entediado, sem nada para fazer no meio do monte.

Quando a Paula me perguntou o que queria jantar, encolhi os ombros e propus-lhe ir ao restaurante de Valdepoldros a dois ou três quilómetros de distância.
Jantamos uma posta barrosã deliciosa, bem regada com um tinto do Douro, tudo rematado com umas rabanadas de ovos, um licor para a Paula e uma aguardente caseira para mim. Regressados a casa, refastelei-me na cadeira de lona olhando a escuridão que escondia o vale estendido à nossa frente. Que segredos esconderia aquele vale, histórias com muitos anos, séculos até, de pastores, de contrabandistas, de caçadores, gente que viveu e morreu sem conhecer o mar, sem conhecer a cidade, isolados no cosmos que era e é, a serra. Abri uma cerveja, brindei aos grilos e cigarras que cantarolavam por perto, senti o sono a invadir-me.
Desta vez dormi tudo de um sono só, acordei já o sol ia alto e a Paula já preparava o café. Tinha na boca um sabor amargo que procurei extirpar com um duche bem quente, dois croissants e uma grande chávena de café.
- Ressonaste tanto que parecias um comboio.
- Ora, daqui a nada dizes que até apitava!
- Apitar, não. Mas assobiavas. Devia ser nas descidas…
- Ah, ah, ah. Que piada... – digo eu, interiormente divertido, mas apresentando cara feia.
- Os tipos da polícia estão lá em baixo.
- Onde? Junto ao regato?
- Claro, onde querias que estivessem?
- Vamos lá para saber as novidades? – propus eu.
- Vai lá tu, eu fico aqui na varanda a ler.
(continua)

sábado, 19 de dezembro de 2009

Nos trilhos do contrabando IV

Tinha acabado de descarregar o carro e já a Paula me chamava para a ajudar em qualquer tarefa na cozinha.
- Já vou, já vou! Bolas, nem me dás tempo de apreciar a paisagem…
- É só para arrumares as bebidas no frigorífico, mais nada. Depois vamos dar uma volta?
- Claro, vamos correr esses caminhos todos!
Tínhamos decidido passar um fim-de-semana na montanha, uns dias retemperadores, na solidão, no silêncio, na tranquilidade de uma pequena casa de turismo rural, implantada na isolada Branda da Aveleira, um antigo abrigo estival de pastores e rebanhos. Alguns proprietários tinham recuperado as casinhas de aspecto rústico, mas dotadas de todas as comodidades fundamentais e alugavam-nas agora aos turistas.
Da varanda da casa ainda se podiam ver por perto as manadas de garranos selvagens, o gado pastando em total liberdade e os montes ponteados de grandes torres que agitavam as suas pás ao vento, esperando em fila, as investidas de um qualquer D. Quixote gigantesco.
Atirei com a mochila para cima da cama, desci as escadas de madeira, assobiei à procura do cão, que surgiu disparado, vindo do wc.
- Vamos Snoopy – e o pequeno caniche seguiu-me excitado pela novidade, sempre com o nariz colado ao chão.
Apenas demos uma pequena volta de reconhecimento nos arredores do nosso alojamento e logo voltamos a tempo de ouvir a Paula dizer “já estou pronta”.
- Está bem, mas agora espera, pois vi umas cadeiras na arrecadação e vou pô-las na varanda.
Separei duas cadeiras de lona, montei-as e fui buscar uma cerveja e uma tónica ao frigorífico.
Sentamo-nos na varanda, à sombra, com as bebidas frescas a escorregar nas gargantas, aplacando a sede, não o calor, que esse só iria com a chegada da noite.

Descemos em direcção ao regato que corria no fundo do vale, queria ver se tinha condições para ter trutas. Confirmei que havia sítios relativamente profundos e acompanhamos o curso do regato durante algum tempo. Entramos por um carreiro, ladeado de vegetação ripícula, salgueiros e amieiros que só medram perto de água. Um ou outro carvalho espalhava sombra, pelo chão amontoavam-se excrementos dos garranos, das vacas e dos coelhos. Mais à frente encontramos uma área que devia ter ardido há pouco tempo, talvez na primavera, as ervas finas, brotavam do negro tapete que o fogo tecera.
- Snoopy, anda aqui, vai ficar preto como o carvão. Mais valia tê-lo prendido com a trela – dizia a Paula ao ver como os caracóis brancos do pêlo do cão escureciam rapidamente.
- Não importa, chegando a casa damos-lhe banho.
A poucos metros do caminho o caniche escavava furiosamente, parando apenas para enfiar o focinho no buraco, como que a confirmar a presença do odor que o excitava.
- Vá, deixa isso. Snoopy, vamos embora.
Mas o animal fazia orelhas moucas o que me levou a ir ao seu encontro, com a intenção de lhe pegar ao colo. Junto dele estavam espalhados alguns ossos esbranquiçados, com aspecto de lá estarem já há muitos anos.
- Eu vi logo. Há aqui ossos!
- Não o deixes pegar nessa porcaria – diz-me a Paula com um esgar de nojo.
- Vamos embora, pá.
Com um derradeiro esforço o cão levantou com a boca o osso que tanta fadiga lhe dera e identifiquei, com espanto o que parecia ser um maxilar humano.
- Larga! – Berrei-lhe de tal forma que ele se encolheu amedrontado e deixou cair o despojo entre as patas dianteiras.
- Anda cá ver isto, nem vais acreditar!
Não havia dúvida nenhuma, o Snoopy tinha encontrado um maxilar humano e à vista estavam também mais alguns fragmentos de ossos, impossíveis de identificar por leigos como nós. E eu que pensara serem ossos de um qualquer animal, uma cabra ou um garrano.

Regressamos a casa sem saber bem o que fazer. Por um lado sentíamos a responsabilidade de ter que avisar as autoridades, mas por outro lado não nos apetecia nada sermos incomodados, tínhamos tirado o fim-de-semana para descansar e não para aturarmos uma diligência policial, por mais simples que fosse.
Ao jantar decidimos telefonar para a GNR de Melgaço, mas só no dia seguinte. Mais uma noite ao relento não iria fazer mal àquele esqueleto ou ao que restava dele. Contrariamente à expectativa nem sequer dormimos bem, sempre sobressaltados, eu sonhei com lobos a despedaçar pastores e ovelhas e mais algumas barbaridades do género. De manhã a Paula contou-me que também tivera sonhos semelhantes aos meus, o que atribuímos à descoberta do dia anterior. Quem parecia não ter ficado nada abalado era o Snoopy, que continuava animadíssimo.
Como desconhecia o número do posto policial de Melgaço liguei para o 112 e depois de dez minutos de interrogatório, fingiram acreditar na minha história.
Duas horas depois, andávamos nós a passear o mais longe possível do regato, toca o telemóvel, era do posto de Melgaço da GNR a quererem confirmar a veracidade do que tinha contado ao operador do 112. Sentei-me numa pedra e repeti mais uma vez o essencial da história, tendo-me sido pedido para aguardar uma patrulha que viria à Aveleira tomar conta da ocorrência.
(continua)

sábado, 5 de dezembro de 2009

Nos trilhos do contrabando III

No domingo à noite o pequeno automóvel da Guarda serpenteou os montes, desceu e subiu encostas, os faróis mortiços iluminavam poucos metros à sua frente, mas suficientes para dirigir vagarosamente o velho Ford até à Gave, uma aldeia com 300 habitantes, uma das maiores da região. Parou a viatura no largo da igreja, poucos metros adiante estava o cruzeiro, não se via viva alma, apenas a candeia de azeite iluminava fracamente o nicho da Senhora da Natividade.

O Tenente empunhou o revólver, desceu e deu a volta à pequena praça, sempre atento ao menor movimento. Nada!

Após alguns minutos de espera sentiu o barulho de passos no saibro da praça. Engatilhou o revólver, encostou-se ao automóvel, disfarçando a silhueta na penumbra. Um vulto aproximou-se e a meia dúzia de passos de distância perguntou:

- Vossemecê é que é o da Guarda?

O Tenente admirou-se por ouvir a voz nasalada de uma mulher, mas não desviou o revólver.

- Sou, e você quem é?

- Eu venho buscá-lo para o levar junto do meu patrão, que quer confirmar se veio só e não lhe quer mal. Venha comigo.

- Onde? O local combinado era aqui.

- Ele está à saída da aldeia e fale baixo para não acordar ninguém. Já basta o barulho que o carro fez para chegar até aqui.

- Vai à minha frente e lembra-te que se me estão a preparar alguma, abro caminho a tiro.

- Nada tema senhor, o meu patrão apenas quer falar consigo.

Tomaram o caminho que subia para Valdepoldros, a mulher à frente, o Tenente meia dúzia de passos mais atrás, continuando a empunhar a arma.

- Estamos quase a chegar, senhor – avisa a mulher ao fim de poucos minutos de caminhada na escuridão serrana, quando passavam entre azevinhos centenários.

De repente algo assobiou nos ares e abateu-se sobre o Tenente que caiu de imediato. Outra pancada e mais outra zurzem o corpo estendido no caminho. O Alípio arfava do esforço e da emoção de ter arreado no oficial da guarda com o seu pau ferrado. Dera-lhe com ganas, que o malandro merecia.

- Procura a pistola Rita, ele tinha-a na mão.

- Já a tenho comigo. Vê lá se ele é vivo ou morto…

- Diabos o levem, está cheio de sangue. Acho que não respira.

- De certeza?

- Sim… De certeza – conclui o Alípio.

- Então vai buscar os animais para sairmos daqui.

Os dois cavalos e a mula estavam presos ali perto e num pulo o Alípio trouxe-os pelas rédeas. Atravessaram o corpo do Tenente no dorso da mula, cobriram-no com uma manta e amarraram-no de forma a não escorregar em andamento.

No silêncio apenas quebrado pelas patas dos animais, os dois irmãos montaram e arrastaram a mula, caminho acima, em direcção a Valdepoldros.

(continua)

sábado, 28 de novembro de 2009

Nos trilhos do contrabando II

O Alípio e o Tone da Águas estiveram presos duas semanas em Melgaço, depois da guarnição da guarda-fiscal ter passado pela aldeia e revirado tudo sem nada encontrar que incriminasse quem quer que fosse.
Estes dois foram levados como podiam ter sido outros, que todos sabiam contrabandistas, se contrabandista se pode chamar aos passadores de mercadorias para lá e para cá e que apenas ganhavam a jorna. Os verdadeiros contrabandistas eram outros que, tal como hoje, não davam a cara e raramente se aproximavam da raia.
Pelo meio, viviam os guardas, quase todos recebiam uma parte dos ganhos para fazerem vista grossa e para os avisarem quando havia perigo.
De vez em quando aparecia um ou outro guarda que combatia ferozmente o estado das coisas, mas que invariavelmente acabava por ser “amaciado”. No caso de ser um graduado era mais difícil, geralmente tinham de esperar que fosse transferido para outro lado.
O país estava em efervescência, as eleições presidenciais tinham sido disputadas pelo Humberto Delgado e a vitória do novo delfim de Salazar, o Almirante Américo Thomaz, tinha o gosto e o cheiro acre da fraude eleitoral. A repressão policial não se fez esperar e os oposicionistas foram implacavelmente perseguidos.
Na cadeia, o Alípio levou algumas bastonadas mas aguentou firme, repetiu sempre a mesma cantiga, “trabalho no campo de sol a sol, não tenho tempo para contrabandos”, “isso é nas outras aldeias, na minha aldeia não há disso”, “não sei de nada, de noite estou a dormir”. O tenente quando viu que nada lhes conseguia tirar e que apenas tinha entre mãos peixe miúdo, libertou-os com a ameaça dos maiores castigos e tormentos, se lhes pusesse outra vez a vista em cima.

Ao chegarem à aldeia um profundo silencio os acolheu. Estavam todos reunidos em frente à igreja e o Alípio depois de abraçar a mulher, os filhos e a irmã, foi sucessivamente abraçado por todos os presentes.
A certa altura interrogou-se “será que o Judas também me veio beijar”, mas afastou esse pensamento, pois agora estava quase convencido que apenas tivera muito azar, o mais certo era terem tropeçado neles quando procuravam outros contrabandistas mais importantes.
Durante meses a rede de passadores da aldeia esteve inactiva, o tenente volta e meia reaparecia e redobrava as ameaças, na expectativa de obter informações. Soube-se que tinham matado dois homens para os lados de Castro Laboreiro e os carabineiros espanhóis tinham feito uma rusga na qual prenderam mais de uma dúzia de mulas carregadas com ovos, café em grão e barras de sabão.
Murmurava-se que o tenente tinha forçado os espanhóis a agir. Seria verdade? Era o que constava e o Alípio que tinha ido a Lamas de Mouro comprar semente para a próxima primavera, ouvira esta versão na venda do Grémio.
O tempo passava devagar e a tensão subia lentamente.
Nunca a pressão da Guarda tinha sido tão intensa, nem a incerteza no futuro tinha sido tão grande. Falava-se agora em ir trabalhar para França, já tinham ido alguns, sem papéis e sem haveres, ao Deus dará. Parte deles tinham sido apanhados e devolvidos pelos espanhóis, um grupo já estava a passar os Pirenéus, que diziam ser maiores que o Gerês, maiores que a Serra da Estrela.

Todos matutavam na forma de apartar o tenente do caminho e vingar as humilhações sofridas ao longo dos últimos meses. Um dia o Alípio foi a Melgaço e no posto da Guarda-fiscal pediu para falar com o tenente, mas informaram-no que não estava, tinha ido em serviço a Monção, só devia voltar passados dois ou três dias. Montou o cavalo e regressou a tempo de ajudar a Olímpia a lavrar o”Beirado de Baixo”, o terreno onde, ano após ano semeavam batatas, as melhores das redondezas.
Na semana seguinte voltou a procurar o comandante do posto e, depois de esperar mais de duas horas, fizeram-no entrar no gabinete onde o tenente o esperava.
- Então, que queres?
- Lembra-se de mim, senhor tenente?
- Achas que me ia esquecer de um malandro como tu? Diz o que queres, que não tenho a tua vida.
- O senhor não quer informações sobre os contrabandistas?
- Hum… E tu o que é que sabes? Bem me parecia que sabias mais do que dizias! Fala!
- Eu não sei nada, venho apenas dar-lhe um recado.
- Um recado? De quem?
- Sei lá, não o conheço.
- O quê? Estás a gozar comigo?
- Deus me livre, senhor tenente. Eu explico, na semana passada apareceu um homem em Lamas de Mouro, lá na venda e propôs-me vir aqui dar-lhe um recado. Pediu-me para lhe dizer que os contrabandistas que você persegue o tinham expulsado sem motivo e ele queria vingar-se. Por isso está disposto a falar, a dizer-lhe tudo o que sabe.
- Ai sim? E quem é esse tipo?
- Já lhe disse que não sei, mas ouvi dizer na venda que era de Caminha ou Seixas, não sei bem.
- Então diz lá a esse tipo que pode vir aqui.
- Não!
- Não? – Admira-se o tenente.
- Se ele quisesse vir aqui não me tinha dado cem mil reis pelo frete.
- Então que raio quer ele? Não sabe que eu é que sou o comandante…
- Sabe sim, senhor tenente, mas é que ele tem medo dos seus companheiros, quer dizer dos seus antigos companheiros. Ele disse-me que espera por si no próximo domingo na aldeia da Gave ao pé do cruzeiro, às dez da noite. Se aparecer só e me prometer que não lhe faz mal e o deixa ir em paz, ele lá estará à sua espera. De contrário não há acordo.
- Então o patife ainda dá ordens?
- Isso não sei, não é nada comigo. Então que lhe digo?
- Diz-lhe que estarei lá, mas à mínima suspeita, abato-o logo com um tiro.
- Esteja tranquilo senhor tenente, ele não me pareceu homem de violências.
(continua)

domingo, 15 de novembro de 2009

Nos trilhos do contrabando I

Devido ao tamanho este conto teve de ser dividido em várias partes que procurarei publicar com regularidade.
A vontade de o escrever chegou depois de ter passado um fim de semana nas terras altas da Peneda e de ter convivido com as belas paisagens, as aldeias, os garranos, os trilhos e as gentes que tão bem sabem receber quem os visita.

Bebeu o vinho que restava na tigela, resmungou uma despedida para o Félix, o dono da taberna e encaminhou-se para a saída. Parou junto à mesa onde se jogava à sueca, enrolou um cigarro, apreciou algumas vazas, trocou um olhar com o Carlos, um olhar que pretendia ser casual.

O estabelecimento era grande, de um lado a taberna, os pipos alinhados na parede do fundo, o balcão forrado a zinco onde os clientes se encostavam Destacava-se o pequeno armário envidraçado onde habitualmente tomavam lugar os pratos com as iscas, as pataniscas ou postas de peixe frito.

Do outro lado ficava a mercearia, com as tulhas em madeira, os fardos e as seiras, o medidor do azeite, a balança, os livros do fiado por baixo da gaveta do dinheiro. Do lado da taberna duas grandes mesas com bancos corridos, pouso dos jogadores de cartas e dominó. Eram quase sempre os mesmos, a aldeia era pequena e os afazeres do campo não deixavam muito tempo livre. Nas épocas de maior labor como nas lavradas, na poda da vinha ou nas colheitas, só mesmo ao domingo é que se juntava mais gente, vindo até das aldeias em redor provar a pinga e os petiscos do Félix.

Saiu para o caminho, piscou os olhos por causa do sol, puxou o boné para baixo, encaminhou-se para casa, já fora da aldeia. Na última volta do caminho, onde o velho castanheiro do Tio Rapão espalhava sombra, sentou-se sobre o estrado de um carro de bois ali desatrelado. Com a navalha entreteve-se a aparar um pauzinho, fazendo tempo para o encontro que se adivinhava.

O Carlos chegou afogueado, tirou o velho chapéu de feltro, limpou o suor da testa à manga da camisa.

- Vamos ali para trás – diz-lhe o Alípio – Espero que não tenhas dado nas vistas…

- Pensas que nasci ontem?

Passaram a cancela de madeira tosca e foram-se abrigar debaixo da vinha frondosa, onde já despontavam pequenos cachos de uvas.

- Então? – Questiona o Carlos.

- Então, esse filho da puta do tenente não ia adivinhar sozinho por que banda íamos passar. Se soubesse quem foi o malandro que o avisou, já lhe tinha dado um tiro.

- Ó homem, assim ainda te desgraças…

- Pelo menos ficavam todos a saber que não admito traidores. Sim, traidores, porque isto foi obra de um dos nossos.

- Podia não ser, podiam ser os de Cochos que falaram. Sabes que eu não me fio desses galegos! Até podiam ter sido os de Fiães. Sei lá!

- Não acredito, isto é obra de alguém cá da terra. Se Deus quiser hei-de encontrar o bandido e logo ficará sem vontade de ir bufar à Guarda. Malditos! – Vocifera o Alípio – Fizeram-nos perder toda a carga e ainda perdemos a mula do Zé Albino que caiu à mina. Vais a Fiães e deixa-te ficar por lá até ao fim da tarde. Conversa como se nada tivesse acontecido. Encontramo-nos aqui, à noite, quando se puser a lua, mais o Tone das Águas e o Barbeitas. Já sabes, nem uma palavra a ninguém sobre a desgraça da noite passada.

Como em muitas aldeias da raia galega, o contrabando era a forma de aliviar a miséria da vida dependente da agricultura. As terras eram pobres, o clima agreste, de verão uma torreira de sol, no inverno tudo branco de neve ou queimado pela geada traiçoeira. Os mais novos tinham abalado para Lisboa e alguns até para o Brasil, mas aqueles que tinham mulher e filhos, por aqui se aguentavam, tirando a custo o pouco sustento que a terra consentia dar.

Montes de agrestes pendentes, salpicadas de áspero granito, onde as cabras se empoleiram, onde os lobos espreitam, os garranos pastam em manadas ariscas, onde o milhafre e a águia vigiam das alturas, assim era aquela terra.

Pequenos pastos de erva amarelada mostravam que a seca ia prolongada, bom para o vinho, mal para o milho que tardava a engrossar a espiga.

Foi direito à loja onde guardavam as ferramentas, pegou na enxada, pô-la ao ombro e juntou-se à Olímpia e à Maria Rita, respectivamente sua mulher e sua irmã, que com eles vivia. Ambas manejavam a enxada entre as fileiras de milho, desalojando com golpes certeiros o gramão, a junça, os saramagos e outras ervas bravas.

Em casa os candeeiros já tinham sido apagados há muito, todos descansavam menos o Alípio, que fumava um cigarro sob a luz baça da lua, filtrada pela latada de vinha que cobria as escadas de pedra. Pacientemente esperava; esperava que a lua desaparecesse, esperava por novidades que os seus homens lhe haviam de trazer, esperava por saber quem era o malandro que os tramara. Podia desconfiar de todos, mas daí a ter certezas ía um passo muito grande. Não lhe saía da cabeça que quem os atraiçoara uma vez, podia muito bem voltar a atraiçoá-los outra e outra vez.

O sino da igreja badalou duas vezes, eram dez e meia, a lua já se aninhava por detrás dos montes do Soajo. No ponto de encontro aguardava o Barbeitas, um homenzarrão com físico de gladiador romano, que adornava a feia carantonha com uma barba espessa.

- Ainda não chegaram os outros? – Pergunta o Alípio, só para fazer conversa.

- Devem estar a chegar… Parece que oiço barulho…

- Também eu, devem ser eles.

Chegaram, sentaram-se no chão e o Carlos começou a contar as novidades.

- Não se falava noutra coisa em Fiães. Todos comentavam a apreensão que o novo tenente da Guarda de Melgaço fizera a noite passada. Mas eles pensam que a carga vinha por conta dos Cunhas, a mim até me perguntaram se tinha visto algum deles por aqui.

- Por aqui?

- Sim, parece que andam fugidos. Logo de manhã foram às casas deles, revistaram tudo e não os encontraram. Segundo dizem, foi esse tenente que comandou a rusga e chegou a dar umas chicotadas ao filho de um deles, um miúdo, para ver se o rapaz falava. Ainda troquei umas palavras às escondidas com o Mendes, disse-me que este tipo veio da Régua e é dos que não come, nem deixa comer. Um animal da pior espécie!

- Mas afinal soubeste como eles deram connosco? Quem é que bufou?

- Não pude falar à vontade, mas o Mendes garantiu-me que ficaram surpreendidos ao darem connosco. O tenente tinha-lhes dito que iam apanhar uma carga de café que ia para lá. Ah… ele disse-me para te avisar, que temos de estar quietos umas semanas até isto sossegar e que não tardarão a fazer uma ronda por aqui.

- Então é melhor tirarmos do teu palheiro o que sobrou e mudar para outro lado, fora da aldeia, senão ainda nos encontram a mercadoria.

(continua)


sábado, 10 de outubro de 2009

O gajo não tem marcha-atrás!

Depois de sair da Empresa de Lacticínios Âncora e iniciar um trabalho por conta própria, passei a gerir o tempo com mais alguma liberdade e dediquei-me mais à pesca do que anteriormente, quando tinha horários rígidos a cumprir.
Ao final da tarde, se o mar estava de feição, preparava os apetrechos e arrancava para uma das zonas de pesca que por aqui abundam. Não é por falta de pesqueiros que não se pesca! Ou na areia, nas praias de Moledo, Âncora e Afife ou nas rochas, onde existem uma infinidade de pesqueiros.
Mas ao fim da tarde e à noite, pesca-se na areia, tenta-se a sorte de apanhar algum robalo mais atrevido, que vem até à rebentação mariscar. Outras espécies que também se podem pescar nestas circunstâncias são os sargos e choupas, solhas, linguados e rodovalhos.
De verão, com o mar chão, podem aparecer as fanecas, geralmente miúdas. Eu digo que se pode pescar estas espécies, mas não pensem que estão ali, ao dobrar da esquina, à nossa espera. É cada vez mais difícil, por nítida escassez destas espécies, que têm sido dizimadas na nossa costa, desde que começaram a permitir a pesca de arrasto.
Se o mar estava picado, a solução era Moledo, que é o local mais abrigado, devido à ilha da Ínsua. Aí chegados teríamos de escolher onde pescar, no Portinho do Senhor, em Fornelos, na pedra do Cavaleiro, no Moinho ou na Ruiva.
Se mesmo assim ainda o mar fosse muito, o recurso seria avançar para norte e pescar entre o bico da Ruiva, mesmo no enfiamento da Ínsua e a Ponta Grossa na foz do Rio Minho. Confesso que durante muito tempo fui “cliente” do Moinho, mas com a influência de alguns amigos e com outras tantas pescarias de categoria, passei a ser mais adepto da Ruiva, só é pena que fique tão longe.
De Inverno, um gajo com botas altas, casaco contra o frio, e às vezes a chuva, mais a cana, o zote e o ferro de espetar, chega lá a suar. Então com a maré em cima, indo pela areia seca, nem vos conto…
Se o mar estiver mais tranquilo, pode-se pescar no praial de Âncora, entre o molhe do Portinho e as Primeiras Pedras, perto do Forte do Cão. Antigamente, antes de construírem os novos molhes do Portinho, havia um pesqueiro fantástico entre o referido molhe sul e a foz do rio Âncora, chamado Moreiro, que fica mesmo em frente à minha casa. Hoje esse pesqueiro não é tão bom, nem por sombras, pois está assoreado.
Mais ou menos a meio do praial, há um conjunto de pedras, quase sempre submersas, só se descobre uma delas, em marés muito grandes, chamada Pedra do Tesal, um bom pesqueiro, dependendo, ainda assim, da forma como estão os “secos”, as coroas de areia, que se movimentam continuamente.
Quando o mar está mesmo calmo, é hora de ir para Afife, que tem um praial com muitos secos e muitas correntes. Se o mar puxa um bocadinho não há quem aguente as linhas na água. No entanto, acho que em Afife, o peixe é na generalidade maior que nos outros locais, nomeadamente, em Moledo onde é raro tirar-se peixe grande em quantidade que se veja.
O ano passado por terem apanhado meia dúzia de peixes grandes, até fizeram uma reportagem no Jornal de Notícias. Em Afife isso acontece com mais frequência, tem o problema que é mais difícil lá pescar. A mim já me aconteceu de fazer dois ou três lançamentos, concluir que não vale a pena pois a água corre muito, desmontar tudo e vir embora.
Esta praia tem duas entradas, a norte pelo Carvalho e a sul pela Mariana, local muito conhecido da malta do surf; eu utilizo ambas, mas prefiro ir pelo Carvalho pois é um local mais frequentado, tem o restaurante e fico mais tranquilo, no que respeita ao carro.

Eu ia contar-vos uma pescaria, mas entretanto perdi-me e estou para aqui a divagar sobre pesqueiros, como se vocês não os conhecessem.
Dizia eu, que numa determinada fase da minha vida, tinha alguma disponibilidade acrescida para me dedicar à pesca. Normalmente preparava as coisas e saía no final da tarde para fazer o pôr-do-sol e uma ou duas horas depois de anoitecer.
Quem não achava muita piada a esta actividade era a minha mulher, que embirrava com o facto de eu sair, mais ou menos quando ela chegava do trabalho. Não gostava, mas comia o peixe!
Estávamos no Outono, o mês de Novembro tinha começado chuvoso e o mar era uma ressaca constante. Os barcos não saíam para o mar há mais de um mês, não havia forma de amainar o sudoeste. A chuva e o vento já tinham feito estragos, todos os dias se via na televisão, ora inundava aqui, ora caía qualquer coisa ali.
De súbito, o vento vira a noroeste e começa a limpar, o mar cai bastante, o sol brilha a espaços e divide o céu com as nuvens, ainda ameaçadoras.
Quando cheguei a casa a meio da tarde, olhei para o praial e vi dois ou três a pescar na Pedra do Tesal. Pensei cá para mim, “a água está escura e parece que não corre, não está nada mal”. À distância, não reconheci quem lá pescava, mas achei que valia a pena investigar.
Pousei a pasta, calcei umas sapatilhas e percorri a avenida até ao posto de turismo, atravessei a ponte e desci à areia, em direcção ao mar. Fui nas calmas por ali fora e reconheci o Camilo da Bezunza, o Rafael e o Arturinho mais a sul. Ainda mais a sul estava um tipo da Laje que conheço de vista, mas não sei o nome.
O Camilo já tinha uns robaliços, cachiços como nós lhes chamamos, o Rafael também tinha uns cachiços e umas chincaronas que são choupas ou sargos pequenos e dirigi-me para o Arturinho que estava mais distanciado. Quando cheguei à beira dele, estava sentado em cima do zote que era um balde de vinte litros de tinta, daqueles redondos em plástico. Eu também tenho um desses, mas é raro usá-lo.
- Então tio Artur, que tal?
- Já tenho um par deles, mas são pequenos.
Olhou à volta como a certificar-se que estávamos sós, levantou o traseiro do balde e tirou a tampa.
Lá dentro, misturados com os tarecos da pesca estavam uma meia dúzia de robalotes jeitosos, umas chincaronas e um sargo que seguramente tinha perto de um quilo.
- Pôrra, ainda diz você que são pequenos!
O Arturinho arreganhou um sorriso e pôr à mostra a fila dos dentes de ouro, que brilharam ao sol daquele final de tarde.
- Mais dois lançamentos e vou-me embora, antes que caia a noite – dizia o Arturinho.
Eu é que não esperei mais e pus-me a andar dali para fora, com os olhos em bico.
“Amanhã, se estiver como hoje, também venho pescar, mas de manhã tenho que ir à isca”.
Assim foi, no dia seguinte fui à isca da “barrenha”, porque a maré descia pouco para apanhar sintética, envolvi-a em serrim, coloquei-a no frigorífico e de seguida tive que ouvir a “patroa” dizer:
- Esta porcaria cheira mal. Vai ficar aqui muito tempo?
- Não, logo já sai e o que cheira mal é essa hortaliça cozida, que já aí está há dois dias.
Meti a tralha no carro e a meio da tarde decidi ir bastante mais para sul que o Arturinho no dia anterior. Por isso levei o carro até ao Sanatório da Gelfa e vim a pé pelo praial. A minha ideia era ficar mais ou menos a quatrocentos ou quinhentos metros mais a sul, onde tinha visto o mar a virar muito certinho, pelo menos a água não deveria correr.
Ao passar pelas Primeiras Pedras vi logo que estava um gajo no sítio onde eu tencionava ficar. “Não faz mal, fico ao lado” e continuei em direcção ao pesqueiro.
Escolhi o sítio, pousei a cana, o zote e o ferro de espetar, apurei a vista e reconheci o Dinis do “Côto”, que às vezes pescava comigo, normalmente em Moledo. Fui ter com ele e perguntei-lhe que tal estava a correr a pesca.
- Oh pá, tenho duas choupas jeitosas, mas estou com uma isca fraca, estou a pescar com isca mansa.
Isca mansa é minhoca do rio, há muita gente que a usa apenas em ultimo recurso e acha-a uma isca fraca. Eu tenho um entendimento diferente, pois já fiz boas pescarias com esta isca, tem o defeito de ser frágil e problemática se lançarmos para muito longe, pois pode desfazer-se, se não for espetada nos anzóis, com o máximo cuidado.
Mostrou-me duas belas choupas o que me animou bastante, mas logo de seguida disse algo que me refreou o entusiasmo.
- Estou aqui desde o fim do almoço, apanhei-as logo nos primeiros lançamentos e mais nada. Daqui a pouco, vou-me embora.
Preparei a cana, afinei o meu Shimano Ultegra 10.000, recentemente adquirido, linha Fire Line, chumbada de 150 gramas de cruzeta e dois anzóis Gamakatsu Aberdeen 1/0.
Lançamento feito, liguei o meu rádio, pus os auscultadores e sintonizei a RFM. Nessa época, só admitia ouvir esta estação. Hoje partilho-a com a Comercial e a Antena 3, são gostos.
O Dinis ainda veio ter comigo uma vez, só para me dizer que se ia embora e em breve só me restava olhar para o mar ou adivinhar o que estariam a pescar os tipos que estavam mais a norte, que deviam ser os mesmos do dia anterior.
O sol estava a pôr-se no horizonte, mesmo à minha frente e não havia maneira de sentir um toque.”Está na hora” pensava eu, num exercício de auto convencimento, que parecia não resultar.
Já estava completamente escuro quando senti um toque na cana, levantei-me ansioso, na expectativa. Novo toque, dou a enferrada, sinto o peixe. Começo a alar a linha e ponho em seco uma choupa pequena, não teria sequer meio quilo.
Isco e lanço de novo tentando lembrar-me se, no lançamento anterior, tinha puxado muito para fora ou não. Não demorou muito e sinto um puxão forte e continuado, que dispensou qualquer acção de enferrar.
Foi só afinar a embraiagem e pôr o gajo a marchar para terra. Estava com medo da rebentação porque apesar de não estar muito forte, era mais que suficiente para soltar um peixe que venha mal engatado e logo aquele que era grande. Quando o senti arrojado em seco, fui ao encontro dele sempre com a cana na mão e a colher a linha. Vi uma mancha branca na areia molhada, acendi o foco que tinha na testa e admirei o belo robalo que tinha apanhado.
“Depressa, depressa, ali há mais”, meti-lhe os dedos nas guelras e recuei até onde tinha o zote com a isca. Desprendi o peixe do anzol, reparei que vinha bem ferrado, não houvera perigo de fugir. Isquei e lancei, com o coração ainda aos pulos. É curioso como um pescador pode apanhar milhares de peixes, mas nunca deixa de ficar excitado sempre que tira um da água.
Senti outro, mas de forma diferente, “que raio, vai a fugir para o lado… hum, isto é choupa”, de facto sentia-se o toque violento e seguido dos peixes da família da choupa, do sargo e da dourada. Era uma bela choupa maior que a anterior, que tinha engolido o enorme anzol que eu usava.
Demorei tempo precioso a desengata-la, roguei-lhe um par de pragas e quando lancei novamente, nem tive tempo de esticar a linha, pois apercebi-me que já tinha peixe, outro robalo, que se revelou um pouco maior que o primeiro.
Eu nem queria acreditar, que era o meu dia ou a minha hora. Novo lançamento e pouco depois uma “stikada” a sério. O gajo era uma besta e não tinha maneiras. Não tive outro remédio senão afrouxar a embraiagem e deixá-lo correr à vontade, até que o consegui suster. Devagarinho comecei a trabalhá-lo para o trazer para terra, o que aconteceu sem grande alarido. Difícil foi quando lhe começou a faltar água e o bicho ficou outra vez bravo. Por momentos um tipo pensa em tudo e mais alguma coisa, será que está bem preso, que peso terá, ainda estará longe e se rebenta a linha ou parte o anzol…
“O gajo não tem marcha-atrás, foda-se, há-de vir para terra!” E veio, contra vontade, mas veio. Era um peixe!!!
Peguei nele, fui pô-lo na companhia dos outros que estavam estendidos numa cavidade que tinha feito na areia seca.
Voltei a lançar e aguardei, novo toque, nova aventura. Mas aguardei em vão; um lançamento, outro lançamento, mais outro e nada, o peixe tinha desandado.
Excitado como estava não tive paciência para mais, meti os peixes no saco de rede, arrumei as tralhas e meti pés ao caminho. Ao fim de duzentos ou trezentos metros já bufava e mudei o saco do peixe para a outra mão. Pouco depois já levava o saco a rasto pela areia e foi assim, andando e descansando para retomar o fôlego, que cheguei ao carro. Fui directo à casa dos meus sogros e, quando entrei de peito feito, diz-me a minha mulher:
- Grandes peixes, quem é que os apanhou?
Apeteceu-me logo mandá-la para aquela banda…
Não tiveram outro remédio senão convencer-se que tinham sido pescados por mim. Eu até os compreendo, muitas vezes chegava a casa sem peixe, algumas vezes com uns “charabanecos” pequenos e uma vez por festa, com um peixe que se podia apreciar. De repente, apareço com um saco deles, até desconfiaram. É como diz o ditado, “ quando a esmola é grande, até o pobre desconfia”.
A choupa maior enviei-a para a minha mãe e guardei o restante peixe no congelador, a pensar que no dia seguinte voltava lá ao mesmo sítio.
Durante o dia encontrei-me casualmente com o Dinis, contei-lhe o sucedido e combinamos manter a boca calada e aparecermos ao pôr-do-sol, no local do crime. Nesse dia voltei a tirar um robalo com cerca de dois quilos e o Dinis apanhou um ligeiramente mais pequeno. No terceiro dia, eu não apanhei nada e ele apanhou o irmão gémeo do dia anterior. No dia seguinte virou o tempo a sul, o mar metia medo, chovia e ventava forte. A pesca estava feita… e bem feita!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O velho pescador

Era um dia como tantos outros, o velhote saiu pela porta da cozinha, pegou na caixinha da isca, meteu-a cuidadosamente no zote onde já estavam meia dúzia de chumbos, carteirinhas com diversos tipos de anzóis, bobines de fio de nylon e outros acessórios de pesca.
Pôs o zote de verga ao ombro, pegou na cana encostada à parede e abriu o portão da rua. O dia nascia triste, enevoado e húmido, muito húmido. Rapidamente o boné azul ficou pejado de pequeníssimas gotículas brilhantes. Lentamente, arrastando as botas de borracha que lhe chegavam aos joelhos, desceu a avenida marginal. Ainda tinha para uma meia hora, senão mais, para ir até à Guimbra, o sítio onde tencionava passar a manhã a pescar.
Nem apreciava de modo especial aquele pesqueiro, o que lhe agradava era o ambiente que o rodeava. Pelo caminho foi cumprimentando quem conhecia, alguns também iam pescar como ele, mas iam em passo mais ligeiro, eram mais novos. Acenou ao Berto que já estava nas pedras da ribeira com o bicheiro dos polvos. “Ainda tem mais vício que eu, não passa um dia sem vir cá abaixo” e na cara do velho esboça-se um sorriso.
Chegado à Guimbra, pousou o zote no chão e sentou-se numa pedra à beira do caminho. Agora teria de descer até ao mar e aquelas lajes molhadas eram um perigo, tinha de ir com cautela.
Admirou-se por a maré estar tão vazia; ou tinha feito mal as contas ou saíra de casa mais cedo que o costume. A pedra alta de onde costumava pescar estava desocupada, aliás, ali perto não estava ninguém a pescar, apenas duas mulheres, mais a norte, talvez a Ritinha e a filha, que deviam andar na apanha dos percebes e do mexilhão.
“Qualquer dia tenho de ir ao médico da vista, se calhar são cataratas. Ao longe vejo cada vez pior” pensou o Guilhermino enquanto preparava a cana. Primeiro colocou o anzol, depois a chumbeira, iscou com meio caranguejo e lançou suavemente para o mar à sua frente. O isco caiu perto, não mais de trinta metros, já não podia fazer aqueles lançamentos de que tanto se orgulhava quando era novo.
Uma vez apostou que lançava mais de cem metros e como tinham duvidado, logo desafiou os incrédulos para irem à praia tirar as teimas. No primeiro lançamento lançou a cento e vinte e três passos, contados pelo Ticúm que tinha os passos grandes. Quando todos já se davam por satisfeitos o Guilhermino fez outro lançamento a mais de cento e trinta passos. “Bons tempos, nessa altura ainda era novo, hoje não posso com um gato pelo rabo” e sentou-se, depois de pousar a cana, equilibrada numa fenda da rocha.
À sua volta as gaivotas ociosas, ora pousavam, ora levantavam para mais um voo preguiçoso sobre as águas cinzentas.
A névoa tinha levantado e levado com ela a humidade, mas ainda estava fresco, talvez ainda desse para tirar o casaco mais tarde. Nas pequenas poças escavadas nas rochas, a vida tinha o seu ritmo próprio. As anémonas abriam e estendiam os seus filamentos em esforço de caça, pequenos caranguejos moviam-se sem jeito, de lado, como se dançassem. Um ou outro pequeno peixe, cabozes das pedras, corriam para lá e para cá à procura de alimento.
Levantou-se, pegou na cana, recolheu a linha, voltou a iscar, lançou e sentou-se à espera. “Hoje não estão cá, ou se estão não pegam na isca. Antigamente bastava cair na água e logo o peixe se atirava”.
O Guilhermino sabia bem que cada vez havia menos peixe, a ganância do negócio estava a transformar o mar num deserto. Desde que tinham começado a usar as redes de arrasto que tudo destruíam, a sobrevivência de muitas espécies estava ameaçada. “Malditas redes, mil vezes malditas” e escarrou com força, enquanto fixava o olhar no voo rasante de uma gaivota a escassos centímetros da água.
Embora não estivesse sol, já não fazia frio e decidiu tirar o casaco e o impermeável que o tinha protegido da humidade. Assim sentia-se mais à vontade, mais livre. Era por isso que gostava de pescar, mesmo que não apanhasse peixe. Só a sensação que era estar junto ao mar, aquele mar imenso que tinha atravessado dúzias de vezes a bordo dos barcos mercantes onde trabalhara. “Vida dura, meses e meses sem vir a casa, os filhos pequenos, que nem me conheciam quando chegava”, agora podia gozar a merecida reforma e a pesca era mais que um entretimento, era uma forma de estar na vida.
A cana começou a vergar, estremeceu várias vezes e manteve-se dobrada. Com uma velocidade pouco própria para a sua idade, levantou-se e deitou-lhe a mão. Ficou tenso, ansioso até sentir mais alguns puxões dados pelo peixe no outro extremo da linha.
Durou muito tempo a batalha entre estes dois seres, um apenas queria o troféu, o outro lutava pela vida. Valeram todos os truques, todas as manhas, todas as experiências vividas.
O Guilhermino perdeu a noção do tempo que levou até trazer o peixe para junto da pedra, já nem sentia os braços de cansaço, doíam-lhe as pernas do esforço e sentia o suor a escorrer pela cara e pelas costas abaixo.
O peixe, um exemplar soberbo, veio finalmente à tona extenuado com a luta, fazendo brilhar a sua ilharga prateada. Depois de o encostar à pedra, o pescador baixou-se, estendeu a mão e enfiou-lhe dois dedos pelas guelras. Num último esforço puxou-o para seco, desequilibrou-se e caiu para trás, ficando sentado na rocha com o peixe entre as pernas.
Foi o momento decisivo, os dois contendores olharam-se nos olhos, o peixe agonizava em estertores, o Guilhermino arfava devido ao esforço. “Lá entre os teus, também és um velho como eu, se calhar ainda mais velho. Não mereces esta sorte”.
Retirou-lhe o anzol fortemente cravado na mandíbula, pegou-lhe outra vez pelas guelras, tomou-lhe o peso e voltou a pousá-lo suavemente na água.
O velho robalo ventilou lentamente, agitou-se, mas não se afastou. “Vai-te embora, és livre, não voltes a cair no engano, vai”. Com uma palmada da poderosa barbatana caudal, ganhou impulso e afundou-se majestosamente. Duas lágrimas rolavam pela cara do Guilhermino que as limpou com as costas da mão.
Levantou-se penosamente, mas com um sorriso na cara enrugada “ora, para que é que precisava de um peixe tão grande, só para mim e para a Lurdes? Ia ser um desperdício, mais vale assim”.

Das montanhas te contemplo a passear


quarta-feira, 24 de junho de 2009

O Gabinardo do Senhor Abade (2ª parte)

- Vem aí um barco de guerra… Já está ao largo de Viana…
- E depois?
- Homem, é um barco dos republicanos… Vem por aí acima para nos bombardear!
- Ora! Então acha que o navio anda para aí aos tiros, sem mais nem menos?
- É o que lhe digo. Escute, – baixou a voz em tom confidencial – o Silvestre veio de Viana no trem da manhã e disse-me que por lá não se fala de outra coisa… Olhe que o Silvestre é homem sério…
- Eu sei, eu sei, mas nem quero acreditar numa coisa dessas. Bahh… Bombardeados! Esta coisa dos Bolcheviques ainda vai chegar aqui…
- Já não digo nada, amigo Celestino, este mundo está perdido…

Há dois dias que não parava de cair uma chuva miudinha, irritante e que se pegava à roupa como visgo. Naquela manhã foi difícil descortinar o fumo que saia da chaminé do “Limpopo”, apesar de navegar a menos de uma milha da costa rochosa de Montedor e Afife. Dobrou o promontório do Forte do Cão, reduziu a velocidade e vogou suavemente frente à praia de Âncora.
A povoação de Gontinhães estendia-se terra dentro, ocupando as terras férteis do Vale do Âncora. Nos últimos anos tinham as construções descido até à praia e com a construção do portinho, muitos pescadores de outras terras tinham vindo habitar para o Lugar da Lagarteira. Foram estes pescadores os primeiros a verem a pequena canhoneira a vapor, que parecia estar a estudar as condições de fundear perto da costa, se calhar com a intenção de baixar algum escaler.
As crianças furavam por entre as pernas dos adultos e algumas não se livraram de levar uns sopapos. Mesmo assim valia a pena para estar na primeira fila. As mulheres benziam-se e os homens seguiam com atenção as manobras do vaso de guerra, que já tinha andado pelas terras de Moçamedes em tempos idos. A chuva continuava a cair e a ninguém parecia importar.
- Deixem passar! Deixem passar! Arreda!!!
Com estas palavras o Tenente Castro desceu até à praia por entre a multidão expectante. Formados a dois e de espingarda ao ombro, a reduzida vanguarda monárquica seguia-o marchando com os passos trocados.
- Senhor tenente, será dos nossos? – perguntou o Afonso, que se benzia todos os dias em frente à fotografia do rei que tinha pendurada na sala, entre o relógio e o oratório.
- Hummm… Acho que não – replicou o Tenente que via perfeitamente a bandeira da República na popa do barco – Se desembarcarem vamos aprisioná-los…
- Só vocês?...
- Sim, os nossos soldados com a inspiração de Sua Alteza e a Graça Divina… E todos os homens de fé e de coragem desta terra!
Quem por ali estava e ouviu as palavras inflamadas do oficial, cedo tratou de se desviar e alguns até desistiram de continuar a observar as movimentações a bordo do vapor, que parecia agora fazer um compasso de espera.

As crianças mais velhas, a Bela e a Minda estavam sentadas junto da mãe que vigiava o trabalho de bordado que ambas se esforçavam por fazer. A Delfina abanava a cabeça, silenciosamente desapontada perante a falta de jeito que a Bela, apesar de mais velha, tinha para tudo o que implicasse cozer ou bordar. A bebé dormia na cama da mãe e a outra miúda, com quatro anos, tinha ido com a Rosa até ao moinho, onde a senhora Maria transformava grão em farinha.
- Que sossego – pensou a Delfina, cruzando as mãos sobre o regaço – Como se estarão a ver na pensão? Deve estar tudo uma confusão… O Abel não liga nenhuma, a velhota, coitada, não chega para as encomendas… Melhor tivesse eu ficado e vinha a avó com elas… Aqui um sossego e lá uma confusão! Deus me livre, quando lá chegar até tenho medo de dar em doida com o que encontrar… ahhh! Mas vão ouvir-me!
- Mãe, isto não fica direito – queixa-se a Bela – e já me espetei.
- Deixa-me ver… Estes pontos estão muito grandes! Jesus! Parecem comboios… Tens de fazer assim… estás a ver! Parece-me que estou a ouvir a bebé, deve ter acordado.
Levantou-se e empurrou de mansinho a porta do quarto onde a Letinha repousava. A criança ainda dormia e a extremosa mãe decidiu colocar outro cobertor sobre a criança.
Haviam cobertores no guarda-fatos, já os tinha visto no primeiro dia. Abriu a porta do roupeiro, escolheu uma manta aos quadrados verdes, segurou a roupa que estava por cima e puxou-a para fora. Junto com a manta veio uma peça de roupa preta. Levantou-a do chão para a dobrar e arrumar no mesmo sítio, quando reparou na interminável fila de botões muito juntos.
- Mas que raio… parece a sotaina… ora esta…é a sotaina do padre.
Levantou a sotaina, virou-a várias vezes para melhor a apreciar, dobrou-a apressada, sentindo-se afogueada. Voltou a colocá-la sob a rima de cobertores e fechou cuidadosamente o roupeiro que guardava o grande segredo. Há muito que corria, à boca pequena, o boato que a senhora Maria se entendia com o padre Correia. Não se falava na freguesia, mas as comadres cochichavam e os homens trocavam aqueles olhares de sabedoria.

Uma pequena nuvem de fumo saiu da proa do “Limpopo” e um silvo agudo passou sobre as cabeças dos espectadores. Do mar veio o barulho semelhante ao trovão, que deixou todos atónitos.
- Que foi, mãe? – pergunta a pequenita agarrada com todas as forças à saia da mãe.
- Fujam, fujam, estão a bombardear – gritou alguém.
- Estão a bombardear-nos… Fujam!!! – era o que mais de ouvia.
Como impulsionados por uma mola, todos se viraram para terra e correram. Novos, velhos, mulheres, crianças… todos procuraram abrigo entre o casario baixo, pobre e rústico da Lagarteira.
Novo silvo agudo e novo estrondo vieram do mar, pouco mais longe que o Sabugo.
- Dispararam outra vez – informa alguém, como se os outros não soubessem.
Passados os primeiros momentos de pânico, o Tenente Castro que fora dos primeiros a fugir, recobrou animo, tirou o boné, passou a mão pelo cabelo, voltou a enfiar o boné, olhou para as botas sempre reluzentes e agora emporcalhadas da areia, puxou as mangas do dolman e decidiu-se a tomar conta da situação.
- Cabo Simões, reúna os homens.
- Eles estão aqui, senhor tenente.
- Sim? Onde está a sua arma? – pergunta o oficial ao soldado gordo que arquejava com o esforço da corrida.
- A ar… arma?!!!... Hum… Acho que… que ficou ali em baixo – responde o atarantado soldado, apontando para o sítio onde tinham estado a observar o navio republicano.
- Perder a arma!!!... Você vai a conselho de guerra. Devia ser fuzilado imediatamente – berra o tenente descontrolado.
- Eu vou… eu vou já buscá-la – responde-lhe o soldado afastando-se ligeiro.
Entretanto mais um tiro de canhão foi disparado e todos se encolheram pois o impacto dera-se ali perto.
- Fujam, eles vão destruir tudo! – gritou alguém, levando a nova correria pelas ruelas, entre as casas.
- Soldados! – berrou o tenente de pistola em punho – Carregar armas. Vamos ripostar. Espalhem-se para parecer que somos muitos. Depressa!!! Ao meu comando… fogo!
Uma descarga de Mauser atingiu o “Limpopo” onde, descontraidamente, a tripulação assistia do convés, aos disparos do canhão da proa. Um marinheiro caiu, ficando na coberta a gemer, enquanto os outros de abrigavam do lado do mar e nova saraivada de balas batia nas chapas carcomidas da velha canhonheira.

O primeiro tiro do canhão fez o Abel dar um salto no banco da loja que funcionava no piso térreo da sua pensão. O projéctil tinha caído ali perto. Muito perto, no lado do Sol Posto. Veio à porta olhou para o céu e viu na varanda, sobre a sua cabeça, a bandeira azul e branca que os soldados tinham desfraldado.
- Américo, vai lá acima e tira aquela bandeira. Estão a disparar contra ela! Depressa!
Neste momento ouviu-se outro impacto mais afastado e pouco depois chegou o enteado com a bandeira nos braços. Os disparos seguintes foram para outros alvos e o coração do Abel começou a serenar.
- Foi na casa da Tia Claudina – diz alguém que passa na rua a correr.
- Ó diabo! Matou alguém?
- Não… Ela tinha ido à horta apanhar um braçado de couves para os coelhos.
A batalha foi curta e ao fim de meia dúzia de disparos, a canhoneira vomitou umas baforadas de fumo pela chaminé, afastou-se da costa e rumou para norte. Fosse pela resposta dos soldados em terra que, bem abrigados pelos muros de pedra dispararam as suas armas, fosse por qualquer outro motivo, o certo é que não houve nenhuma tentativa de desembarque e ao fim de pouco tempo o “Limpopo” deixava de ser visto.
Ainda houve quem fosse ao Espilrro espreitar, não mudassem de ideias ou fosse uma armadilha para apanhar os atiradores distraídos, mas viram o barco seguir a direito até à Ínsua.

No Amonde só souberam destes acontecimentos dois dias depois, graças à visita da Tia Leonarda, que depois de retemperar forças com uma caneca de vinho branco, um par de pataniscas e um naco de broa, lhes contou como a casa da Tia Claudina, no Largo do Sol Posto tinha levado um tiro de canhão, que entrara pelo telhado e rebentado com o alguidar onde demolhavam umas postas de bacalhau. A Delfina teve um arrepio só de pensar no que podia ter acontecido, se o projéctil se tivesse desviado quarenta ou cinquenta metros, caindo sobre a pensão.
Outro dos edifícios atingidos foi a estação dos caminhos-de-ferro, pois era bem visível do mar a enorme bandeira monárquica que lá tinham hasteado. Um dos quartos da residência do chefe da estação tinha ficado destruído e a esposa desse ferroviário tinha-se salvo por milagre, pois estava na dependência imediata.
A Defina que estava desejosa de regressar a casa, ponderou nos perigos cada vez maiores deste conflito político. Teriam de ficar mais algum tempo, apesar de contrariada por estar afastada da sua cozinha, local onde passava a maior parte do tempo e onde se sentia como peixe na água. Também a descoberta que fizera no roupeiro da senhora Maria a constrangia muito, principalmente quando ficava a sós com a sua anfitriã.

A 13 de Fevereiro o exército republicano entrou na cidade do Porto e o Reino da Traulitânea ruiu como um castelo de cartas. Os soldados envolvidos na revolta regressaram aos quartéis, os chefes do golpe foram encarcerados e a bandeira verde e rubra voltou flutuar em todo o país.
O tenente Castro quando recebeu das mãos de um estafeta a cavalo, a ordem para se dirigir imediatamente a Viana e pôr-se à disposição do comandante do Regimento de Artilharia Ligeira do Forte de Santiago da Barra, compreendeu que estava tudo perdido. Esmagou lentamente a cigarrilha com a biqueira da bota reluzente, subiu ao seu quarto, escreveu uma nota dirigida ao seu comandante de divisão, pegou no revolver e deu um tiro na cabeça.
Ao barulho da detonação acorreram várias criadas da pensão e dois dos soldados que se entretinham a jogar à bisca na loja do rés-do-chão. Em breve, todos sabiam que o nervoso tenente Castro tinha preferido suicidar-se a ter de reconhecer a derrota, enfrentar a prisão e o exílio provável nas colónias africanas.
- E agora, que fazemos? – pergunta um dos soldados, perante o cadáver do tenente.
- Agora – responde o Abel – peguem nele e enterrem-no! Ou pensam que vou ser eu a tratar disso? Já me chega ter-vos sustentado durante duas semanas… Andando daqui para fora!!! Levem o tenente e… levem o raio da bandeira convosco!

A Tia Leonarda já tinha o gado atrelado ao carro, a Rosa descera as bagagens, a Delfina estava a despedir-se da senhora Maria e as crianças brincavam com os cães da propriedade.
A Delfina descia as escadas exteriores de pedra, quando voltou para trás e disse em voz baixa para a Senhora Maria, que estava debruçada na balaustrada.
- Esqueci-me de lhe dizer que cozi os botões que estavam soltos no gabinardo do Senhor Abade... mas não se preocupe, pois voltei a arrumá-lo entre os cobertores.
Fim