terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Cronica de um encontro de primos


A ideia germinou, amadureceu e concretizou-se. A família Brito juntou-se em retiro espiritual (e gastronómico) na zona de Melgaço, num aldeamento de montanha apelidado “Branda da Aveleira”, que fica longe de tudo.
Longe da civilização, mas com todos os confortos da mesma, excepto o telemóvel que só funciona a partir de um determinado nível da encosta, na parte superior da aldeia.
Como já conhecia o caminho, fui tranquilamente, apesar de atrasado em relação ao horário que tinha combinado, pois com mulheres raramente se chega a horas. “Agora tenho de ir arranjar o cabelo”, ainda falta ir comprar um bolo”, “não sei o que hei-de levar vestido” e por aí fora!
Levei a minha mãe, para quem não sabe, uma senhora de noventa e dois anos, a caminho dos noventa e três, e comigo arrancou tambem a Sofia no seu automóvel. Aproveitamos para ir a Espanha encher os depósitos dos bólides e ao chegar a Tui toca o telefone. Era o António Castilho a dizer que estava já perto da Aveleira, junto de um coreto e de umas casas que estavam fechadas e sem ninguém por perto. A ligação estava má, eu não tinha a menor ideia de onde ele estaria, tentei que me desse mais coordenadas e a chamada “caiu”. Quando contei aos meus passageiros o que se estava a passar, a Paula lembrou-se que o coreto só podia ser o do Santuário da Senhora da Guia a dois quilómetros da Aveleira. É só descer o caminho e estamos lá. Ainda tentei ligar-lhe mas ele já não tinha rede.
Ao passar pela Porta de Lamas de Mouro, onde tinha de virar à direita, mesmo a seguir ao café, encontro a Fernanda Meira e o filho, às voltas com uma marmita de bolos de bacalhau. Paramos por breves instantes, eles ficaram à espera da Paulinha que devia estar a chegar e continuamos ansiosos por chegar ao destino.



Na Aveleira tínhamos à espera um casal, proprietários de duas das oito casas que alugáramos. Deram-nos as chaves, entretanto vejo o carro do Castilho, fui bater-lhe à porta e logo ali se trocaram os primeiros cumprimentos. Seguimos para o meu alojamento a “Casa do Castanheiro” onde “acampou” a malta que comigo viajara. A sobrinha Sofia, o companheiro (dela) Hugo, o rebento Duarte, a minha irmã Fininha e a matriarca Maria José (Quinhas, para mim).
A casa era espaçosa tinha uma lareira convidativa que logo foi acesa e assim permaneceu até sairmos no dia seguinte, alimentada pelas “achas” de lenha amontoadas no alpendre das traseiras, de onde se desfrutava de umas vistas ímpares.
Quando acabamos de comer já passava das três da tarde. Aos poucos todos iam chegando e iam-se visitando uns aos outros, conhecendo os velhos e gastos caminhos da Branda, apreciando as (poucas) casas recuperadas e as (muitas) casas ainda em ruínas.
A Branda da Aveleira era um refúgio de pastores e rebanhos que esteve totalmente abandonado até que alguns proprietários decidiram recuperar as suas casas para turismo de montanha. Hoje não há rebanhos de ovelhas ou de cabras, mas ainda se podem apreciar manadas de garranos e bovinos em liberdade pelas encostas daqueles montes.

Em breve começou a escurecer, combinamos encontrarmo-nos na casa do Jorge Meira que tinha a sala maior, embora pequena para tanta gente e para tanta comida.
Todos se esmeraram na qualidade, na variedade e na quantidade. Havia comida para três dias, pelo menos, mas nós juntamo-nos para conversar, para conviver e para nos conhecer, pois havia primos de segunda e terceira geração que não se conheciam. Eu não conhecia o filho da Xana, nem as filhas do Ruca, por exemplo. Só por isso já foi bom, mas ainda foi mais delicioso lembrar estórias de outros tempos, recordar pessoas que cruzaram as nossas vidas, ouvir da boca dos próprios as partidas as brincadeiras que nunca esqueceram.
Ver fotografias, reconhecer figurantes, uns em pose, outros desprevenidos, na praia, no campo, em casa, os nossos pais, tios, avós, amigos. Saudade!
A dado momento o Jorge desembrulha um pequeno sino de bronze com um palmo de altura e que pertencera ao nosso avô Abel Brito, para chamar os banhistas que estavam na praia quando o almoço na Pensão Âncora estava pronto a ser servido!
Acabamos a reunião perto das duas da madrugada, alguns vencidos pelo sono, principalmente as crianças. Cá fora o frio apertava, alguém disse que estavam três graus, o meu carro já tinha gelo nos vidros.
Não me apetecia nada ir para a cama, queria que aquela noite não acabasse assim, tão rápido. Em casa abri uma cerveja e fui bebê-la no alpendre, de frente para a montanha, no silêncio da madrugada.


Dormi bem, levantei-me cedo, dei umas voltas pelas redondezas, fui à casa da minha irmã Mimi, que ficara instalada na última casa, no cimo do monte. Para lá chegar “deita-se os bofes pela boca fora”, tão íngreme é o caminho, mas a paisagem é deslumbrante.
Arrumar as tralhas, carregar os carros, concentração ao meio dia junto da recepção para fazer as contas. Tiramos as fotos do conjunto na pequena ponte à entrada da aldeia e arrancamos em direcção a Melgaço, pela estrada de Gave.
Almoçamos no “Retiro do Sossego”, um pequeno restaurante com boa comida, bom ambiente, embora demasiado caro. O Fernando Meira presenteou-nos com um pequeno chocalho (símbolo da família), com o brasão dos Brito gravado, um leão.
99,98% dos presentes preferiam que fosse um dragão azul, apenas 0,02% (da Sofia e do Helder) preferiam uma águia.
Não interessa! O nosso brasão é um leão vermelho, mais nada.

Ficou a vontade de unânime de repetir o encontro de primos, com todos, se possível, com os que quiserem, de certeza. Quebraram-se alguns gelos, estabeleceram-se algumas pontes, criaram-se algumas cumplicidades.
Para já vamo-nos encontrando por aí, trocando e-mails, deixando voar a imaginação até ao próximo encontro.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O incêndio na refinaria

A coluna de fumo engrossava a cada momento. Era para os lados do mar. O alarme continuou a berrar e todos procedimentos de evacuação e segurança estavam activados.
Operários e técnicos saíam dos seus postos de trabalho convencidos que era mais um exercício, mas ao depararem com a coluna de fumo apressavam nitidamente o passo.
O chão tremeu e de seguida ouviu-se o forte estrondo de uma explosão. Mais explosões se seguiram. Talvez quatro ou cinco, as labaredas eram agora enormes e o fumo multiplicou-se, devia ser visível a quilómetros de distância.
O corpo de bombeiros privativo da refinaria já atacava as chamas com a espuma transportada nos depósitos dos camiões pronto-socorro e deviam estar a chegar os reforços das corporações de Leça e de Matosinhos. O incêndio metia medo e a ETAR estava tomada pelas chamas.
No edifício principal, na ala destinada aos serviços de segurança, vários técnicos observavam atentamente as imagens provenientes das câmaras de vigilância, enquanto outros se desdobravam em telefonemas e consultas aos monitores dos computadores.
Depois de dar as instruções que julgou necessárias o inspector Neto, chefe dos serviços de segurança da refinaria, vestiu o blusão e saiu levando consigo um dos rádios.

Conduziu o Fiesta verde fluorescente do serviço de segurança ao longo da avenida norte em direcção ao mar e pensou no que aconteceria se, por azar, o incêndio fosse nos depósitos de gasolina que ficavam no lado oposto. Ao aproximar-se começou a sentir o cheiro acre da combustão dos resíduos acumulados na ETAR.
“ É sempre a mesma merda, os gajos não ligam nenhuma, agora eu que me tenho de desenrascar” pensou o inspector Neto, que já há várias semanas tinha feito um relatório, dando conta do perigo que representava toda aquela lama empapada em hidrocarbonetos, que enchia a estação de tratamento de águas residuais.
Através do rádio chamaram-no da central a perguntar se seria preciso acudirem os bombeiros privativos do aeroporto. Na dúvida, disse que sim, parou o automóvel, pendurou ao pescoço a máscara antigás, pegou no rádio e encaminhou-se para onde estava o chefe da equipa de bombeiros.
O chefe Reis berrava para apontarem uma das mangueiras que jorrava espuma, para um dos cantos onde as labaredas estavam mais assanhadas e ameaçavam atingir a bacia seguinte.
Mesmo àquela distância o calor era intenso, trespassava rapidamente o grosso blusão que trazia vestido. Os seus homens estavam equipados com fatos térmicos, próprios para estas emergências, mas tinha a certeza que suavam copiosamente.
Duas horas depois, com o fogo circunscrito, praticamente extinto, dirigiu-se aos comandantes das outras corporações que tinham vindo ajudar no combate. Dos jornalistas que se encarregasse o tipo das relações públicas, um palhaço engravatado que a esta hora estava a contar histórias de fadas às televisões. “ O ambiente é a nossa prioridade, está tudo acautelado”, “arderam somente uns detritos, infelizmente fez muito fumo”, “não, não, não oferece qualquer perigo, não é tóxico”.

Durante a tarde e a noite foram executados os trabalhos de rescaldo e logo na manhã do dia seguinte o inspector Neto e o Chefe Reis foram vasculhar nos escombros, alguns deles ainda fumegantes. O cheiro era intenso e provocava vómitos, apesar da brisa marítima que levava para sul a pestilência.
- Ó chefe afinal onde é que isto começou?
- Quando cá cheguei isto já ardia tudo, foi um pouco antes das explosões.
- Não pode ser. As explosões deram-se ao serem atingidas as lamas do tanque quatro e cinco, não pode ter começado aí.
- Nisso tem razão, inspector. Só pode ter começado no tanque de recepção… ou no decantador primário.
- Vamos lá ver. Por aí não, vamos à volta, quero ver do lado da vedação.
No descampado entre a ETAR e a vedação que separava a refinaria da Avenida marginal de Leça nada encontraram de relevante para o esclarecimento do incêndio. Entraram na sala dos quadros eléctricos mas apenas verificaram que os disjuntores estavam todos disparados, sem qualquer sinal de curto-circuito.
Junto do tanque de recepção procuraram em vão alguma pista esclarecedora. Estava tudo queimado mas a carga térmica ali não devia ter sido muito grande, havia partes metálicas que estavam intactas, apenas a tinta tinha desaparecido.
- Chefe, venha cá ver isto…
- O quê? Carago, que é isto preto?
- Isso queria eu saber. Sei lá, desaparece na erva…
- Ó inspector Neto, isso é cinza, vamos ver para onde vai.
- Vai em direcção à vedação, está a ver, segue por aqui fora e passa a rede.
O chefe Reis tirou o boné, passou a mão pela careca e resmungou:
- Só faltava mais esta merda…
- Pois, pois, já vi que entendeu. Isto foi sabotagem, algum safado ateou fogo lá da avenida. Esta cinza deve ser de uma espécie de rastilho que estava aqui estendido e que depois da ignição foi puxada através da rede, para não deixar vestígios.
- Filhos da mãe, bem pensado, daqui até à vedação ainda são uns cinquenta metros…
- Ó chefe, quem fez este trabalhinho é cá de dentro, só alguém com acesso a esta zona podia estender e disfarçar entre a erva o cordão de rastilho e a fonte de detonação, talvez uma garrafa de gasolina ou algo semelhante. Chefe Reis, vou isolar de imediato esta zona e só com minha autorização é que alguém passa as barreiras.
- E não informa a polícia do que descobrimos?
- Para já não. Informar a polícia é pôr a notícia nos telejornais em menos de uma hora. Tenho outra ideia e quero tirar isso a limpo, já.

Ao chegar ao seu gabinete chamou os seguranças de serviço na hora em que deflagrou o incêndio e concluiu que não tinham visto nada de estranho.
“Raio de lorpas, andam sempre a dormir” e atravessou o corredor em direcção à central de vigilância. Controlavam mais de oitenta câmaras de alta definição, muitas delas com sensores de infravermelhos que detectavam todas as fontes de calor anormais ou inesperadas.
Esperou dez minutos até o Freitas, um dos técnicos da secção acertar com as imagens da câmara que pretendia, à hora da deflagração.
A câmara montada numa torre que também alojava vários holofotes de iluminação, mostrava a vedação ao longo da avenida Coronel Hélder Ribeiro, junto ao mar. Viram aproximar-se um automóvel, que parou na berma, saiu o condutor que se encostou à vedação, parecia urinar. De repente agitou-se e começou a puxar algo freneticamente. Do lado da ETAR saia uma pequena labareda e o fumo elevava-se. Quando voltou a fixar a atenção na vedação, verificou que o automóvel se afastava rapidamente
- Chame-me os seguranças que costumam estar de serviço no parque de estacionamento. Algum deles deve conhecer aquele carro.
- Mas porque é que hão-de conhecer o…
- Porque é de alguém cá de dentro. Chame lá os seguranças e interrogue-os, que eu estou à espera no meu gabinete.

Minutos depois tocou o telefone e o Freitas revelou, todo excitado, que o automóvel pertencia a um engenheiro a quem a administração não tinha renovado o contrato, que tinha terminado dois dias antes.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Uma viagem atribulada

Levantei-me mais cedo que o habitual porque tive de ir a Viana do Castelo resolver um problema relacionado com a facturação da EDP. Às nove horas já estava à porta destes serviços e contrariamente à minha expectativa eu era o único “freguês”, sendo atendido de imediato. Ao fim de poucos minutos estava de regresso a Vila Praia de Âncora a tempo de estacionar o Audi e esperar o comboio que me levasse até Vila Nova de Cerveira. É isso, agora faço-me transportar de comboio nas idas para o trabalho.
Tenho compatibilidade de horários, fica bastante mais económico, não há o stress do trânsito e já estou farto dos buracos da EN-13. Também já estou farto da “chulice” dos impostos sobre os combustíveis e, acima de tudo, este é o meu contributo ecológico.
Podem-me dizer que é um gesto simbólico, mas o que é certo é que ao fim do ano são muitos quilos de CO2 que não são lançados na atmosfera. Se houver muita gente a tomar idêntica atitude contribuímos substantivamente para travar o aquecimento global. Por tudo isso vou de comboio e até gosto.
Apanhei o comboio das 9.47 no apeadeiro de Âncora-Praia e arrancamos para norte, até Caminha, com a próxima paragem em V. N. de Cerveira, o meu destino como já referi.
Sentei-me como habitualmente na primeira carruagem, acenei para alguns alunos da ETAP e liguei o MP3, ouvi Manu Chao e depois uns blues não sei de quem. Perto da entrada do pequeno túnel de Seixas ouvi distintamente uma pancada na frente do comboio e algo bateu várias vezes no fundo da carruagem, junto aos nossos pés. Alguma pedra ou peça que se soltou da locomotiva. Sentimos os motores desacelerar e uma longa travagem que fez a automotora parar dentro do túnel.
Cá para mim pensei “já houve merda, mas pelo menos não descarrilamos”. Desliguei a música, o revisor entra na cabine do maquinista, volta a sair de telemóvel na mão e apercebe-se que não tem rede. Volta à cabine e o comboio arranca muito devagar e volta a parar já fora do túnel. Quando o revisor, que dava mostras de grande nervosismo sai para telefonar, diz-nos que o comboio tinha acabado de atropelar uma senhora, na pequena passagem de nível de S. Sebastião.
Em poucos minutos chegou um carro da GNR, o maquinista estava visivelmente em estado de choque, e nós aguardávamos na expectativa as informações que nunca nos deram. “Quem era, foi acidente, terá sido suicídio?”, claro que era impossível saber, porque estávamos parados quase a um quilómetro de distância.
Por fim arrancamos, e o comboio ficou retido na estação de Cerveira para inquérito, seguindo os passageiros para Valença noutra composição que já os aguardava.
Nem sei bem porque é que estou a escrever esta crónica, talvez para aliviar a tensão, a sensação desagradável que me percorre a espinha cada vez que penso naquele barulho mesmo por baixo dos meus pés. Acreditem que é muito desagradável…

domingo, 13 de janeiro de 2008

"O que diz sim e o que diz não"

Embora de forma breve já fiz parte do Orfeão de Vila Praia de Âncora. Não propriamente do orfeão, leia-se grupo coral, mas do grupo de teatro. Nunca tive voz para cantorias, nem jeito para dançar, mas a certa altura convenci-me que tinha alguns dotes de representação. Se calhar convenceram-me, já foi há tanto tempo…
Não recordo o ano com exactidão, mas foi pouco depois do 25 de Abril. Disso tenho a certeza!
Tudo começou com o Padre Marinho. A direcção do Orfeão “engatou-o” para director artístico do grupo de teatro e para arranjar gente capaz de dar vida àquela secção, já que ninguém queria pegar naquilo.
A cisão no Orfeão que deu origem à criação do Etnográfico de Vila Praia de Âncora ainda estava muito fresca e notava-se uma certa indefinição, alguma letargia, mas também muita determinação por parte de alguns elementos. Eu é que não tinha nada a ver com aquilo, mas anui ao pedido do Marinho para participar numa peça que ele queria apresentar.
Mas quem era o Padre Marinho, perguntam vocês? Os da minha idade lembram-se dele, mas os mais novos não o conhecem. Era pároco em Âncora, seria, no máximo, dez anos mais velho que eu e alinhava com a malta para tudo, perdão, para quase tudo e conseguia dizer a missa em menos de dez minutos, tipo Pepe Rápido!
Era possuidor de um Datsun 1200 e achava-se um grande condutor, o que também era uma grande mentira. Felizmente nunca teve nenhum acidente, mas que arriscava um bocado, arriscava!
Mas dizia eu, que fui parar ao grupo de teatro do Orfeão de Vila Praia de Âncora juntamente com mais um punhado de amigos, mais ou menos a malta que andava a estudar junta no Liceu de Viana, o “nosso” grupo.
Recordo a Fernanda Neves e a Fernanda Bouças, a Carla e a Nela, o Chico e o Churriba, o Zeca do Morrosó, o Zé da Linha, a Ilda, o Cândido e o Aristides. De certeza que haviam mais alguns, mas de momento não me lembro. Como éramos todos novatos em teatro, excepto a Fernanda Neves que já tinha alguma experiencia, o Marinho decidiu ensaiar uma coisa “ligeira” e “fácil”, uma peça de Bertold Brecht, muito em voga nos meios intelectuais de esquerda da época e que se chamava “O que diz sim e o que diz não”.
Uma peça em dois actos, praticamente iguais que só eram diferentes nos cinco minutos finais (do segundo acto). De fácil não tinha nada, nem para os actores, nem para os espectadores, que ficavam completamente baralhados ao começar o segundo acto e ouvirem tudo com no princípio. Mas para uns actores como nós éramos, estava tudo bem!
Depois de dois ou três meses de ensaios, com muita borga pelo meio, foi marcada uma saída, íamos participar no Encontro de Coros na Covilhã e o grupo de danças e o grupo de teatro também iam para dar um espectáculo numa aldeia vizinha.

Foi durante uma madrugada do mês de Junho que entramos para o autocarro, cruzamos o Rio Âncora pela Ponte de Estrada Real e rumamos para sul. Se aqui em Vila Praia de Âncora estava bom tempo, conforme nos aproximávamos da Covilhã a canícula ia aumentando até se revelar um calor abrasador.
Fomos directamente para Unhais da Serra a tal aldeia que afinal não ficava assim tão perto e lá demos o nosso espectáculo, durante o qual os espectadores barafustaram ruidosamente com frases do género “Estão outra vez a repetir a mesma merda” ou “Que c… de teatro é este?”. Foi uma barraca completa, nós até nem nos enganamos e dissemos tudo direitinho!
A seguir actuou o grupo de danças que teve de dançar num ringue de patinagem, porque o palco onde nós actuamos era muito pequeno. Assim passamos a tarde à espera do jantar que nos ia ser servido lá em Unhais da Serra. Uma aldeia serrana, os sabores da natureza e nós a contar com os chouriços, as broas, os presuntos, aquele vinho da Cova da Beira…
Afinal serviram-nos sandes de alface e tomate, água e vinho de garrafão do mais reles que havia certamente na mercearia. Foi uma grande desilusão e uma grande barrigada de fome.
Regressamos à Covilhã de orelha murcha, a tempo do grupo coral actuar à noite, mas ainda não sabíamos onde iríamos pernoitar. O calor continuava e nem a noite nos refrescou.
No final do espectáculo de regresso ao ponto combinado, junto do autocarro ainda ninguém sabia onde se iria dormir, logo havendo alguns elementos que decidiram abalar para uma pensão próxima.
Por fim, já depois da meia-noite, apareceu um tipo da organização que guiou os homens até uma escola e as mulheres até um convento. Ah… Pensavam que ficava tudo junto? Não, não, eram outros tempos e não havia essas confusões! Até havia, mas não se dava tanto nas vistas, percebem?

Ainda bem que estava calor porque o alojamento resumia-se a uns colchões de espuma espalhados pelo chão nas salas de aula, às quais tinham tirado as mesas e as cadeiras. Acho que adormeci madrugada alta, pouco antes de nascer o sol, tendo passado o tempo a fazer todo o tipo de patifarias possíveis. Ainda recordo de ter ajudado a trazer um camarada (com colchão e tudo) para o jardim onde continuou a dormir placidamente em cuecas.
De manhã cedo, andava o Vasco Moreira de clarinete em punho, a passar pelas salas a acordar a malta sendo recebido com toda a cerimónia própria para estes casos “Ó Vasco, mete a gaita no cu”, vai acordar o c…” e outros mimos do género.
O meu pequeno-almoço foi num café perto da praça do município e ao qual voltei muitas vezes, mais tarde, no decurso da minha vida profissional, sempre que pelo sopé da serra pernoitava. Uma sande de queijo e um fino, uma imperial, com se diz para aqueles lados, para espanto do empregado, mais habituado a servir galões e torradas pela manhã.
Depois de todos reunidos, mais uma vez à volta do autocarro, lá arrancamos serra acima, o autocarro ronceiro que fumegava em cada curva, todos com dúvidas se conseguiria ultrapassar os desníveis do percurso. O local escolhido para o convívio dos Coros, já passadas as Penhas da Saúde, era aquele vale enorme antes da subida para a Torre.
Aí assistimos a uma missa campal e conseguiram pôr todos os coros a cantar um hino em conjunto. Não estou certo, mas seriam mais de mil e quinhentas pessoas.
No final havia o piquenique e o regresso a casa. Como no dia anterior tínhamos passado fome de cão, ansiávamos por esta refeição, até porque o ar da serra puxa pelo apetite. Não recordo o manjar, recordo a fome com que continuei e a “fita” que foi chegar ao camião onde estava o vinho.
Tudo em fila de copo na mão aguardando pacientemente a vez para abrir a cobiçada torneirinha. O Professor Monteiro é que não foi de modas, ao chegar a sua vez, bebeu logo dois ou três copos seguidos, começando a ser imitado por muitos outros. Se a bicha andava devagar, passou a andar ainda mais devagar, para desespero dos sequiosos orfeonistas.
No regresso paramos em Coimbra ou arredores para comer qualquer coisa pois a larica era muita e a viagem iria durar longas horas.
Recordo uma viagem animada, com muita música, muita cantoria e muita brincadeira, novos e velhos irmanados na amizade e no companheirismo.

Esta foi a minha primeira e ultima saída com o Orfeão, ainda demos mais um ou outro espectáculo pelos arredores, mas o Marinho acabou por admitir que a peça era “difícil”, face aos repetidos e pouco abonatórios comentários dos espectadores e à nossa recusa em continuar a fazer o papel de bombo da festa. Decidiu ensaiar outra peça, “O espantalho” que ainda era pior que a anterior e por isso deixei de ir aos ensaios, nunca mais retomei o contacto com o grupo de teatro.
Aos poucos todos foram desistindo, o próprio Marinho também abandonou, assim se perdendo a oportunidade de motivar e de formar gente que pudesse levar à cena, com regularidade peças interessantes. Para mim, peças do Brecht nunca mais!





quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Uma aventura no Pinhal

Voltou a experimentar o foco, guardou-o no bolso exterior do anorak verde. Abriu devagar a porta do quarto e viu a claridade filtrada que vinha do quarto dos pais. Ouvia o pai a ressonar, a mãe ainda estava a ler, um velho hábito antes de apagar a luz para dormir.
Tinha de esperar até estar tudo sossegado, voltou a acender a luz do candeeiro, escolheu um livro entre a rima de almanaques Disney. Decidiu-se pelas aventuras do Mickey e do Pateta, sempre repetidas, sempre engraçadas.
Recostado na cama, pés sobre a colcha, os ponteiros do relógio sobre a mesinha de cabeceira parecia que não queriam avançar.
Passava da meia-noite quando finalmente se decidiu a sair do quarto. Pegou na machadinha que tinha escondida debaixo da cama e entalou-a entre o dorso e o cinto das calças. Tinha visto no cinema um gajo fazer isso e pareceu-lhe boa ideia imitá-lo.

Às escuras atravessou o corredor, entrou na cozinha e fechou a porta atrás de si. O gato roçou-lhe as pernas fazendo-o desequilibrar-se, tendo de se agarrar ao frigorífico. Pareceu-lhe ter feito um barulho enorme, susteve a respiração, ficou à escuta. Durante um tempo apenas ouvia o coração a bater e o pai a ressonar lá no quarto. O gato continuava a passar-lhe entre as pernas. Tinha ganas de lhe dar um piparote, mas conteve-se com receio do barulho que o felino provavelmente faria.
Como não houve reacção no quarto dos pais, avançou para a porta das traseiras. Rodou a chave lentamente, procurando abafar ao máximo o estalido da engrenagem. Esgueirou-se rapidamente enxotando o gato que se dispunha também a sair. Desceu as escadas até ao pátio do rés-do-chão, saltou a vedação e deixou-se escorregar pelo talude até à linha do caminho-de-ferro.
Chapinhou na água do rego que corria entre o talude e o cascalho, atravessou a linha e caminhou para sul pelo carreiro paralelo aos carris. Apesar do céu estar encoberto, não se atreveu a acender o foco que mantinha no bolso. Alguém dos prédios vizinhos podia ver a luz e interrogar-se sobre quem andaria na linha àquela hora.
De vez em quando pisava alguma pedra que o desequilibrava. Se alguém o visse pensaria que ia com os copos. A machadinha entalada no cinto incomodava-o, mas sentia-se confortável com as mãos nos bolsos do anorak. A noite tinha arrefecido muito e já se sentia a geada, que de manhã iria mostrar tudo branco.
Cruzou a passagem de nível e o apeadeiro contíguo de forma furtiva, após inspeccionar as redondezas. Ninguém à vista, agora mais descontraído e consciente da aventura nocturna, avançou até ao Pinhal da Gelfa.
Mas antes ainda tinha de atravessar a ponte metálica, uma relíquia projectada pelo famoso Engenheiro Eiffeld. Aí acendeu a lanterna, não fosse o diabo tecê-las e ir parar à água gelada do Rio Âncora que corria lá em baixo.

No limite do pinhal não hesitou, caminhou decidido entre os pinheiros. Conhecia aquelas bandas perfeitamente e não teve qualquer dúvida em orientar-se, apesar de ter de se abaixar várias vezes para passar ou contornar alguns obstáculos.
Uma coruja piava ali perto, certamente no alto de um dos pinheiros maiores. Estava a chegar à pequena clareira, precisava de virar à direita, em direcção ao mar e passar pelo pinheiro rachado.
Pouco depois parava arquejante, tinha vindo sempre a passo rápido e estava com calor. Desapertou o anorak e tirou a machadinha que lhe massacrava as costas. Nos filmes as coisas parecem sempre mais fáceis!
Virou o foco para um conjunto de pinheiros pequenos e fixou a luz naquele que tinha escolhido anteriormente. Não era muito alto, teria pouco mais de metro e meio, mas era muito direito e tinha ramagem a toda a volta.
Procurou a melhor posição, pousou a lanterna no chão com o feixe de luz a incidir no pinheiro, empunhou a machadinha e com meia dúzia de golpes cortou a árvore rente ao solo arenoso. A árvore tombou, baixou-se para apagar a luz e sentou-se no escuro a descansar.
A coruja que se tinha calado com o barulho das pancadas da machadinha votou a piar e ali perto, um restolhar intermitente, indiciava a presença de algum coelho noctívago.
Estendeu o saco de serapilheira sobre o ombro, levantou o pinheiro e assentou-o sobre a improvisada almofada.

Regressou a casa pelo mesmo caminho, redobrando os cuidados para não ser visto. Era pouco provável dar de caras com algum “morcego” que andasse a passear numa madrugada fria dos princípios de Dezembro.
Hoje seria banal, mas no início da década de setenta, ainda antes do 25 de Abril, um rapaz de catorze anos ser apanhado por uma patrulha da GNR a meio da noite, podia dar chatice, pelo menos os pais seriam chamados ao posto para averiguações.
Pousou o pinheiro dentro do tanque vazio, limpou as botas com a serapilheira e rodou o puxador da porta da cozinha com o máximo cuidado. O gato voltou a tentar escapar, sendo empurrado sem cerimónias para dentro, acabando por desaparecer debaixo da mesa das refeições.
Aguardou uns instantes até ouvir distintamente a cacofonia que os pais faziam a ressonar. Já no quarto, despiu-se e enfiou-se entre os lençóis com a sensação de ter cumprido aquilo que tinha prometido a si próprio, ir buscar um pinheiro para enfeitar com as bolas e as luzinhas. Adormeceu com um sorriso nos lábios, sonhando com mil aventuras mais.

Na manhã seguinte foi acordado pela mãe que lhe disse para se levantar e ajudá-la a preparar o pinheiro.
- Que pinheiro? Deixe-me dormir, hoje é sábado – Resmungou ainda ensonado.
- Levanta-te que já é tarde. A Lídia deve ter ido à lenha de manhã cedo e deixou ficar o pinheirinho dentro do tanque.
Foi ao sótão buscar a caixa com os enfeites de Natal e em breve estava montada uma linda árvore no canto da sala, junto à janela.
No dia seguinte ao almoço a mãe diz:
- Está outro pinheiro no tanque, mas o que fizemos ontem é muito mais bonito. Quem terá trazido este?

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Rio Âncora

Apenas um pequeno rio, com grande significado para mim. Habituei-me desde pequeno a passear nas suas margens, a nadar nas suas águas, a brincar nas suas levadas.
Hoje continuo fascinado com a vida deste rio, das trutas, dos melros, dos salgueiros, das lontras, das pessoas.
Continuo a lutar por um rio limpo de poluição, livre de agressões, livre para ser usufruído por todos, conscientemente, com admiração por esta beleza natural.
Neste blog serão publicados textos na área do conto, crónica e ensaio, uns serão apenas ficção, outros nem tanto, poderão ter uma base verídica com umas pinceladas de romance.
A acção de vários destes textos terá como pano de fundo a nossa região, o Vale do Âncora, a Serra d`Arga e o Oceano Atlantico, sempre tão presente nas nossas vidas.
O Rio Âncora é apenas um pequeno rio que atravessa todo este cenário.