quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Ao cair das vésperas



Naqueles tempos a vida era dura, tanto para os pescadores que por cá ficavam, como para os que se aventuravam na pesca do bacalhau. Partiam para a Terra Nova e Gronelândia no final do inverno, regressando a meados do Outono, dependia da sorte e da habilidade do capitão para encherem mais ou menos depressa os porões soturnos do navio.
O Manuel João, tal como outros jovens da sua idade, agarrou a oportunidade de largar a pesca artesanal onde se ganhava uma côdea, para “ir ao bacalhau”; além disso, quem fizesse sete temporadas de bacalhau, livrava à tropa e à guerra em África.
Para quem sai a primeira vez da sua aldeia natal, tudo é uma aventura e sempre será melhor que receber umas míseras moedas no final de cada maré. Se o mar o permitir, porque de Inverno os frágeis barcos de boca aberta cavalgam rua acima entre o casario, para se furtarem às arremetidas do mar que fustiga o portinho, escavado entre as rochas agrestes do Moureiro e o Forte da Lagarteira..
Acabara de fazer a sua terceira viagem no “Rio Lima”, um barco lento, mas seguro, construído em 1952 pelos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. As condições de vida a bordo, apesar de duras, não se comparavam aos velhos lugres à vela, onde o seu pai e os irmãos mais velhos tinham pescado. Aí sim, era uma vida de escravidão e de perigo constante a pescar nos frágeis dóris, a viverem amontoados em cubículos como animais, a trabalhar perto de vinte horas por dia, sob as inclemências climatéricas do Atlântico Norte.
O “Rio Lima” tinha atracado a meio da manhã na doca de Viana do Castelo. Já lá estava o “Senhor dos Mareantes” e o “S. Ruy”, atracados desde a semana anterior. A roupa sebosa estava ensacada há muito, tal como as bugigangas compradas em St. Johns para a mãe e para as irmãs. Para o pai trazia, como de costume, pacotes de tabaco com filtro. O último banho a bordo libertou-o das escamas, disfarçou o odor a vísceras e a suor, mas não apagou as marcas do cansaço, as mãos gretadas e gastas, a barba hirsuta e o cabelo ensalitrado.
Após da manobra de atracar, cumpridas as formalidades, desembarcou pelo instável portaló ao encontro do abraço sentido dos familiares que o aguardavam no cais. Mais que um reencontro, era o renascer de uma coesão familiar, uma celebração da vida que recomeçava. Era dia de festa, a viagem para casa foi de carro de praça, um luxo reservado para bodas, emergências e para estas ocasiões.
Uma acha de pinheiro no fogão espevitou o fogo inundando a cozinha de aroma resinoso, que o refogado estava pronto de véspera e a cabidela surgiria enquanto contava as peripécias da viagem. Só as vitórias, os lances carregados de bacalhau, as partidas que pregaram aos colegas, as horas intermináveis na escala e salga. Os sustos, as lágrimas, as saudades e o medo não se apregoam, iriam sombrear os rostos felizes da família, que o escutam com um fervor quase religioso.
Depois do almoço saiu com rumo certo, o barbeiro que o expurgou das pilosidades acumuladas em sete meses de mar, vestígios sombrios que importa esquecer até à próxima viagem. No Poipa reencontrou companheiros, leu o jornal, soube as últimas do futebol e das coscuvilhices locais, antes da tesoura e da navalha cumprirem a sua missão. Quando olhou ao espelho não se reconheceu, custava-lhe acreditar que aquele rosto lhe pertencia, tão pálido e exangue, as orelhas penduradas na cabeça estreita, onde o nariz ganhava destaque, tal como um promontório avança mar a dentro.
Aviado do barbeiro, seguiu em direcção ao portinho, lugar que o viu nascer e crescer, onde se juntavam os amigos, onde se trocavam olhares e ditos com as raparigas, onde os homens enchiam as tabernas, nas quais ele já tinha entrada por direito próprio. A tarde correu rápida, talvez a conversa retida durante meses a tenha apressado, a noite cobriu a terra e o mar, despediu-se de cada um para regressar ao lar aquecido pela chama mortiça do fogão, onde o caldo de hortaliça papujava lentamente.
Estavam à sua espera, pois era hábito daquela comunidade cear após as vésperas.
- Por onde andaste meu filho, que se faz tarde.
- Ó mãe, ainda ficou gente na Curraca e no Coxo da Faena.
- Mas o teu pai já está à espera para depois se deitar… Afinal onde é que andaste?
- Fui ao Poipa cortar o cabelo e a barba…
- Graças a Deus…
- … Depois fui para o portinho e estive à conversa com os amigos… o Daniel, o João, o Nel do Côto, o…
- Qual João?
- Da tia Ermelinda… e bebemos umas malgas de vinho novo.
- Vê lá, já não estás habituado e pode fazer-te mal.
- Não se apoquente, minha mãe. Pouco bebi e só demorei mais um bocadinho porque encontrei na esquina da pensão um companheiro de escola e fiquei à conversa. Depois ele seguiu para casa e eu pelo Sol Posto acima… Aqui me tem!
- Quem é esse companheiro de escola? O Camilo?
- Esse ainda não vi. Era o Berto da Nila…
A tigela caiu com fragor no chão, espalhando cacos e caldo em todas as direcções. A cor fugiu das faces rosadas da Lurdes, petrificada de espanto e horror.
- Que foi, mãe? Parece que viu um lobisomem… Conhece o Berto da Nila… onde está o espanto?
- Tens a certeza, meu filho? – Balbucia a Lurdes, procurando o rosário no bolso do avental.
- Tenho, mãe! Então eu não conheço o Berto?! Olhe que fizemos juntos a quarta classe…
- Mas isso não é possível… a Nossa Senhora nos acuda…
- Então qual é o problema? Ele até estava tão bem disposto…
- Virgem Santíssima – gemeu a Lurdes com as lágrimas nos olhos – a sua alma não está tranquila.
- Que está aí a dizer, minha mãe! A sua alma?!...
- Sim, filho… O teu amigo… o Berto da Nila, esteve muito doente, chegaram a levá-lo para o Hospital de Viana, mas mandaram-no de volta para casa… o Berto… coitadinho, foi enterrado ontem…

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Pescaria em Moledo

Andei vários meses a fazer planos para ir pescar, mas foram sucessivamente adiados com desculpas meio esfarrapadas que dava a mim próprio. Ora estava “muito mar”, ora estava frio, ora não tinha maré para apanhar isca, vocês sabem muito bem como é.  Também não tinha licença, o que é sempre uma boa desculpa!
Como tive duas semanas de férias em Julho pensei que desta vez é que era e tinha de ir desenferrujar o material. Tirei a licença no multibanco, revi o material e conclui que o melhor era refazer todas as baixadas, pois não me ofereciam o mínimo de segurança. Sempre fui adepto de substituir os materiais ao fim de algum tempo de uso, pois o contacto com a água salgada e as pedras enfraquecem tudo, as linhas, os anzóis, os distorceres, etc..
Então, um fim de tarde ventoso que me tinha corrido da praia para fora, enchi-me de paciência e fiz uma bela sessão de bricolage, como já não fazia há imenso tempo.
Na manhã seguinte fui à isca para Penedim (perto do Sanatório da Gelfa), dei cabo dos dedos e das unhas, mas consegui a “sintética” mais que suficiente para uma noite de pesca.
Não sei se sabem que “sintética” é aquilo que vocês conhecem como “linhas” ou teagem. Andava lá à isca o Mário, um amigo que é padeiro e que também estava de férias.
Conversa daqui, conversa dali enquanto apanhávamos isca, disse-me que ia pescar à noite com o cunhado ali no praial de Âncora, enquanto eu lhe disse que iria para Moledo, mais por causa da maré, que faria o baixa-mar lá perto da meia-noite. Eu gosto de pescar em Moledo, nas últimas horas do baixa-mar. Manias!
Depois do jantar, meti os “tarecos” no carro e abalei para Moledo, estacionei junto ao ultimo passadiço, junto ao Camarido e comecei a montar a cana, uma Hiro Boomerang de quatro metros e meio, com carreto Shimano Ultegra, carregado com multifilamento Fireline 0,22. Os anzóis continuam a ser Aberdeen muito comprido e finos, ideais para a sintética. Pelo menos é essa a minha opinião!
Enquanto montava a tralha, reparo que há movimento dentro do pinhal e reconheço a já habitual raposa que fez do contentor do lixo próximo um ponto de paragem diário. Já é a terceira ou quarta vez que vejo aquele bicho por ali. Não se impressionou com a minha presença, limitou-se a esperar que eu me “pirasse” para avançar a todo o gaz para o contentor.
Quando cheguei à praia estava o sol quase a esconder-se no horizonte, não havia vivalma, o que me admirou e me levou a pensar, “para não estar ninguém ou não tem dado peixe ou está cheio de lixo”.
Lá avancei até ao Bico da Ruiva, aquele pequeno bico mesmo em frente à Ínsua; isquei os anzóis e lancei para uma coroa de areia que já se adivinhava. Pouco depois verifiquei que a água corria para sul, recolhi e encontrei algum lixo nos anzóis. Voltei a lançar e pouco depois voltei a recolher com uma boa carrada de lixo. “Que grande merda, primeiro dia que venho pescar e está tudo cheio de lixo; por isso não está cá ninguém”, pensava eu, já desanimado.
Entretanto escurecera e decidi ir para sul até ao “Moinho” e lá tentar a sorte. Como a água estava faltar devido ao baixa-mar, viam-se claramente os areios e decidi pescar sobre um deles. Lá me mantive durante mais de uma hora sem qualquer resultado. De repente, surpresa… senti um toque, outro toque, puxo um pouco a cana para mim e sinto o peixe preso. Recolho nas calmas, é pequeno, pelo menos parece.
Era mesmo pequeno e vinha embuchado. Para lhe retirar o anzol quase lhe fiz uma autópsia. Pouco depois outro toque, a mesma operação e uma sargueta pequena, também embuchada. A partir daí tirei mais duas sarguetas e outro robalinho, tão pequenos que os devolvi ao mar, até porque não estavam embuchados e podiam sobreviver.
Notei então que um pouco mais a sul havia um rego entre duas coroas de areia, onde o mar não virava. “É ali mesmo que vou mandar dois lances, se der a mesma missanga vou já embora”.
Lancei para o tal rego, pousei a cana no suporte e subi um pouco a praia para ver melhor o trabalhar do mar.
Quando desci pareceu-me que a cana estava a dobrar, mas todos sabemos que muitas vezes é o mar ou apenas ilusão óptica; é que de noite todos os gatos são pardos.
Mas este não era pardo, a embraiagem já cantava e mal pus a mão na cana percebi logo que estava do outro lado um figurão de peso. O peixe até nem deu muito trabalho a vir para terra, apenas tive algum cuidado na rebentação e facilmente ficou em seco.
Mais que depressa, com o coração aos saltos, meti-lhe os dedos na guelra, levantei-o e calculei uns dois quilos de peso.
Toca a iscar outra vez, tudo me fugia das mãos e comecei a pensar que antigamente não me davam estes tremeliques. Se calhar é da idade!
Acabei por lançar, mas desta vez fiquei com a cana na mão na expectativa, que se desfez em menos de um minuto quando levei uma autêntica paulada na cana. De repente sinto a linha a sair aos sacões, com uma força enorme. Deito a mão á embraiagem para a aliviar um pouco mais por precaução e deixo de sentir o peixe. Recolho rapidamente, não vá o gajo ter deitado a correr para terra, habilidade que fazem muitas vezes, mas o peixe tinha-se desprendido.
Há muito tempo que não levava uns “coices” daqueles, certamente dados por um peixe realmente grande. Voltei a laçar para o mesmo sítio, mas durante o resto do tempo que lá permaneci não senti mais nenhum toque.
Vim para casa com um misto de sensações contraditórias; trazia um amargo de boca por ter perdido um peixe realmente espectacular, mas no saco “cantava” um de dois quilos e meio, que era quanto pesava o robalo que tinha apanhado.

Neste momento que estou a escrever penso, a frio, que era bom que isto me acontecesse de todas as vezes que vou pescar. Não era? 

Agosto de 2007