domingo, 10 de janeiro de 2010

Nos trilhos do contrabando VI

Peguei na máquina fotográfica e nos binóculos, meti-os na mochila e com ela às costas atravessei a Branda em direcção ao regato. O Snoppy trotava à minha frente, nariz rente ao chão com mil odores por descobrir.

A manhã estava linda, não soprava uma aragem, as folhas das árvores brilhavam em mil reflexos, nas alturas alguns milhafres vigiavam.

Parei junto à fita colorida que os Guardas tinham estendido no dia anterior, vários técnicos trabalhavam no local. O Inspector Peres da Judiciária viu-me e fez sinal para me aproximar dele. Prendi o cachorro com a trela, baixei-me, ultrapassei a fita e pude observar que estavam a escavar utilizando umas ferramentas minúsculas, como as que são usadas na arqueologia.

- Então já descobriram alguma coisa? – Perguntei eu.

- Para já descobrimos que há dois esqueletos, um humano e outro que pertence a um cavalo ou mula.

- Um cavalo?

- Sim, precisamente em cima do cadáver humano.

- Quer dizer que essa pessoa morreu por o cavalo ter caído em cima dele?

- Bem, isso não sei, ainda é muito cedo para se tirarem conclusões. Só depois da autópsia.

- E os cadáveres estão aí há muito tempo?

- Seguramente há muitos anos. Pelo menos vinte ou trinta anos, mas durante a autópsia somos capazes de estabelecer uma data mais aproximada.

- Nós podemos ir embora?

- Claro, não precisamos de vocês para já. No decurso do inquérito é natural que tenham de prestar declarações, mas serão convocados nessa altura.

Os meses foram passando, já nem me lembrava frequentemente do episódio, até que recebemos duas convocatórias do Tribunal de Melgaço para prestarmos declarações na segunda-feira seguinte.

Mais uma vez a enfadonha tarefa de contar como as coisas aconteceram, tudo dito aos soluços, vagarosamente, para dar tempo à funcionária escrever no computador. Finalmente assinamos as declarações e quando saímos, meio-dia estava passado.

Cruzamo-nos no corredor com o inspector Peres da Judiciária, o mesmo que tinha iniciado o inquérito e que conhecêramos na Branda. Após nos cumprimentar, disse-nos que nada de especial tinham descoberto a respeito da identidade e a causa da morte terá sido eventualmente um traumatismo craniano.

Apenas podia confirmar sem margem para dúvidas que eram dois esqueletos, de um homem e de um cavalo ou mula. Percebi pelo seu encolher de ombros que também não deveriam ter perdido muito tempo com as investigações, a polícia tem sempre novos casos, muito mais mediáticos e os meios para a investigação são cada vez mais escassos.

Quando nos dirigíamos para o parque de estacionamento onde tínhamos deixado o carro um homem que já tínhamos visto no átrio do tribunal quando entráramos, perguntou-me:

- Foram os senhores que encontraram o cadáver na Aveleira?

- Sim, fomos. Porquê?

O homem hesitou, percebia-se que estava acanhado e não sabia bem onde pousar os olhos. Acabou por nos dizer que era por causa da avó, que desde que soubera que tinham encontrado um cadáver na Aveleira se tinha mostrado muito interessada e não lhe dera mais descanso, pedindo-lhe para ir procurar as pessoas que tinham feito a descoberta.

Enquanto ele falava aproveitei para apreciar o nosso interlocutor. Teria uns quarenta anos, não mais, usava uma roupa rústica, mas asseada. As mãos, com dedos grossos e musculosos, denunciavam o trabalho no campo. Finalmente pediu-nos para visitarmos a velhota, seria um grande favor que lhe faríamos. Ainda argumentamos que não tínhamos comido, mas ele logo atalhou, dizendo que tinha muito gosto em que almoçássemos na sua casa.

- Onde é que mora o senhor...? – Perguntou a Paula.

- Domingos Esteves, minha senhora. Moramos à entrada da Gave. Sabem onde é?

- Mais ou menos, fica perto da Aveleira. Já lá passamos uma ou duas vezes. Vamos lá ver a sua avó, mas não podemos demorar...

Seguimos a carrinha do Esteves e no início da Freguesia de Gave viramos à direita por um caminho calcetado, ladeado de vivendas tipicamente construídas por emigrantes. Aquele estilo espalhafatoso, com marcas e modelos estranhos à região, os telhados negros, as persianas douradas, os barbecues e os repuxos no jardim, chancelas indeléveis de culturas transportadas e mal assimiladas.

A vivenda de dois pisos frente à qual paramos era mais sóbria, folha de pedra à vista, balaustradas em madeira, uma casa de campo com tractor e alfaias à vista, vacaria ao fundo do terreno, galinhas e perus à solta, esgravatando aqui e ali.

- Tem de falar um bocado alto que a avó ouve mal, de resto está muito bem, exceptuando as artroses.

- Quantos anos têm?

- Quase noventa, mas não parece. Entrem, entrem…

(continua)