sábado, 2 de fevereiro de 2008

A arribada do "Senhor na Cruz" 1ª parte

A noite estava abafada e a lua já se tinha escondido há muito. No portinho as sombras moviam-se silenciosamente, aqui e ali a ponta vermelha de um cigarro brilhava no escuro.
Uma masseira deslizava pesadamente sobre os rolos, empurrada à força dos braços da companha em direcção à água. Os pescadores de calças arregaçadas chapinhavam à borda da água, quase sem ondulação. Estava uma calmaria podre que não os deixaria navegar à vela.
Lentamente, como num ritual, as masseiras foram metidas à água e flutuavam agora na pequena enseada de abrigo. No pequeno mastro do “Senhor na Cruz” tremelicava a luz da candeia, que pouco ou nada alumiava.
- Então para onde vai hoje, tio Tone?
- Vou dar um lance a Afife, como ontem. Não me correu mal a vida, não senhor. E tu Manel, também vais para o sul?
- Não! Eu vou rumar a oeste, aqui em frente. Tenho cá uma fé… não sei explicar.
- Vai com Deus Manel, vai com Deus. Vamos lá armar os remos que se faz tarde e ainda temos muito que andar.
A masseira do tio Tone avançou com cautela por entre os outros barcos em direcção ao largo. Ao passar o Sabugo já o segundo par de remos golpeava a água em perfeita sincronia. Era admirável a forma como, em plena escuridão, os quatro remos se moviam em uníssono, fazendo deslizar a velha masseira, negra de alcatrão.

Sentado no banco da ré, uma mão sobre a cana do leme, outra apoiada sobre a borda, uma beata entre os dedos rudes, o Tone da Vista Alegre, patrão da embarcação sardinheira, mantinha-se atento a tudo o que o rodeava. Contrariamente ao que esperava, ao largo o calor não diminuira e o tempo continuava abafado.
- Vamos lá a ver se não cai uma trovoada – resmunga entre dentes, mas suficientemente alto para ser ouvido pelos seus homens.
- Deus nos livre – diz o seu irmão Rodrigo que remava no banco da proa, a bombordo.
- O céu continua limpo, pode ser que se aguente. Se ao menos corresse uma aragem para içar a vela…
Pelas bandas da Gelfa, puxou um pouco o leme e a agulha de marear, pousada ao seu lado sobre o banco, passou a apontar para sudoeste. Já não faltava muito e a espaços pressentiam-se pequenos cardumes de peixe, certamente sardinha, que rebolhavam à tona.

Cada vez se afastavam mais da costa e o Tone tinha-se levantado para tentar distinguir na penumbra da costa as marcas do pesqueiro. As luzes da ponte de Afife tinham de alinhar pela casa branca do padeiro, que se distinguia perfeitamente pelo fumo que saia toda a noite pela chaminé.
- Vamos lá rapaziada! Toca de preparar a rede para largar. Areosa, tu continua a remar. Rodrigo não largues já, só quando eu disser.
De súbito, uma aragem de vento quente acaricia-lhes o rosto, seguida de uma rajada forte e ainda mais quente.
- Mas que raio… Jesus, que é aquilo? Parece uma parede!
- Armai outra vez os remos e tapai-me essa rede – grita o tio Tone sobre o barulho do vento que soprava cada vez mais forte.
As rajadas já não eram tão quentes e encapelavam o mar que minutos antes estava manso e liso como a palma da mão. Cachões de espuma esvoaçavam e pequenas ondas embatiam com violência crescente na masseira.
- Aproai ao vento, aproai ao vento, depressa rapazes.
E uma vaga, felizmente pequena, entrou de través na masseira encharcando os dois homens da proa, o Rodrigo e o Daniel, o mais novo da companha, ainda um rapazinho, que a lide do mar fizera teso.
Apesar dos seus dezasseis anos feitos pelo Natal, era o melhor remador daquela embarcação, o “Senhor na Cruz” e já tinha sido admitido para tripulante do salva vidas, por vontade do mestre Manuel Catalão, que via naquele rapaz calmo e pouco dado a folias, o filho que ele nunca tivera. Quis a sina que tivessem sido quatro raparigas que a Rosinda lhe dera, antes de ter apanhado aquela fraqueza nos pulmões à qual não tinha resistido.

Sem comentários: