sábado, 10 de outubro de 2009

O gajo não tem marcha-atrás!

Depois de sair da Empresa de Lacticínios Âncora e iniciar um trabalho por conta própria, passei a gerir o tempo com mais alguma liberdade e dediquei-me mais à pesca do que anteriormente, quando tinha horários rígidos a cumprir.
Ao final da tarde, se o mar estava de feição, preparava os apetrechos e arrancava para uma das zonas de pesca que por aqui abundam. Não é por falta de pesqueiros que não se pesca! Ou na areia, nas praias de Moledo, Âncora e Afife ou nas rochas, onde existem uma infinidade de pesqueiros.
Mas ao fim da tarde e à noite, pesca-se na areia, tenta-se a sorte de apanhar algum robalo mais atrevido, que vem até à rebentação mariscar. Outras espécies que também se podem pescar nestas circunstâncias são os sargos e choupas, solhas, linguados e rodovalhos.
De verão, com o mar chão, podem aparecer as fanecas, geralmente miúdas. Eu digo que se pode pescar estas espécies, mas não pensem que estão ali, ao dobrar da esquina, à nossa espera. É cada vez mais difícil, por nítida escassez destas espécies, que têm sido dizimadas na nossa costa, desde que começaram a permitir a pesca de arrasto.
Se o mar estava picado, a solução era Moledo, que é o local mais abrigado, devido à ilha da Ínsua. Aí chegados teríamos de escolher onde pescar, no Portinho do Senhor, em Fornelos, na pedra do Cavaleiro, no Moinho ou na Ruiva.
Se mesmo assim ainda o mar fosse muito, o recurso seria avançar para norte e pescar entre o bico da Ruiva, mesmo no enfiamento da Ínsua e a Ponta Grossa na foz do Rio Minho. Confesso que durante muito tempo fui “cliente” do Moinho, mas com a influência de alguns amigos e com outras tantas pescarias de categoria, passei a ser mais adepto da Ruiva, só é pena que fique tão longe.
De Inverno, um gajo com botas altas, casaco contra o frio, e às vezes a chuva, mais a cana, o zote e o ferro de espetar, chega lá a suar. Então com a maré em cima, indo pela areia seca, nem vos conto…
Se o mar estiver mais tranquilo, pode-se pescar no praial de Âncora, entre o molhe do Portinho e as Primeiras Pedras, perto do Forte do Cão. Antigamente, antes de construírem os novos molhes do Portinho, havia um pesqueiro fantástico entre o referido molhe sul e a foz do rio Âncora, chamado Moreiro, que fica mesmo em frente à minha casa. Hoje esse pesqueiro não é tão bom, nem por sombras, pois está assoreado.
Mais ou menos a meio do praial, há um conjunto de pedras, quase sempre submersas, só se descobre uma delas, em marés muito grandes, chamada Pedra do Tesal, um bom pesqueiro, dependendo, ainda assim, da forma como estão os “secos”, as coroas de areia, que se movimentam continuamente.
Quando o mar está mesmo calmo, é hora de ir para Afife, que tem um praial com muitos secos e muitas correntes. Se o mar puxa um bocadinho não há quem aguente as linhas na água. No entanto, acho que em Afife, o peixe é na generalidade maior que nos outros locais, nomeadamente, em Moledo onde é raro tirar-se peixe grande em quantidade que se veja.
O ano passado por terem apanhado meia dúzia de peixes grandes, até fizeram uma reportagem no Jornal de Notícias. Em Afife isso acontece com mais frequência, tem o problema que é mais difícil lá pescar. A mim já me aconteceu de fazer dois ou três lançamentos, concluir que não vale a pena pois a água corre muito, desmontar tudo e vir embora.
Esta praia tem duas entradas, a norte pelo Carvalho e a sul pela Mariana, local muito conhecido da malta do surf; eu utilizo ambas, mas prefiro ir pelo Carvalho pois é um local mais frequentado, tem o restaurante e fico mais tranquilo, no que respeita ao carro.

Eu ia contar-vos uma pescaria, mas entretanto perdi-me e estou para aqui a divagar sobre pesqueiros, como se vocês não os conhecessem.
Dizia eu, que numa determinada fase da minha vida, tinha alguma disponibilidade acrescida para me dedicar à pesca. Normalmente preparava as coisas e saía no final da tarde para fazer o pôr-do-sol e uma ou duas horas depois de anoitecer.
Quem não achava muita piada a esta actividade era a minha mulher, que embirrava com o facto de eu sair, mais ou menos quando ela chegava do trabalho. Não gostava, mas comia o peixe!
Estávamos no Outono, o mês de Novembro tinha começado chuvoso e o mar era uma ressaca constante. Os barcos não saíam para o mar há mais de um mês, não havia forma de amainar o sudoeste. A chuva e o vento já tinham feito estragos, todos os dias se via na televisão, ora inundava aqui, ora caía qualquer coisa ali.
De súbito, o vento vira a noroeste e começa a limpar, o mar cai bastante, o sol brilha a espaços e divide o céu com as nuvens, ainda ameaçadoras.
Quando cheguei a casa a meio da tarde, olhei para o praial e vi dois ou três a pescar na Pedra do Tesal. Pensei cá para mim, “a água está escura e parece que não corre, não está nada mal”. À distância, não reconheci quem lá pescava, mas achei que valia a pena investigar.
Pousei a pasta, calcei umas sapatilhas e percorri a avenida até ao posto de turismo, atravessei a ponte e desci à areia, em direcção ao mar. Fui nas calmas por ali fora e reconheci o Camilo da Bezunza, o Rafael e o Arturinho mais a sul. Ainda mais a sul estava um tipo da Laje que conheço de vista, mas não sei o nome.
O Camilo já tinha uns robaliços, cachiços como nós lhes chamamos, o Rafael também tinha uns cachiços e umas chincaronas que são choupas ou sargos pequenos e dirigi-me para o Arturinho que estava mais distanciado. Quando cheguei à beira dele, estava sentado em cima do zote que era um balde de vinte litros de tinta, daqueles redondos em plástico. Eu também tenho um desses, mas é raro usá-lo.
- Então tio Artur, que tal?
- Já tenho um par deles, mas são pequenos.
Olhou à volta como a certificar-se que estávamos sós, levantou o traseiro do balde e tirou a tampa.
Lá dentro, misturados com os tarecos da pesca estavam uma meia dúzia de robalotes jeitosos, umas chincaronas e um sargo que seguramente tinha perto de um quilo.
- Pôrra, ainda diz você que são pequenos!
O Arturinho arreganhou um sorriso e pôr à mostra a fila dos dentes de ouro, que brilharam ao sol daquele final de tarde.
- Mais dois lançamentos e vou-me embora, antes que caia a noite – dizia o Arturinho.
Eu é que não esperei mais e pus-me a andar dali para fora, com os olhos em bico.
“Amanhã, se estiver como hoje, também venho pescar, mas de manhã tenho que ir à isca”.
Assim foi, no dia seguinte fui à isca da “barrenha”, porque a maré descia pouco para apanhar sintética, envolvi-a em serrim, coloquei-a no frigorífico e de seguida tive que ouvir a “patroa” dizer:
- Esta porcaria cheira mal. Vai ficar aqui muito tempo?
- Não, logo já sai e o que cheira mal é essa hortaliça cozida, que já aí está há dois dias.
Meti a tralha no carro e a meio da tarde decidi ir bastante mais para sul que o Arturinho no dia anterior. Por isso levei o carro até ao Sanatório da Gelfa e vim a pé pelo praial. A minha ideia era ficar mais ou menos a quatrocentos ou quinhentos metros mais a sul, onde tinha visto o mar a virar muito certinho, pelo menos a água não deveria correr.
Ao passar pelas Primeiras Pedras vi logo que estava um gajo no sítio onde eu tencionava ficar. “Não faz mal, fico ao lado” e continuei em direcção ao pesqueiro.
Escolhi o sítio, pousei a cana, o zote e o ferro de espetar, apurei a vista e reconheci o Dinis do “Côto”, que às vezes pescava comigo, normalmente em Moledo. Fui ter com ele e perguntei-lhe que tal estava a correr a pesca.
- Oh pá, tenho duas choupas jeitosas, mas estou com uma isca fraca, estou a pescar com isca mansa.
Isca mansa é minhoca do rio, há muita gente que a usa apenas em ultimo recurso e acha-a uma isca fraca. Eu tenho um entendimento diferente, pois já fiz boas pescarias com esta isca, tem o defeito de ser frágil e problemática se lançarmos para muito longe, pois pode desfazer-se, se não for espetada nos anzóis, com o máximo cuidado.
Mostrou-me duas belas choupas o que me animou bastante, mas logo de seguida disse algo que me refreou o entusiasmo.
- Estou aqui desde o fim do almoço, apanhei-as logo nos primeiros lançamentos e mais nada. Daqui a pouco, vou-me embora.
Preparei a cana, afinei o meu Shimano Ultegra 10.000, recentemente adquirido, linha Fire Line, chumbada de 150 gramas de cruzeta e dois anzóis Gamakatsu Aberdeen 1/0.
Lançamento feito, liguei o meu rádio, pus os auscultadores e sintonizei a RFM. Nessa época, só admitia ouvir esta estação. Hoje partilho-a com a Comercial e a Antena 3, são gostos.
O Dinis ainda veio ter comigo uma vez, só para me dizer que se ia embora e em breve só me restava olhar para o mar ou adivinhar o que estariam a pescar os tipos que estavam mais a norte, que deviam ser os mesmos do dia anterior.
O sol estava a pôr-se no horizonte, mesmo à minha frente e não havia maneira de sentir um toque.”Está na hora” pensava eu, num exercício de auto convencimento, que parecia não resultar.
Já estava completamente escuro quando senti um toque na cana, levantei-me ansioso, na expectativa. Novo toque, dou a enferrada, sinto o peixe. Começo a alar a linha e ponho em seco uma choupa pequena, não teria sequer meio quilo.
Isco e lanço de novo tentando lembrar-me se, no lançamento anterior, tinha puxado muito para fora ou não. Não demorou muito e sinto um puxão forte e continuado, que dispensou qualquer acção de enferrar.
Foi só afinar a embraiagem e pôr o gajo a marchar para terra. Estava com medo da rebentação porque apesar de não estar muito forte, era mais que suficiente para soltar um peixe que venha mal engatado e logo aquele que era grande. Quando o senti arrojado em seco, fui ao encontro dele sempre com a cana na mão e a colher a linha. Vi uma mancha branca na areia molhada, acendi o foco que tinha na testa e admirei o belo robalo que tinha apanhado.
“Depressa, depressa, ali há mais”, meti-lhe os dedos nas guelras e recuei até onde tinha o zote com a isca. Desprendi o peixe do anzol, reparei que vinha bem ferrado, não houvera perigo de fugir. Isquei e lancei, com o coração ainda aos pulos. É curioso como um pescador pode apanhar milhares de peixes, mas nunca deixa de ficar excitado sempre que tira um da água.
Senti outro, mas de forma diferente, “que raio, vai a fugir para o lado… hum, isto é choupa”, de facto sentia-se o toque violento e seguido dos peixes da família da choupa, do sargo e da dourada. Era uma bela choupa maior que a anterior, que tinha engolido o enorme anzol que eu usava.
Demorei tempo precioso a desengata-la, roguei-lhe um par de pragas e quando lancei novamente, nem tive tempo de esticar a linha, pois apercebi-me que já tinha peixe, outro robalo, que se revelou um pouco maior que o primeiro.
Eu nem queria acreditar, que era o meu dia ou a minha hora. Novo lançamento e pouco depois uma “stikada” a sério. O gajo era uma besta e não tinha maneiras. Não tive outro remédio senão afrouxar a embraiagem e deixá-lo correr à vontade, até que o consegui suster. Devagarinho comecei a trabalhá-lo para o trazer para terra, o que aconteceu sem grande alarido. Difícil foi quando lhe começou a faltar água e o bicho ficou outra vez bravo. Por momentos um tipo pensa em tudo e mais alguma coisa, será que está bem preso, que peso terá, ainda estará longe e se rebenta a linha ou parte o anzol…
“O gajo não tem marcha-atrás, foda-se, há-de vir para terra!” E veio, contra vontade, mas veio. Era um peixe!!!
Peguei nele, fui pô-lo na companhia dos outros que estavam estendidos numa cavidade que tinha feito na areia seca.
Voltei a lançar e aguardei, novo toque, nova aventura. Mas aguardei em vão; um lançamento, outro lançamento, mais outro e nada, o peixe tinha desandado.
Excitado como estava não tive paciência para mais, meti os peixes no saco de rede, arrumei as tralhas e meti pés ao caminho. Ao fim de duzentos ou trezentos metros já bufava e mudei o saco do peixe para a outra mão. Pouco depois já levava o saco a rasto pela areia e foi assim, andando e descansando para retomar o fôlego, que cheguei ao carro. Fui directo à casa dos meus sogros e, quando entrei de peito feito, diz-me a minha mulher:
- Grandes peixes, quem é que os apanhou?
Apeteceu-me logo mandá-la para aquela banda…
Não tiveram outro remédio senão convencer-se que tinham sido pescados por mim. Eu até os compreendo, muitas vezes chegava a casa sem peixe, algumas vezes com uns “charabanecos” pequenos e uma vez por festa, com um peixe que se podia apreciar. De repente, apareço com um saco deles, até desconfiaram. É como diz o ditado, “ quando a esmola é grande, até o pobre desconfia”.
A choupa maior enviei-a para a minha mãe e guardei o restante peixe no congelador, a pensar que no dia seguinte voltava lá ao mesmo sítio.
Durante o dia encontrei-me casualmente com o Dinis, contei-lhe o sucedido e combinamos manter a boca calada e aparecermos ao pôr-do-sol, no local do crime. Nesse dia voltei a tirar um robalo com cerca de dois quilos e o Dinis apanhou um ligeiramente mais pequeno. No terceiro dia, eu não apanhei nada e ele apanhou o irmão gémeo do dia anterior. No dia seguinte virou o tempo a sul, o mar metia medo, chovia e ventava forte. A pesca estava feita… e bem feita!