domingo, 22 de junho de 2014

Água para a agulheta número dois

O dia nascera soalheiro, como seria de esperar de um dia primaveril em que os melros e pardais se afadigam na construção dos ninhos e as plantas vicejam pelas terras férteis e húmidas dos vales e das encostas.
Estávamos no dia 26 de Abril de 1957, em Vila Praia de Âncora, pacata vila e porta de entrada do Vale do Âncora, herdeira legítima da velha Gontinhães. Era sexta-feira e em nada se distinguia dos demais dias da semana. No Portinho, as masseiras varavam na areia suavemente empurradas pelo impulso dos remos. Em terra, as mulheres esperavam o peixe para logo abalarem terra dentro, na venda que irá render uns magros tostões a repartir pela companha
Na serração, à força do vapor da caldeira, máquinas de dentes traiçoeiros, transformavam troncos em tábuas e estas em caixas, depois de aplicados os grampos metálicos. Ali ao lado, na estação, os comboios chegavam e partiam entre silvos e baforadas de fumo e vapor; as agulhas viravam ao ritmo da manobra, passageiros e mercadorias entabulavam um bailado, ora para cá, ora para lá. Da Sandia e da Cruz Velha regressavam os rangentes carros de bois, elementos estruturantes na economia de qualquer casa de lavoura, conduzidos à soga por moçoilas de saia riscada e lenço garrido à cabeça.
Da fábrica do leite, assim chamada pelo povo à fábrica de lacticínios, chegava o carro com as caixas de manteiga e queijo, uma rotina bissemanal para despachar as encomendas dos clientes para o Porto e Lisboa. Dizia-se que os cavalos, conhecedores dos hábitos do cocheiro, dispensavam ordens para parar à porta de certas tascas.
De repente o sossego é interrompido pelo silvo longo e arrepiante de uma sirene.
- É dos bombeiros – gritam um número indefinido de gargantas.
As pessoas olham umas para as outras numa interrogação muda. Depois põe os olhos no ar à procura de um vestígio de fumo. As narinas abrem-se na busca de um odor a queimado ali perto.
- Não, não é na serração, Graças a Deus!
- Será na do Pereira? – Alguém se lembrou da outra serração existente no extremo oposto da Vila.
Espicaçados pela curiosidade muitos deixaram os seus afazeres e arrastando os tamancos partiam em direcção ao quartel dos Bombeiros. Queriam assistir à azáfama que precedia a saída dos carros da “bomba”. Por eles passavam como lebres os bombeiros em corrida desenfreada, era sempre uma vergonha ser dos últimos a perfilar aguardando ordens do chefe.
O Silvino Perruco e o Zé do Toneca trabalhavam na serração e mal ouviram a sirene, largaram a correr em direcção à entrada das instalações. Encostadas à parede do escritório estavam as bicicletas dos diversos trabalhadores.
- Agarra essa do Zé Nita que é mais pequena! – Grita o Zé do Toneca para o companheiro, lembrando-se que este era de baixa estatura.
Foram os primeiros a chegar ao quartel. Os outros bombeiros não tardariam; o Armando Ferreira, o Velhinho, o Balau, o Camilo… Agora chega o Zèzinho, aquele chefe de passo tranquilo, poupado nas palavras, com respostas concisas às interrogações dos seus homens.
- Barata, Armando, Silvino, Balau, Toneca, Camilo e… Joaquim! Avancem para o pronto-socorro.
O dolman, o cinturão e o capacete, transformaram aqueles vulgares e pachorrentos cidadãos em seres determinados a combater as chamas, para lá dos medos e das hesitações quando se tratava de salvar vidas.
O pronto-socorro Bedford tinha sido inaugurado em 1954 e era o orgulho da Corporação. Todos os bombeiros ansiavam integrar a equipa que arrancava nesta viatura para os incêndios.
O motor de seis cilindros a gasolina ronronava baixinho dentro da garagem. O Barata engatou a primeira e aliviou a embraiagem. O carro deu salto em frente levando em debandada a multidão que se acotovelava na frente ao quartel em busca de informações. Mal os homens se instalaram no carro, outro solavanco marcou o arranque a toda a brida, sirene ao vento a anunciar a urgência e a necessidade do caminho livre até Caminha, onde ardia o Convento de Santo António.
A meia encosta do Monte de Santo Antão, ao lado do cemitério de Caminha, este convento albergava uma vasta comunidade de freiras, as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras, que já por lá estavam desde 1898. Pelo meio, escorraçadas pelo anticlericalismo da primeira República, aconteceu uma saída forçada para a vila galega de Tuy e o regresso a Caminha ainda durante os anos vinte do século passado.
O Barata era um condutor destemido e atravessou a Rua dos Pescadores em Caminha, a uma velocidade alucinante, roçando as paredes de tão estreita artéria, desviando-se de carros e carroças como por magia. Os seus companheiros sabiam bem o que ele dizia nestes momentos de emergência “Agarrem-se que isto é para andar”; e todos se seguravam o melhor que podiam, entre os equipamentos de combate a incêndio que enchiam a Bedford.
A meio da Corredoura ultrapassaram um dos carros da Corporação de Caminha e num instante já saltavam em terra para iniciar o combate, que as labaredas já lambiam a fachada do convento. Os lances de escada estavam montados, a bomba a funcionar e o Balau carregava a mangueira escada acima, o Silvino como primeira ajuda, alguns degraus mais abaixo.
- Água p´ra agulheta número dois! – pede o Balau com a voz fanhosa.
- Eiii… vocês, saiam daí! Tem de ir lá para trás – ordena um indivíduo de pêra que todos reconheceram, era o chefe Lino dos Voluntários de Caminha e que acabara de saltar do carro recem chegado.
- Mas aqui é que precisamos de atacar – contrapõe o Armando Ferreira, o mais graduado dos Bombeiros Ancorenses.
- Quem está ao comando sou eu… e aqui fica por nossa conta. Vocês vão defender a capela.
- Vocês não vão conseguir aguentar isto – ainda retorquiu o Armando Ferreira, homem experiente e conhecedor das manhas e da violência que as chamas podem ter se forem bem alimentadas.
Contrariados, porém disciplinados, recolheram as mangueiras, desmontaram as escadas e iniciaram o combate no ponto que lhes foi atribuído.
Ao longo da tarde foram chegando outros bombeiros, de Cerveira, Viana e até os municipais do Porto foram convocados. A população não se fez rogada e uma verdadeira cadeia humana permitiu salvar muitos pertences do convento.
Junto à capela, depois de terem posto em funcionamento a moto-bomba, a água sugada do tanque era despejada pelas agulhetas de forma a conter as chamas que teimavam em aproximar-se da capela.
- Água p’ra agulheta número dois – repetiu o Balau.
- … E p’ra número um, também – respondeu-lhe o Zé do Toneca, enquanto Barata manobrava as alavancas.
Por todo o lado os longos hábitos das freiras esvoaçavam, como um exército de formigas, ora carregando haveres, ora matando a fome e a sede aos combatentes, sob o olhar diligente da madre que tinha uma serrada pronúncia italiana.
Durou toda a noite este combate desigual, onde homens cansados viam as chamas inexoravelmente apoderar-se das memórias de uma comunidade. Pela alvorada, quando foi dado por dominado, pouco mais restava do convento que umas paredes enegrecidas e montes de entulho fumegante… além da capela que escapara incólume.
Como prova de confiança e porque dispunham da melhor moto-bomba, o comandante dos Municipais do Porto, que assumira o comando das operações, encarregou os Bombeiros Ancorenses de coordenar o rescaldo, alimentando as mangueiras de outras Corporações.
Regressaram ao quartel a meio da tarde, vinte e quatro horas após terem sido chamados pelo toque da sirene, silenciosos, exaustos do esforço, desanimados por não terem sido capazes de derrotar o fogo, mas cientes do dever cumprido, briosos de terem contribuído para que a Capela do Convento não fosse consumida pelas chamas e para o bom nome dos Bombeiros Voluntários de Vila Praia de Âncora.



segunda-feira, 7 de abril de 2014

A fome dos invernos longos


Aurora desperta a razão
Nas águas agitadas do mar gélido
Como gigante impondo a vontade
Ao pobre pescador aperta o coração
Por a maresia não fazer sentido
E amarrá-los em terra à mendicidade

Terras a dentro vão em procissão
Casa a casa pedem pão
Arrastam os tamancos pelo caminho
As lajes testemunham a submissão
Homens famintos com o grilhão
De filhos que esperam bucha e carinho

A brisa virou a noroeste
O mar engole a espuma e as mágoas
Retira-se para onde impera
A refrega já não é agreste
Redes, anzóis, velas e masseiras
Vamos ao mar que arribou a primavera

Para trás fica a triste lembrança
A fome e a miséria aplacadas
Com côdeas e caldos magros
O Senhor dos Aflitos lhes dá esperança
A agulha os guiará pelas águas diáfanas
Peixe será ouro nos seus desejos