domingo, 27 de dezembro de 2009

Nos trilhos do contrabando V

Estávamos a almoçar na varanda quando vimos o Nissan Patrol verde serpentear o caminho de acesso à Branda. Alguns minutos depois, convidamos os dois agentes a entrar em casa e voltamos a repetir o acontecimento. Já começava a estar farto de tantas vezes contar a mesma coisa. Mais valia ter usado o pequeno gravador que tinha no carro, assim bastava-me carregar no botão e a estória repetia-se as vezes que fossem precisas.
Pediram-nos para lhes mostrar o achado e quando saíamos de casa, surgiu o Agostinho, proprietário da casa que alugáramos; tinha ido à aldeia levar um grupo de turistas holandeses, que iriam ficar lá alojados alguns dias, mas ao ver o jipe da GNR parado junto à nossa casa, para lá se dirigiu a fim de saber o que tinha acontecido. Mais uma vez contei como tínhamos achado os ossos e logo ele se prontificou a acompanhar-nos.
O Snoopy, qual herói desprezado, ficara na varanda com ar aborrecido, preso à trela, com uma gamela de água e outra de ração à disposição.

Fomos todos no jipe das autoridades até ao início do carreiro, que partia da pequena ponte, construída apenas com grossas pranchas de pedra xistosa, assentes em pilares do mesmo material. Não me admiraria se a datassem da Idade Média.
O primeiro cuidado que tiveram foi delimitar a área com fita plástica e fotografar, minuciosamente o maxilar e os restantes ossos visíveis. Depois recolheram tudo para uns sacos plásticos aos quais lhes colaram umas etiquetas numeradas. Um dos agentes usou uma pequena espátula semelhante a uma colher de pedreiro e com ela retirou mais terra do buraco iniciado pelo cachorro.
Em breves instantes escavou o suficiente para pôr à vista à vista a caveira à qual certamente pertencia o maxilar. O agente endireitou-se e disse para o colega:
- Liga para o comandante e diz-lhe que temos aqui um cadáver com ossos à superfície e outros enterrados. Diz-lhe também que encontramos o crânio.
O agente regressou ao jipe, sentou-se ao volante e depois de vencer as resistências da estática conseguiu ligação rádio, tendo contado as novidades ao superior, com uma linguagem onde abundavam os termos técnicos e o habitual “escuto” de cada vez que dava a palavra.
Aproximou-se do nosso pequeno grupo que aguardava à sombra de um amieiro e informou-nos que viria uma equipa técnica, provavelmente de Braga, para continuar as investigações. Até à chegada desses técnicos, os dois agentes iriam manter-se de guarda ao local. Pela cara deles via-se logo que estavam aborrecidos com a tarefa, mas não tinham outro remédio senão obedecer.

Regressamos a pé, em conversa com o Agostinho que nos contou a história daquelas paragens, como os pastores levavam os rebanhos na primavera para a Branda e lá permaneciam durante todo o Verão, regressando às aldeias apenas a meados de Setembro.
Durante a tarde passeamos pelos montes, percorremos um sem número de caminhos e carreiros, demos um mergulho retemperador na pequena presa à entrada da aldeia, onde já estavam, alem dos holandeses, mais duas famílias com grande profusão de crianças pequenas.
Ao final da tarde bateu-nos à porta um indivíduo que se identificou como sendo da Polícia Judiciária, o Inspector Peres, ao qual voltei a contar como se tinham descoberto as ossadas.
Ao contrário dos agentes da GNR que só tinham aceitado um café, este aceitou uma cerveja bem fria, tomada confortavelmente na varanda, enquanto tomava notas num caderninho de capa amarela.
Findo o interrogatório, já estava o sol no ocaso, convidei-o para outra cerveja que recusou e retirou-se, deixando-nos com a sensação de um fim-de-semana mais movimentado do que o desejado. Pelo menos não poderíamos dizer que nos tínhamos entediado, sem nada para fazer no meio do monte.

Quando a Paula me perguntou o que queria jantar, encolhi os ombros e propus-lhe ir ao restaurante de Valdepoldros a dois ou três quilómetros de distância.
Jantamos uma posta barrosã deliciosa, bem regada com um tinto do Douro, tudo rematado com umas rabanadas de ovos, um licor para a Paula e uma aguardente caseira para mim. Regressados a casa, refastelei-me na cadeira de lona olhando a escuridão que escondia o vale estendido à nossa frente. Que segredos esconderia aquele vale, histórias com muitos anos, séculos até, de pastores, de contrabandistas, de caçadores, gente que viveu e morreu sem conhecer o mar, sem conhecer a cidade, isolados no cosmos que era e é, a serra. Abri uma cerveja, brindei aos grilos e cigarras que cantarolavam por perto, senti o sono a invadir-me.
Desta vez dormi tudo de um sono só, acordei já o sol ia alto e a Paula já preparava o café. Tinha na boca um sabor amargo que procurei extirpar com um duche bem quente, dois croissants e uma grande chávena de café.
- Ressonaste tanto que parecias um comboio.
- Ora, daqui a nada dizes que até apitava!
- Apitar, não. Mas assobiavas. Devia ser nas descidas…
- Ah, ah, ah. Que piada... – digo eu, interiormente divertido, mas apresentando cara feia.
- Os tipos da polícia estão lá em baixo.
- Onde? Junto ao regato?
- Claro, onde querias que estivessem?
- Vamos lá para saber as novidades? – propus eu.
- Vai lá tu, eu fico aqui na varanda a ler.
(continua)

sábado, 19 de dezembro de 2009

Nos trilhos do contrabando IV

Tinha acabado de descarregar o carro e já a Paula me chamava para a ajudar em qualquer tarefa na cozinha.
- Já vou, já vou! Bolas, nem me dás tempo de apreciar a paisagem…
- É só para arrumares as bebidas no frigorífico, mais nada. Depois vamos dar uma volta?
- Claro, vamos correr esses caminhos todos!
Tínhamos decidido passar um fim-de-semana na montanha, uns dias retemperadores, na solidão, no silêncio, na tranquilidade de uma pequena casa de turismo rural, implantada na isolada Branda da Aveleira, um antigo abrigo estival de pastores e rebanhos. Alguns proprietários tinham recuperado as casinhas de aspecto rústico, mas dotadas de todas as comodidades fundamentais e alugavam-nas agora aos turistas.
Da varanda da casa ainda se podiam ver por perto as manadas de garranos selvagens, o gado pastando em total liberdade e os montes ponteados de grandes torres que agitavam as suas pás ao vento, esperando em fila, as investidas de um qualquer D. Quixote gigantesco.
Atirei com a mochila para cima da cama, desci as escadas de madeira, assobiei à procura do cão, que surgiu disparado, vindo do wc.
- Vamos Snoopy – e o pequeno caniche seguiu-me excitado pela novidade, sempre com o nariz colado ao chão.
Apenas demos uma pequena volta de reconhecimento nos arredores do nosso alojamento e logo voltamos a tempo de ouvir a Paula dizer “já estou pronta”.
- Está bem, mas agora espera, pois vi umas cadeiras na arrecadação e vou pô-las na varanda.
Separei duas cadeiras de lona, montei-as e fui buscar uma cerveja e uma tónica ao frigorífico.
Sentamo-nos na varanda, à sombra, com as bebidas frescas a escorregar nas gargantas, aplacando a sede, não o calor, que esse só iria com a chegada da noite.

Descemos em direcção ao regato que corria no fundo do vale, queria ver se tinha condições para ter trutas. Confirmei que havia sítios relativamente profundos e acompanhamos o curso do regato durante algum tempo. Entramos por um carreiro, ladeado de vegetação ripícula, salgueiros e amieiros que só medram perto de água. Um ou outro carvalho espalhava sombra, pelo chão amontoavam-se excrementos dos garranos, das vacas e dos coelhos. Mais à frente encontramos uma área que devia ter ardido há pouco tempo, talvez na primavera, as ervas finas, brotavam do negro tapete que o fogo tecera.
- Snoopy, anda aqui, vai ficar preto como o carvão. Mais valia tê-lo prendido com a trela – dizia a Paula ao ver como os caracóis brancos do pêlo do cão escureciam rapidamente.
- Não importa, chegando a casa damos-lhe banho.
A poucos metros do caminho o caniche escavava furiosamente, parando apenas para enfiar o focinho no buraco, como que a confirmar a presença do odor que o excitava.
- Vá, deixa isso. Snoopy, vamos embora.
Mas o animal fazia orelhas moucas o que me levou a ir ao seu encontro, com a intenção de lhe pegar ao colo. Junto dele estavam espalhados alguns ossos esbranquiçados, com aspecto de lá estarem já há muitos anos.
- Eu vi logo. Há aqui ossos!
- Não o deixes pegar nessa porcaria – diz-me a Paula com um esgar de nojo.
- Vamos embora, pá.
Com um derradeiro esforço o cão levantou com a boca o osso que tanta fadiga lhe dera e identifiquei, com espanto o que parecia ser um maxilar humano.
- Larga! – Berrei-lhe de tal forma que ele se encolheu amedrontado e deixou cair o despojo entre as patas dianteiras.
- Anda cá ver isto, nem vais acreditar!
Não havia dúvida nenhuma, o Snoopy tinha encontrado um maxilar humano e à vista estavam também mais alguns fragmentos de ossos, impossíveis de identificar por leigos como nós. E eu que pensara serem ossos de um qualquer animal, uma cabra ou um garrano.

Regressamos a casa sem saber bem o que fazer. Por um lado sentíamos a responsabilidade de ter que avisar as autoridades, mas por outro lado não nos apetecia nada sermos incomodados, tínhamos tirado o fim-de-semana para descansar e não para aturarmos uma diligência policial, por mais simples que fosse.
Ao jantar decidimos telefonar para a GNR de Melgaço, mas só no dia seguinte. Mais uma noite ao relento não iria fazer mal àquele esqueleto ou ao que restava dele. Contrariamente à expectativa nem sequer dormimos bem, sempre sobressaltados, eu sonhei com lobos a despedaçar pastores e ovelhas e mais algumas barbaridades do género. De manhã a Paula contou-me que também tivera sonhos semelhantes aos meus, o que atribuímos à descoberta do dia anterior. Quem parecia não ter ficado nada abalado era o Snoopy, que continuava animadíssimo.
Como desconhecia o número do posto policial de Melgaço liguei para o 112 e depois de dez minutos de interrogatório, fingiram acreditar na minha história.
Duas horas depois, andávamos nós a passear o mais longe possível do regato, toca o telemóvel, era do posto de Melgaço da GNR a quererem confirmar a veracidade do que tinha contado ao operador do 112. Sentei-me numa pedra e repeti mais uma vez o essencial da história, tendo-me sido pedido para aguardar uma patrulha que viria à Aveleira tomar conta da ocorrência.
(continua)

sábado, 5 de dezembro de 2009

Nos trilhos do contrabando III

No domingo à noite o pequeno automóvel da Guarda serpenteou os montes, desceu e subiu encostas, os faróis mortiços iluminavam poucos metros à sua frente, mas suficientes para dirigir vagarosamente o velho Ford até à Gave, uma aldeia com 300 habitantes, uma das maiores da região. Parou a viatura no largo da igreja, poucos metros adiante estava o cruzeiro, não se via viva alma, apenas a candeia de azeite iluminava fracamente o nicho da Senhora da Natividade.

O Tenente empunhou o revólver, desceu e deu a volta à pequena praça, sempre atento ao menor movimento. Nada!

Após alguns minutos de espera sentiu o barulho de passos no saibro da praça. Engatilhou o revólver, encostou-se ao automóvel, disfarçando a silhueta na penumbra. Um vulto aproximou-se e a meia dúzia de passos de distância perguntou:

- Vossemecê é que é o da Guarda?

O Tenente admirou-se por ouvir a voz nasalada de uma mulher, mas não desviou o revólver.

- Sou, e você quem é?

- Eu venho buscá-lo para o levar junto do meu patrão, que quer confirmar se veio só e não lhe quer mal. Venha comigo.

- Onde? O local combinado era aqui.

- Ele está à saída da aldeia e fale baixo para não acordar ninguém. Já basta o barulho que o carro fez para chegar até aqui.

- Vai à minha frente e lembra-te que se me estão a preparar alguma, abro caminho a tiro.

- Nada tema senhor, o meu patrão apenas quer falar consigo.

Tomaram o caminho que subia para Valdepoldros, a mulher à frente, o Tenente meia dúzia de passos mais atrás, continuando a empunhar a arma.

- Estamos quase a chegar, senhor – avisa a mulher ao fim de poucos minutos de caminhada na escuridão serrana, quando passavam entre azevinhos centenários.

De repente algo assobiou nos ares e abateu-se sobre o Tenente que caiu de imediato. Outra pancada e mais outra zurzem o corpo estendido no caminho. O Alípio arfava do esforço e da emoção de ter arreado no oficial da guarda com o seu pau ferrado. Dera-lhe com ganas, que o malandro merecia.

- Procura a pistola Rita, ele tinha-a na mão.

- Já a tenho comigo. Vê lá se ele é vivo ou morto…

- Diabos o levem, está cheio de sangue. Acho que não respira.

- De certeza?

- Sim… De certeza – conclui o Alípio.

- Então vai buscar os animais para sairmos daqui.

Os dois cavalos e a mula estavam presos ali perto e num pulo o Alípio trouxe-os pelas rédeas. Atravessaram o corpo do Tenente no dorso da mula, cobriram-no com uma manta e amarraram-no de forma a não escorregar em andamento.

No silêncio apenas quebrado pelas patas dos animais, os dois irmãos montaram e arrastaram a mula, caminho acima, em direcção a Valdepoldros.

(continua)