sexta-feira, 25 de abril de 2008

A tentação (Epílogo)

O Padre Maia olhou em volta e com um gesto convidou a Conceição e a Celeste a sentarem-se. Esta continuava com o bebé ao colo e instalou-se na ponta de uma cadeira.
- Eu não sei o que dizer – começou o padre Maia, - fui apanhado de surpresa. Tenho mesmo uma filha?
- Si cura. Uma hija mui guapa.
- Mas porque não me disseste?
- Não podia. Lo prometi a mi padre.
- Prometeste a quem? Ao teu padre?
- No! Prometi a mi papá, entendes?
- Mas quem é o teu pai, Celeste?
- D. Artur.
- Qual D. Artur?
- Tu bispo, cura. Tu bispo…

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A tentação (1ª parte)

O Padre Maia guardou uns segundos de silêncio, abençoou os fieis ao mesmo tempo que repetia a habitual despedida, “ide em paz e que o Senhor vos acompanhe”.
Fechou a Bíblia encadernada a couro encarnado pousada sobre o altar e encaminhou-se para a sacristia. Os seus paroquianos que tinham assistido à missa, começaram a sair da igreja. Cá fora juntaram-se em pequenos grupos, que rapidamente retomavam as conversas interrompidas pelo ofício vespertino.
O sol ainda ia alto, fazia calor e a sombra projectada pelas oliveiras e pelos ciprestes do adro davam conforto aos corpos suados. Ali ao fundo, alguns homens discutiam futebol, falavam do último jogo do Benfica que voltara a perder, desta vez na Madeira, mais além, um grupo de raparigas trocava confidências sobre os namorados, aqui perto umas beatas já idosas, cochichavam sobre os rumores que davam como certo, mais um par de cornos para o Amílcar Padeiro, desta vez a mulher andaria com um tipo da Guarda Republicana, que era novo no posto.
No ambiente fresco e obscurecido da sacristia, o Padre Maia tirou os paramentos, dobrou-os cuidadosamente e arrumou tudo no armário. Penteou-se ao espelho, compôs a fralda da camisa azul de manga curta, pegou na pasta e saiu.

Ao chegar ao seu escritório olhou para o velho relógio de parede. Já passava das sete da tarde e o calor continuava sufocante. Dispôs-se a ler mais umas páginas de “O último papa” um livro que falava da vida no Vaticano e das lutas pelo poder que se travavam nos seus corredores. Estavam na moda as novelas históricas, onde a Igreja era frequentemente atacada, principalmente o Vaticano, que parecia ser povoada por monstros malignos, na pena desses escribas.
- É sempre a mesma conversa, Jesus era casado, teve filhos com a Maria Madalena, Judas afinal era dos bons, o João Baptista é que era o Mestre, que mais estes tipos irão inventar! – Falava para si o padre, enquanto procurava o marcador entre as páginas.
Algum tempo depois a Conceição, sua governanta, apareceu à porta do gabinete e repetiu o de sempre, “ o jantar está servido, Sr. Padre”.
- Obrigado Conceição.
Fechou o livro, pousou os óculos sobre ele e foi para a sala de jantar. A mesa estava posta apenas para si, a Conceição teimava em cear na cozinha, apesar de ele ter insistido várias vezes para que lhe fizesse companhia na sala.
- Não Sr. Padre. O senhor tem o tempo da refeição para pensar e eu tenho outros afazeres, nem iria comer tranquila.
A Conceição devia andar pelos setenta anos e era sua governanta há mais de vinte. Viera consigo de Pinhel, onde a Conceição já era sua governanta, depois de ter chegado aos ouvidos do bispo um falatório acerca do padre Maia e da antiga empregada.
Enquanto comia a sopa, pensou mais uma vez na Celeste, a doce Celeste que quase o fez virar as costas à Igreja.
O seu envolvimento durara poucos meses, ele era um jovem padre, tinha sido ordenado três ou quatro anos antes, quando a contratou para criada externa. Já nem estava certo se a tinha procurado ou se ela lá tinha ido oferecer-se.
Aos poucos, a confiança entre eles tinha solidificado e nascera uma paixão que em breve a levava a passar algumas noites no passal.
Estas coisas acabam sempre por se saber e os bispos têm muitos olhos e ouvidos. Alguém tinha ido com o conto, ele foi chamado à sua presença, tiveram uma conversa franca, sem recriminações, nem arrependimentos. O bispo propôs-lhe passar algumas semanas de reflexão no Seminário de Évora e prometeu-lhe que dariam um futuro digno à rapariga, na condição de ele a esquecer e não a tentar encontrar.
Acabou por concordar e quando regressou à sua paróquia, encontrou lá a Conceição a dirigir a residência paroquial.
Rapidamente percebeu que era uma mulher com um certo nível cultural e que devia encerrar um segredo qualquer, mas nem em confissão se abria. “Curioso, ela nem sequer é muito religiosa. Missa só aos domingos e nem sempre”.
Enquanto a sua velha colaboradora pousava uma travessa de bacalhau cozido e hortaliça fumegante, pensou o pouco que sabia dela ao cabo de tantos anos de convivência. O mesmo se passava com a Celeste, nunca soube nada dela, de onde viera, para onde fora enviada.
Parece que ainda estava a ver a Celeste com o longo cabelo negro apanhado num “puxo”, olhos grandes e escuros, boca bem desenhada e lábios carnudos. O corpo era forte, mas bem torneado, como só as moças do campo tem.
- Isso são coisas do passado, nem sei porque me lembro disto, já há-de estar casada, se calhar já tem netos. Já não se lembra de mim…
Acabou o jantar concentrando a atenção nas notícias do telejornal, tomou o café e foi para o centro paroquial, onde iria presidir a uma reunião da Fábrica da Igreja. Nessa noite dormiu sobressaltado e por várias vezes acordou com a sua antiga criada no pensamento.

Uma semana depois, estava no seu escritório a ler umas actas antigas das “Memórias Paroquiais” quando ouviu a campainha da porta. Passados alguns segundos a campainha voltou a tocar, levantou-se e foi atender. À porta estava uma senhora com um bebé ao colo, que lhe perguntou pela D. Conceição Andrade.
- Ela deve estar para o quintal. Faz favor de entrar e esperar um momento, que eu vou chamá-la.
Acto contínuo atravessou a cozinha, abriu a porta das traseiras e chamou a Conceição que lavava roupa no tanque.
- Conceição, está no átrio uma senhora que quer falar consigo.
- Uma senhora?
- Sim, com um bebé ao colo.
- Já vou, já vou – e limpava as mãos ao avental enquanto subia as escadas para a cozinha.
O Padre Maia voltou para o seu escritório sem deixar de passar pelo átrio e dizer à visitante que a Conceição estava a chegar.
Pela primeira vez deu atenção àquele rosto. As feições não lhe eram desconhecidas e foi a pensar nisso que retomou a leitura das actas. Instantes depois desistiu, porque o pensamento voava em círculos, cada vez mais amplos, qual falcão em busca da presa.
- Dá licença Sr. Padre? – Interrompeu a Conceição, da porta.
- Diga, Conceição.
- Eu… hum… eu, queria, hum… Não sei como dizer-lhe.
- Mas diga senhora, diga. Passou-se alguma coisa?
- Não! Quer dizer… sim. Passou. Aquela senhora que está lá fora é minha filha.
- Você tem uma filha? Não sabia, nunca me tinha dito nada!
- Pois não…
- Mas há algum problema, Conceição?
- Não Sr. Padre, mas ela quer cumprimentá-lo e mostrar-lhe o bebé.
- Então, é preciso ficar assim atrapalhada por causa disso? Mande entrar a sua filha, ande lá.
- Deus me valha, Deus me valha!
Saiu do aposento, regressando de imediato com a filha e a criança ao colo. O Padre Maia inclinou-se para poder apreciar o bebé que não teria mais de cinco ou seis meses e sorriu para ambas.
- Gracias por me receber e à mi nieto.
- A senhora esteve em Espanha muito tempo?
- Si, vivo em Espanha à mas de vinte anos, por isso hablo mas Espanhol que Português.
- E está de visita a Portugal ou veio para ficar?
- Vim tão solo mostrar mi nieto a mi madre e me vou mañana a Granada. Usted não me conhece, Cura?
- Não… bem, a sua cara não me é estranha, mas… Virgem Santíssima, tu… a Celeste!!! Tu és a Celeste!
- Por supuesto, Cura, eu sou a Celeste, se recuerda de mi.
- Como não… Assim, com o cabelo louro, já se passaram tantos anos. Casaste, tiveste filhos. Eu… Eu continuei com a Igreja.
- Si, casei há oito anos.
- Mas então, se esse bebé é teu neto, como é…
- Si, mi nieto, pero también tu nieto, hombre!
- Hum…
- Ai Jesus… - gemeu a Conceição.
- Este niño es hijo de nostra hija, Cura!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Crónicas do filho da p*** (3ª parte)

O grande problema, a grande desorientação, a infelicidade suma do filho da p*** ocorre naqueles momentos de transição, de incerteza quanto ao rumo dos acontecimentos, naqueles momentos em que a balança está parada por instantes e não se sabe qual o prato de maior peso; é nesses momentos que o filho da p*** se torce e contorce, na busca desesperada de “parâmetros”, dos seus queridos parâmetros, ou simplesmente de uma via, de um rumo, da sua via, do seu rumo de filho da p***.
É nessas ocasiões sobretudo que ele, o filho da p***, se queixa, que aparece em todos os lugares dizendo “isto está mau”, e não adiantando mais nada.
Sim, para o filho da p*** nada pior que não saber qual é a preocupação dos outros, não saber enfim o que os outros pensam, o que os outros acham, o que os outros sabem.
É por isso que organiza testes, toda a espécie de testes, e programas, toda a espécie de programas, e sondagens, toda a espécie de sondagens, e inquéritos, reuniões de grupo, reciclagens, estágios, exames, modos de através de um ritual de perguntas e respostas tentar apurar dos outros o que os outros normalmente tentam também apurar dele: o que pensam, o que acham, o que sabem da vida uns dos outros. Mas quanto mais normalizadas são as perguntas e as respostas, maior é também a sensação que o filho da p*** experimenta de nada saber.
É por isso que cada vez mais promove órgãos de orientação geral, instrumentos para levar a pensar ou a não pensar, a fazer ou a não fazer, a falar ou a não falar, sempre segundo os mesmos critérios nas mesmas circunstâncias.
Serviços técnicos, gabinetes de coordenação, institutos de apoio, centros de divulgação e de documentação, departamentos de planeamento, sectores de estatística, gabinetes de gestão, comissões do ambiente, núcleos de inspecção, canais logísticos, serviços de reconhecimento, postos de fomento, institutos de reorganização, delegações de investigação, grupos de trabalho permanente, “workshops”, centros de observação, serviços coordenadores de estudos, registros centrais, divisões de fiscalização e comissões de apoio às iniciativas centrais.
Por sua vez, estes órgãos são apoiados por outros de mais largo alcance; se, para esse efeito, em certos lugares e épocas utiliza a sua psiquiatria, noutros utiliza a sua inquisição, e noutros serve-se da sua televisão e demais órgãos de qualidade de vida; pode servir-se do seu jornal ou da sua falta de jornal, do seu partido único ou da sua pluralidade de partidos, pode servir-se de prémios ou de castigos, de gratificações ou de transferências. Isso mesmo. Não há nada que o filho da p*** não faça e não há nada que não sirva os seus desígnios.
O filho da p*** é sempre aquilo que os outros filhos da p*** do momento e do lugar são; é, porque é isso que “convém” ser, e portanto é isso que ele é. O filho da p*** insere-se sempre no processo em curso qualquer que ele seja, e esse é mais um traço distintivo do filho da p***.
O filho da p*** colabora, e está sempre no vento, sempre na maré, sempre na onda. O filho da p* é sempre no mais alto grau possível aquilo que “convém” ser no lugar e no momento em que vive.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

sexta-feira, 11 de abril de 2008

IPO

Ontem aconteceu-me algo deveras interessante que não resisto a transcrever. A meio da manhã estava muito sossegado no meu trabalho quando apareceu o meu amigo Pedro a convidar-me para ir com ele ao IPO.
Esclareça-se que o IPO que ele referia era Inspecção Periódica Obrigatória e não o Instituto Português de Oncologia. Acho que é completamente idiota deixarem usar a referência IPO para a inspecção automóvel, quando já existe há décadas um organismo público, ligado à área da saúde com a mesma designação. Só em Portugal!
Mas contava-vos eu que o Pedro ia levar o carro à inspecção e queria companhia. Disse-lhe que não podia ir e ele retorquiu:
- Sabes, é a primeira vez, não sei como aquilo é.
- Ó homem, não tem nada que saber. Vais ali a Campos que eles fazem isso em dez minutos.
- O que é que eles pedem?
- Tens de levar os documentos, põe o triângulo e o colete à mão, tens de verificar se as luzes estão todas em condições.
- Eu acho que isso está tudo bem – diz o Pedro – só os limpa vidros é que tem problema.
- Estão avariados?
- Não, eles trabalham, mas um deles não limpa nada.
- Então tens de os mudar, tens de comprar umas escovas novas.
- Já comprei mas… olha vamos tomar café que eu explico-te.
Fomos à pastelaria, tomamos café, falamos de qualquer coisa e eu nunca mais me lembrei dos limpa vidros. Quando saímos o Pedro arrastou-me até ao parque de estacionamento para eu ver as luzes do “chaço”, um Skoda Octávia que estava a fazer quatro anos e está em óptimo estado.
- Eu comprei as escovas no Feira Nova e como não sabia pô-las pedi ao meu irmão, mas ele disse-me que uma delas não servia. Só conseguiu pôr a do lado do condutor.
- Tu não percebes nada disto – disse eu – mas o teu irmão é outra nódoa. Então não vês que esta escova está posta ao contrário. Repara este deflector é colocado na parte de cima, assim.
Desmontei a escova, virei o adaptador, voltei a colocá-la na posição correcta e pedi-lhe:
- Dá-me a outra que eu ponho isso num instante.
- A outra? Eu não a tenho…
- Não tens? Então que lhe fizeste?
- Deitei-a fora, como o meu irmão disse que não servia…
- Ó pá tu és…
- Já sei, já sei eu e o meu irmão somos dois burros!
- Não! Tu e o teu irmão sois três burros, porque tu vales por dois.
- Agora tenho de comprar outra, não?
- Claro, mas podes ir assim que eles não implicam. Desde que trabalhem…
- Vê-me as luzes.
- Ok, mete-te no carro e liga os mínimos.
Eu na frente do carro comandava:
- Agora liga o pisca da esquerda, agora o da direita.
E por aí fora. Passei para a traseira do carro e cantei a mesma música até chegar à luz de nevoeiro, que teimava em não acender.
- Pedro, a luz de nevoeiro não acende.
- Que é isso da luz de nevoeiro?
- A luz de nevoeiro, pôrra!
- Onde é que se liga?
- O carro é teu, tu é que deves saber.
- Ó pá, eu nunca vi isso.
- Pira-te daí, deixa-me ver.
Conferi todos os comandos e rapidamente encontrei o comando da luz traseira de nevoeiro que estava agrupada com os projectores de nevoeiro, no comutador geral das luzes.
- Pedro, é aqui junto com os faróis de nevoeiro.
- Faróis de nevoeiro? Este modelo não tem.
- Tem sim senhor. Anda cá ver.
Acto contínuo mostrei-lhe onde ligavam as luzes referidas e ficou espantado ao ver os faróis de nevoeiro que estavam a ser acesos pela primeira vez ao fim de quatro anos.
- Brito, pelo menos hoje já aprendi alguma coisa.
Já nem tive coragem de lhe dizer nada.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Crónicas do filho da p*** (2ª parte)


Onde o filho da p*** se sente à-vontade é na política. Está entre os seus e considera-se o maior, quando tem de lidar com os grupos que o elegem. Aí a sua natureza de filho da p*** tem der ser cuidadosamente camuflada sob uma aparência de bonomia, de solidariedade e de partilha dos problemas dos “totós” que vão na conversa. “As bases” como ele gosta de chamar, são sempre difíceis de contentar. Estão sempre a pedir alguma coisa ou, pior ainda, durante as campanhas querem beijinhos e abraços, algo que o filho da p*** abomina, mas que condescende com um sorriso nas beiças. Interessa é que os otários façam a cruzinha no sítio certo. Isso vale todos os sacrifícios.
Mas o filho da p*** tem um drama permanente, pois todos os outros filhos da p*** da política, invejam a sua posição e não se poupam a esforços para o foder.
Por isso, tem de manter-se nas boas graças do chefe, seja ele qual for, o deputado, o presidente da Câmara, o secretário-geral, sei lá, um qualquer filho da p*** graúdo.
A esses cães gordos, o nosso filho da p*** até lhe lambe os sapatos, com um ar de fingida satisfação. Diz sempre “ámen” ao chefe, reitera-lhe repetidamente o seu apoio e está sempre disponível para qualquer biscate de que o chefe o encarregue. Como qualquer bom filho da p*** roí-se todo por dentro com esta subserviência e sonha com a oportunidade de tramar o chefe e, quem sabe, herdar a sua posição. É uma questão de tempo…
Nas reuniões do Partido gosta particularmente de ver o chefe a ser atacado, para poder demonstrar-lhe a sua fidelidade, defendendo-o dos outros filhos da p***. Quando lhe toca a ele dirigir uma reunião, temendo ser atacado, fala, fala, fala até ser tarde e já ninguém estar com paciência para o afrontar.
Não dispensa um séquito de nabos, os “ferrinhos”, para lhe fazerem as vontades e os trabalhos que ele considera indignos da sua posição. Esses, são o seu grupo de “amigos”, que ele lança para a frente dos seus adversários políticos, sempre que lhe convêm. O filho da p*** sabe que esses “amigos” não duram sempre, porque, mais tarde ou mais cedo, topam-no e mandam-no lixar.
Nessas ocasiões o filho da p*** arma-se em vitima e diz que o querem tramar, a ele que é o paladino da verdade, dos pobres, da ecologia, do Benfica… sim do Benfica, porque o chefe também é do Benfica. Mas se o chefe for do Sporting, ele passa a ser “lagarto” convicto.
Ainda no mês passado arranjou uns bilhetes que lhe custaram os olhos da cara e convidou-o para ir à bola, ele que detesta as confusões do estádio, com todos os energúmenos de bandeira e cachecol. Mas foi da maneira que o chefe acabou por lhe arranjar aquele “tacho” naquela empresa pública. Bem, adiante…

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Alô, alô, dizia o croquete para o rissol




- E se fossemos a S. João D`Arga?
- Eh?... Quando é isso? – Perguntei eu, deitado na praia sobre a toalha.
- É na próxima terça à noite – diz o Zé Alfredo, abanando chapéu de palha em frente à cara.
- É uma ideia, já lá não vou há meia dúzia de anos, pelo menos.
- Tal como eu. O Daniel é que ontem me falou nisso, porque costuma ir todos os anos lá jantar.
- Mas janta numa tasca ou leva merendeiro?
A curiosidade aguçada pelo evocar do merendeiro invadia-me a mente. A última vez que lá tinha estado, tinha sido de fugida e não tivera oportunidade de provar o cabrito, nem sequer o famoso bagaço com mel. Por isso a sugestão do Zé Alfredo não estava nada despropositada. Alem disso, tinha passado a maior parte das férias sem pôr o nariz fora da toca e uma noite animada, calha sempre bem.
No dia seguinte voltamos à conversa e o plano ficou mais ou menos delineado. Iríamos nós, mais o Daniel, o Álvaro e respectivas famílias. Convidamos também o Rico e a Cira, uns primos nossos que vivem em Paris e que adoram estas festas.
Marcamos a saída para as cinco da tarde de terça-feira e até essa hora houve treino de culinária.

Eu e a Paula fizemos um empadão e uma tortilha, o Rico (lê-se Ricô, porque ele é Italiano) fez uma omoleta de esparguete e já contávamos com os habituais panados, bolos de bacalhau e similares que alguém havia de levar. É infalível!
De qualquer forma, eu e o Zé Alfredo estávamos filados no cabrito e principalmente no sarapatel que, como sabem, é feito com os “miúdos” do dito. À hora marcada lá aparecemos junto ao Centro Cívico e (milagre) ninguém se atrasou, dando-se de imediato a partida. Como era para a festa estava tudo pronto, se fosse para trabalhar…
Ao chegar à freguesia de Arga de S. João ultrapassamos uma coluna de romeiros de Dem e pouco depois começamos a ver os automóveis que já estavam estacionados nas bermas.

O Daniel parou para estacionar, o Álvaro ultrapassou-o e continuou em marcha lenta. Eu vinha a seguir também continuei à procura de um local em que pudesse fazer (com segurança) inversão de marcha, de forma que, à noite, tivesse o carro apontado para a saída. Numa curva onde havia um recanto, deu-me a possibilidade de fazer a manobra e o Zé Alfredo, que me seguia fez o mesmo. O Álvaro continuou a descer em direcção ao Convento.
- Onde vai aquele gajo? – Disse eu ao ver a descontracção com que se metia no meio da confusão.
Descarregamos as tralhas, mochilas com agasalhos para a noite, mantas para o chão e os comes e bebes, aguardamos pelo Daniel que tinha ficado para trás umas centenas de metros e aí vamos nós, estrada fora.
Quando chegamos ao recinto junto da antiga casa florestal deparamos com mais de uma dúzia de auto caravanas a um canto do parque e bastantes tendas de campismo, o que para mim constituiu a primeira novidade, pois da ultima vez que lá tinha estado não haviam auto caravanas e tendas não me lembro de ter visto alguma.
A segunda surpresa veio logo de seguida com as roulottes das farturas, do pão com chouriço e tendas que vendiam sapatos, quadros, roupas e todo o bric a brac a que estamos habituados nas festas “da cidade”.
Para mim foi uma surpresa ver aquele estenderete em S. João D`Arga, tudo bem iluminado à custa de inúmeros geradores que faziam um barulho do caraças. Acho que S. João D`Arga não precisava nada daquela tralha e que só vieram adulterar uma romaria genuína.

O nosso objectivo era arranjar um lugar para “acampar” dentro do recinto e, por isso, lá fomos descendo, furando e empurrando. Já estava bastante gente mas ainda se circulava razoavelmente.
Começaram a aparecer as primeiras caras conhecidas, trocaram-se os primeiros cumprimentos. Ao fundo, detrás da capela, havia um espaço que parecia estar à espera de dono e foi mesmo aí que estendemos as mantas. A vizinhança tinha ar simpático e estávamos perto de tudo, mas desviados da confusão.
Tirei algumas fotografias, dei umas voltas sem destino, tipo perdigueiro de nariz no ar e apeteceu-me urinar o que até nem constituiu preocupação porque estava perto dos sanitários.
Só que havia bicha (de mulheres) para o xixi e nos sanitários já se entrava de calças arregaçadas ou de barco (com o fundo chato). Decidi ir à natureza, como tantos outros, desci uma ladeira para “regar” umas giestas, falharam-me os “patins” sobre a relva húmida e lá vou eu, por ali a baixo, com o cu a rasto. Pouco faltou para ir ter à ribeira de S. João!
Estava já de pé a sacudir-me quando passa outro melro ainda mais embalado, que só parou lá mais em baixo.

No final da missa saiu a procissão que faz um percurso até ao cruzeiro do caminho antigo e regressa à capela, percorrendo no total pouco mais de duzentos metros, mas que representa o que de genuíno encontrei nesta romaria popular.
Entretanto o Álvaro e a Bina ainda não tinham chegado, nem atendiam o telefone. Começava a escurecer e, depois de metermos paleio com os donos de uma tasca e vermos o que se preparava na cozinha, decidimos comprar ali o cabrito e o sarapatel.
Como não tínhamos levado pratos nem talheres o senhor da tasca pôs-nos logo o material à disposição, muito agradecido por não irmos ocupar uma das suas preciosas e escassas mesas.
No grelhador deste estabelecimento estava o nosso velho amigo Clemente, um grande cantador da Serra D`Arga e, pelo visto, também um grande grelhador de frangos, costela de porco e bacalhau.

Tínhamos combinado começar o jantar às oito e eis que chega o Álvaro e a Bina, que de orelha caída, nos explicam que seguiram sempre para baixo até que um elemento da GNR já não os deixou dar meia volta na estrada, obrigando-os a seguir em direcção a Arga de Baixo.
Como só encontraram lugar para estacionar a mais de três ou quatro quilómetros decidiram ir até Covas, virar para Vilar de Mouros e voltar outra vez por Dem, estacionando finalmente o automóvel perto do Daniel. Com esta habilidade andaram mais de hora e meia às voltas e fizeram cerca de vinte quilómetros desnecessários!!!
Claro que depois de nos terem contado esta aventura, o mais simpático que chamamos ao Álvaro foi “parolo”. Agora imaginem o que ele disse do polícia…

O homem da tasca encheu um par de travessas de cabrito e sarapatel e quando “tocou o pau no balde” eu, o Zé Alfredo e a Paula regalamo-nos com aquele pitéu serrano, enquanto os outros iam aligeirando os tapewares de bifanas, rissóis e empadas. O Rico e a Cira que nunca tinham provado sarapatel, provaram, gostaram e ficaram clientes.
A Bina tinha acamaradado com as nossas vizinhas e já saboreava uns nacos de coelho estufado, que tinham o sabor lá dos lados de Vitorino de Piães.
Barrigas cheias, hora de tomar café e provar o bagaço com mel, antigamente um néctar dos deuses, hoje uma aguardente comercial, baptizada com água e adoçada com mel e açúcar amarelo. Enfim, bebia-se…
As bandas de Lanhelas e de Moreira já tocavam ao despique e depois de levarmos algumas dúzias de empurrões, pisadelas e apertanços, desistimos de ver e ouvir as bandas de perto, cada um acabou por procurar um lugar mais calmo para assistir ao espectáculo, o que, diga-se em abono da verdade, valia a pena.
O concerto das bandas não tem nada a ver com os habituais concertos de outras festas, pois os reportórios são completamente diferentes, mais ligeiros, mais populares, menos formais e com o publico a apoiar e a “puxar” pela banda da sua preferência.
Do outro lado da capela, vários grupos de tocadores de concertina juntam à sua volta multidões para ouvirem cantar ao desafio ou até para darem um pé de dança.
E assim se passou até depois da uma da manhã, quando a banda de Lanhelas se despediu e saiu do recinto, ficando alguns elementos da banda de Moreira em total autogestão (já sem maestro) a tocar em cima de um dos coretos. Aquilo já era mais jazz vadio que outra coisa qualquer!

Entretanto íamos circulando e volta e meia íamos até ao local onde tínhamos as tralhas, quando soubemos que tinha desaparecido o telemóvel ao Álvaro.
- Talvez o tenhas deixado cair?
- Já procuraste bem?
- É pá, ou me caiu do bolso ou mo roubaram. Sei lá, no meio desta confusão… Só tenho pena é dos contactos que lá tinha. Estou tramado! – Desabafava o Álvaro completamente desconsolado com mais este percalço.
- Vamos à cabine de som para eles anunciarem, pode ser que alguém o encontre…
Foi o Zé Alfredo com ele, mas os tipos da comissão de festas disseram logo que não valia a pena, só anunciavam desaparecimento de carteiras por causa dos documentos.
Decidimos vir embora, reuniu-se a malta e toca de arrumar tudo, pois ainda tinha sobrado muita comida, alguma bebida e era preciso encher as mochilas.
- Olhai o que está aqui dentro deste tapeware – diz a Bina
Era o telefone do Álvaro que estava bem aconchegado dentro de uma marmita, entre os rissóis e os croquetes, o que motivou mais umas sonoras gargalhadas e mais uma vez uns mimos para o nosso Alvarinho. Há dias que um gajo não pode sair de casa!

Fizemos o caminho de regresso, recuperamos os carros e fomos barrados pela Brigada de Transito na rotunda de Dem, que nos mandou encostar para controle documental e de alcoolémia.
O Álvaro como compensação dos azares anteriores, foi o único que mandaram embora sem bufar. Todos os outros bufaram e foram mandados em paz (não sei como) e com votos de boa viagem.
Depois do susto, já a descer na A-28, pensei que por pouco não tinha ido beber mais um “fino” antes de vir embora.
Mas um pressentimento travou a minha ida à tasca mais próxima. Agora é que acredito que o último copo é sempre o mais perigoso. Ainda bem que só tomei o penúltimo!