terça-feira, 18 de agosto de 2009

O velho pescador

Era um dia como tantos outros, o velhote saiu pela porta da cozinha, pegou na caixinha da isca, meteu-a cuidadosamente no zote onde já estavam meia dúzia de chumbos, carteirinhas com diversos tipos de anzóis, bobines de fio de nylon e outros acessórios de pesca.
Pôs o zote de verga ao ombro, pegou na cana encostada à parede e abriu o portão da rua. O dia nascia triste, enevoado e húmido, muito húmido. Rapidamente o boné azul ficou pejado de pequeníssimas gotículas brilhantes. Lentamente, arrastando as botas de borracha que lhe chegavam aos joelhos, desceu a avenida marginal. Ainda tinha para uma meia hora, senão mais, para ir até à Guimbra, o sítio onde tencionava passar a manhã a pescar.
Nem apreciava de modo especial aquele pesqueiro, o que lhe agradava era o ambiente que o rodeava. Pelo caminho foi cumprimentando quem conhecia, alguns também iam pescar como ele, mas iam em passo mais ligeiro, eram mais novos. Acenou ao Berto que já estava nas pedras da ribeira com o bicheiro dos polvos. “Ainda tem mais vício que eu, não passa um dia sem vir cá abaixo” e na cara do velho esboça-se um sorriso.
Chegado à Guimbra, pousou o zote no chão e sentou-se numa pedra à beira do caminho. Agora teria de descer até ao mar e aquelas lajes molhadas eram um perigo, tinha de ir com cautela.
Admirou-se por a maré estar tão vazia; ou tinha feito mal as contas ou saíra de casa mais cedo que o costume. A pedra alta de onde costumava pescar estava desocupada, aliás, ali perto não estava ninguém a pescar, apenas duas mulheres, mais a norte, talvez a Ritinha e a filha, que deviam andar na apanha dos percebes e do mexilhão.
“Qualquer dia tenho de ir ao médico da vista, se calhar são cataratas. Ao longe vejo cada vez pior” pensou o Guilhermino enquanto preparava a cana. Primeiro colocou o anzol, depois a chumbeira, iscou com meio caranguejo e lançou suavemente para o mar à sua frente. O isco caiu perto, não mais de trinta metros, já não podia fazer aqueles lançamentos de que tanto se orgulhava quando era novo.
Uma vez apostou que lançava mais de cem metros e como tinham duvidado, logo desafiou os incrédulos para irem à praia tirar as teimas. No primeiro lançamento lançou a cento e vinte e três passos, contados pelo Ticúm que tinha os passos grandes. Quando todos já se davam por satisfeitos o Guilhermino fez outro lançamento a mais de cento e trinta passos. “Bons tempos, nessa altura ainda era novo, hoje não posso com um gato pelo rabo” e sentou-se, depois de pousar a cana, equilibrada numa fenda da rocha.
À sua volta as gaivotas ociosas, ora pousavam, ora levantavam para mais um voo preguiçoso sobre as águas cinzentas.
A névoa tinha levantado e levado com ela a humidade, mas ainda estava fresco, talvez ainda desse para tirar o casaco mais tarde. Nas pequenas poças escavadas nas rochas, a vida tinha o seu ritmo próprio. As anémonas abriam e estendiam os seus filamentos em esforço de caça, pequenos caranguejos moviam-se sem jeito, de lado, como se dançassem. Um ou outro pequeno peixe, cabozes das pedras, corriam para lá e para cá à procura de alimento.
Levantou-se, pegou na cana, recolheu a linha, voltou a iscar, lançou e sentou-se à espera. “Hoje não estão cá, ou se estão não pegam na isca. Antigamente bastava cair na água e logo o peixe se atirava”.
O Guilhermino sabia bem que cada vez havia menos peixe, a ganância do negócio estava a transformar o mar num deserto. Desde que tinham começado a usar as redes de arrasto que tudo destruíam, a sobrevivência de muitas espécies estava ameaçada. “Malditas redes, mil vezes malditas” e escarrou com força, enquanto fixava o olhar no voo rasante de uma gaivota a escassos centímetros da água.
Embora não estivesse sol, já não fazia frio e decidiu tirar o casaco e o impermeável que o tinha protegido da humidade. Assim sentia-se mais à vontade, mais livre. Era por isso que gostava de pescar, mesmo que não apanhasse peixe. Só a sensação que era estar junto ao mar, aquele mar imenso que tinha atravessado dúzias de vezes a bordo dos barcos mercantes onde trabalhara. “Vida dura, meses e meses sem vir a casa, os filhos pequenos, que nem me conheciam quando chegava”, agora podia gozar a merecida reforma e a pesca era mais que um entretimento, era uma forma de estar na vida.
A cana começou a vergar, estremeceu várias vezes e manteve-se dobrada. Com uma velocidade pouco própria para a sua idade, levantou-se e deitou-lhe a mão. Ficou tenso, ansioso até sentir mais alguns puxões dados pelo peixe no outro extremo da linha.
Durou muito tempo a batalha entre estes dois seres, um apenas queria o troféu, o outro lutava pela vida. Valeram todos os truques, todas as manhas, todas as experiências vividas.
O Guilhermino perdeu a noção do tempo que levou até trazer o peixe para junto da pedra, já nem sentia os braços de cansaço, doíam-lhe as pernas do esforço e sentia o suor a escorrer pela cara e pelas costas abaixo.
O peixe, um exemplar soberbo, veio finalmente à tona extenuado com a luta, fazendo brilhar a sua ilharga prateada. Depois de o encostar à pedra, o pescador baixou-se, estendeu a mão e enfiou-lhe dois dedos pelas guelras. Num último esforço puxou-o para seco, desequilibrou-se e caiu para trás, ficando sentado na rocha com o peixe entre as pernas.
Foi o momento decisivo, os dois contendores olharam-se nos olhos, o peixe agonizava em estertores, o Guilhermino arfava devido ao esforço. “Lá entre os teus, também és um velho como eu, se calhar ainda mais velho. Não mereces esta sorte”.
Retirou-lhe o anzol fortemente cravado na mandíbula, pegou-lhe outra vez pelas guelras, tomou-lhe o peso e voltou a pousá-lo suavemente na água.
O velho robalo ventilou lentamente, agitou-se, mas não se afastou. “Vai-te embora, és livre, não voltes a cair no engano, vai”. Com uma palmada da poderosa barbatana caudal, ganhou impulso e afundou-se majestosamente. Duas lágrimas rolavam pela cara do Guilhermino que as limpou com as costas da mão.
Levantou-se penosamente, mas com um sorriso na cara enrugada “ora, para que é que precisava de um peixe tão grande, só para mim e para a Lurdes? Ia ser um desperdício, mais vale assim”.

Das montanhas te contemplo a passear