sábado, 2 de agosto de 2008

Nos mares do Norte I


O Chico já andava ao bacalhau há quase três anos. Tinha embarcado como “moço”, com quinze anos e nas duas primeiras viagens foi ajudante do cozinheiro. Mas quando a cozinha estava fechada havia sempre qualquer coisa para fazer. “Ó Chico, vai buscar um novelo de fio ao porão”, “Ó Chico, vai carregar sal”, era assim todo o dia e parte da noite, restando umas magras horas para descansar na tarimba.

O rapaz era magro, mas rijo e comida não lhe faltava na cozinha. Podia ser sempre a mesma coisa, mas nesse particular, era um dos poucos privilegiados a bordo.
Fazia a “chora” tão bem ou melhor que o cozinheiro com quem tinha aprendido e não havia nada na cozinha que já não soubesse fazer.

Na terceira viagem o Capitão Maldonado, o “Ferreiro”, como lhe chamavam à boca pequena, debruçado no varandim da amurada, olhou-o com atenção quando cruzou o portaló, com o saco da roupa às costas.
- Vai arrumar isso e anda ter comigo à câmara.
- Sim, senhor Capitão – respondeu o Chico, embaraçado e sentindo-se corar, por aquela súbita chamada à presença do capitão, nenhum pescador gostava de ir, porque geralmente significava aborrecimentos.
De boina na mão apresentou-se ao Capitão Maldonado, um indivíduo franzino, muito moreno, da zona de Ílhavo, filho e neto de pescadores que se tinha alistado novo na Marinha. Estudou e foi aproveitando as oportunidades, chegou a comandar um draga-minas e quando saiu da Marinha de Guerra, tinha à sua espera o lugar de imediato num lugre, onde fez duas viagens à Terra Nova, para aprender os pesqueiros.
Daí para cá tinha comandado o “Senhora da Ajuda”, um lugre de três mastros que, com a graça de Deus e a habilidade dos pescadores, todos os anos, no inicio do Outono atracava carregado com 350 toneladas de bacalhau, nos Cais de Aveiro.
- Tu és o Francisco Gomes, de Âncora, não és? – e sem dar tempo de responder, continuou – Desta vez não vais para a cozinha. Esse borrachão do Sampaio vai ter de arranjar outro ajudante. Vai-te apresentar ao contra mestre Antunes, já tens idade e corpo para ires de “verde”.
O Chico saiu radiante em direcção à coberta da popa, onde o contra mestre dava as suas ordens. A azáfama na véspera da saída é sempre muita, tudo tinha de estar pronto antes da hora de zarparem. Os homens mais experientes passavam revista aos doris, já tinham sido calafetados e pintados, mas podia ter passado alguma deficiência. Os doris eram a principal ferramenta do pescador, o único garante da sua precária segurança, quando pescavam nas águas geladas do Atlântico Norte.
Nos paióis, as linhas, os anzóis e demais utensílios próprios da pesca à linha estavam já guardados e assim ficariam durante quinze dias, o tempo de viagem até ao primeiro banco de pesca.

Quando cruzaram a barra e deixaram para trás o cais salpicado de gente, os familiares e outros pescadores que se vieram despedir, enfrentaram um mar branco de espuma, empurrada pelo vento de sudoeste que rapidamente os afastou da costa. As primeiras horas de navegação não são de falas, todos se recolhem na saudade, na angústia de mais uma viagem, na certeza de uma vida dura e perigosa.
Como “verde”, o Chico passou a acompanhar o Raposo, um homem quase com idade para ser seu avô, que tinha por missão ensinar-lhe a conhecer o mar e os truques da pesca à linha. Quando arreavam os doris, para onde remava o Raposo, logo o Chico partia no seu encalço, sempre atento aos dizeres do velho pescador.
- Ala seguido, rapaz. Não dês puxões, que perdes o peixe. Isso, assim!
- Olhe para este Tio Raposo! É quase do meu tamanho…
- Vá, deixa-te de conversa e olha para o que fazes. Um olho no céu e outro no mar, nunca te esqueças.


(continua)

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