quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Gritai meus filhos, gritai...

Mar de Âncora, 14 de Fevereiro de 1951

O relógio da sala deu as quatro horas. A cama rangeu sob o peso do Chico que se levantou às escuras. Ao seu lado o irmão ainda dormia, tinha sorte, iria alar as redes já com o dia, podia dormir descansado mais um par de horas.
Vestiu-se na cozinha à luz do coto da vela, engoliu a broa dura com uns goles de cevada que a mãe deixara na cafeteira, sobre o fogão ainda morno.
No Portinho as gamelas deslizavam sobre os rolos de pinho em direcção ao mar que a brisa encapelava de leve.
- Ao menos não vamos precisar dos remos – diz o Tone Machina, que aos treze anos, tal como o Chico da Caganta, já labutavam no mar o sustento escasso, que o mar consentia dar.
Cedo içaram a vela que empurrou o “Sempre em Frente”, velho barco tipo poveiro, em direcção aos mares de Afife. À sua frente navegava o “Pesse Bucha” que ia procurar sustento para os mesmos lados.
A verga da vela rangia sob o esforço, o vento era mais que em terra, assobiava nos cabos retesados. Ao leme, o César do Baba procurava aproveitar o máximo da força, oferecendo pano às rajadas consecutivas. Cada vez que a direcção do vento mudava, o mestre compensava com um golpe de leme que fazia o barco adornar. A água corria então veloz a escassos dedos da borda, um ou outro salpico invadia o interior já molhado do pequeno barco de pesca.
De súbito, uma rajada de través pôs a tripulação alerta.
- Arreai a vela – grita o mestre vendo o barco inclinar-se perigosamente.
Os homens soltaram a adriça, mas a verga não desceu. Uma volta no cabo de linho duro, não passou no moitão. Desesperadamente puxaram novamente pelo cabo da adriça e soltaram-no de imediato, na esperança de se desfazer a volta do cabo, uma “cocha” na linguagem destes pescadores.
O cabo molhado e rijo voltou a prender e a vela não desceu como todos ansiavam. Com a inclinação a vela tocou na água, o leme soltou-se, o barco rodopiou e tombou de lado.
Os homens caíram ao mar esbracejando em pânico. O nome do Senhor dos Aflitos passou de boca em boca, enquanto se procuravam desembaraçar da roupa grossa que os puxava para o fundo.
Uns agarrados ao mastro tombado, outros seguros às tábuas alcatroadas do barco, gritaram até ficarem roucos, mas a embarcação que os precedia continuou a sua marcha, ignorante da tragédia que se desenrolava na sua esteira.
O tempo passava, os homens na água subiam e desciam ao sabor da ondulação cavada. A terra estava longe e inalcançável, devido ao vento que se fazia e os atirava para sul. Por perto não se vislumbrava qualquer outra embarcação.
Ao fim de uma hora estavam gelados, a água em Fevereiro está sempre fria e o Fininho, doente dos pulmões, desesperado com a ausência de socorro, conseguiu abrir a navalha e dizer ”prefiro matar-me a esperar a morte”, no que foi prontamente contrariado pelos seus companheiros que o demoveram de tão dramática atitude.
- Vamos rapaz, aguenta-te, que os barcos da pescada hão-de estar a passar e algum nos vai socorrer – diz o mestre Cesar do Baba, mais para incutir animo nos seus homens que por convicção.
- Estou a ver uma vela – diz o Chico que se tinha sentado sobre o mastro que acompanhava a ondulação das ondas.
- Gritai meus filhos, gritai… - diz o mestre.
Ao longe, o “Estrela d`Âncora” do Tio Morranga navegava-se sem pressa, as redes estavam perto, o vento estava manhoso e não havia que fiar. O Tó Malhão levantou-se, inclinou a cabeça para um e outro lado, subiu para o banco na tentativa de olhar mais longe.
- Desce daí rapaz, não vês que é perigoso da maneira que está o vento – diz-lhe o pai e mestre da embarcação.
- Estou a ouviu gritos – justifica o Tó.
- Não ouvi nada.
- Eu também não.
- Calai-vos e escutai. Vem daquele lado.
- Tio Morranga, eu também ouvi agora qualquer coisa – diz o Luís da Laparda
- Eu tambem já ouvi! Caça-me a escota que vamos virar para oeste, rápido, é alguém que está naufragado aí fora. Deus queira que cheguemos a tempo…
O Tó continuava à proa, ora debruçado sobre o testeiro, ora subindo ao banco mais próximo até distinguir a mancha escura do barco poveiro voltado.
A vela foi arreada, os remos empunhados por mãos rudes, dedos fortes que se fecharam sobre as empunhaduras com a força do desespero. Na água a tripulação do barco do Baba dava graças às divindades evocadas naquela hora de aflição. O Chico e o Tone da Justa seguravam o Fininho muito debilitado devido ao frio que a doença não repelia.
Depois de todos a salvo, passaram um cabo ao barco naufragado, fundearam-no para mais tarde o recuperarem. Chegaram rapidamente a terra e cada um tratou de ir mudar de roupa e tomar algo quente que afastasse o gelo que sentiam na carne e na alma.
Ao fim da tarde, o “Sempre em Frente” entrava no portinho a reboque de dois outros barcos que o tinham ido resgatar.
Dois dias depois já pescava novamente nos mares de Afife.

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