quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O soldado que não esqueceu (1ª parte)

O Ernesto virou-se lentamente e as molas do velho sofá rangeram. Aconchegou a manta e coçou repetidamente a barriga. Mais uma pulga madrugadora que se passeava entre o tufo cerrado de pêlos que lhe desciam pelo peito, numa mancha contínua até aos pés.
Seriam ainda umas cinco da manhã e o frio entrava por todas as fendas existentes. Pouco adiantara ter entalado jornais debaixo da janela e na porta, se é que se podia chamar porta àquelas tábuas desconchavadas que tapavam a entrada da barraca.
Como pertences, apenas a mochila surrada onde guardava umas calças de ganga, duas camisas e uma camisola de lã, tudo oferecido pelos voluntários da carrinha amarela. Roupa interior já não usava há muito, os pés entravam e saíam nus de dentro das velhas botas, que um dia tinha encontrado junto a um contentor de lixo. Alguém que já não precisava, tinha dado a oportunidade de um pobre as aproveitar.
No pequeno compartimento, o único mobiliário era o sofá de veludo, seboso e rasgado em vários sítios, uma mesa redonda de plástico branco e duas cadeiras a condizer, certamente “fanadas” de alguma esplanada.
As “necessidades” eram feitas entre os arbustos que cresciam livremente no terreno com vista para a Serra de Santa Justa, às portas de Valongo.
O Ernesto depois de ter pernoitado ao relento em muitos vãos de porta e debaixo da maioria das pontes das VCI, tinha arranjado aquele abrigo que lhe permitia suportar melhor o frio do mês de Novembro. Pelo menos não chovia dentro, o telhado de zinco ainda estava em bom estado.
Este homem baixo que a fome emagrecera, enrugado precocemente, não ultrapassava os cinquenta e poucos anos, apesar de aparentar mais alguns. Quem o visse diria que andava pelos sessenta anos ou mais.

Quando saiu da escola primária em Torre de Moncorvo, foi aprender o ofício de serralheiro para a oficina do Salvador, que lhe deu as primeiras luzes sobre a arte de bem trabalhar o ferro.
Dois anos depois, um primo afastado da mãe aceitou-o com aprendiz na Calandra do Bonfim, no Porto, onde alugou um quarto ao cimo da Rua de Santa Catarina. Uma vez por mês, metia-se no comboio que subia o Douro até Barca d`Alva e rumava a casa paterna de onde vinha carregado com chouriços, presunto e outras iguarias serranas, que complementavam as refeições tomadas no “Marinho”, uma casa de pasto no Largo dos Poveiros. Foi também no “Marinho” que conheceu a Rosa, uma sardenta que fazia a Rua de Santos Pousada e que o iniciou nas artes de alcova.
A vida foi correndo entre o trabalho, onde já tinha a confiança do patrão, as idas ao futebol ao domingo à tarde, as horas passadas com as raparigas habituais no “Marinho” e as jogatinas de sueca numa tasca do Bonjardim, mesmo por detrás da Estação da Trindade.

Quando foi chamado para a tropa assentou praça em Coimbra, fez a recruta e a escola de cabos, deram-lhe duas semanas de férias e de seguida embarcou rumo à Guiné, a bordo do Niassa. Os dias de férias gozou-os junto da mãe e da única irmã, mais velha que ele cinco anos e que tinha casado na terra com o Evaristo, um dos três carteiros lá da zona.
Corria o ano de 1971 e o que se sabia da Guiné é que uns terroristas nos queriam roubar as províncias ultramarinas, por isso era preciso combatê-los por todos os meios e a guerra estava quase ganha.
O Niassa demorou mais dois dias que o normal para chegar a Bissau, devido ao mal tempo que apanhou nas Canárias. Quando pôs os pés em terra firme, o cabo Ernesto da Silva Martins estava mais morto que vivo devido ao enjoo prolongado.
A sua companhia estacionou num quartel dos arredores de Bissau durante alguns dias, até chegarem as Berliet e os Unimog que os transportaram até Candamã junto à fronteira com a Guiné-Conacri.
O quartel não passava de um conjunto de barracões toscos e de uma parada, tudo rodeado por duas alturas de bidões metálicos de duzentos litros cheios de terra, rodeados, por fora e por dentro, de arame farpado.

O Ernesto procurou levar muito a sério as missões em que foi envolvido e dar aplicação ao treino que tivera na longínqua Serra da Lousã. Ouviu muitas vezes as balas a assobiar sobre a cabeça, mais de uma vez teve que cavar com as mãos abrigos improvisados para se furtar aos efeitos do bombardeamento por armas pesadas, que era suposto os terroristas não terem. Viu caírem camaradas de armas e a sua companhia foi das que mais baixas teve durante o ano de 72.
Ouvia na Emissora Nacional, em ondas curtas, a propaganda do regime e as crónicas de guerra, onde se anunciava que os terroristas estavam mal armados, esfomeados e não passavam de meia dúzia de desgraçados escondidos no mato.
Sabia agora que era tudo mentira, quem se escondia no mato por detrás de paliçadas e arame farpado era a tropa portuguesa, frequentemente emboscada quando saia em patrulha.
Perdeu a moção do tempo e dos actos bárbaros a que assistiu e nos quais participou, mudou de região, a situação estava cada vez pior. Havia zonas onde já não punham os pés, nem os helicópteros se aventuravam.

Quando regressou ao continente e foi desmobilizado, retomou o seu lugar na calandra e pouco depois conheceu a Luísa num baile do Grémio de Rio Tinto. Os pais dela tinham uma mercearia e a Luísa trabalhava de costura para uma modista. Namoraram durante alguns anos, o 25 de Abril tinha passado, alugaram casa e passaram a morar juntos, após casamento civil.
O Ernesto tornara-se uma pessoa reservada, embora sociável, que dedicava a vida ao trabalho e à família. Na calandra, o patrão tinha-lhe dado uma pequena cota de sociedade, os negócios corriam bem, ganhava-se muito dinheiro com as constantes subidas de preço da chapa metálica.
A família cresceu, veio primeiro o Luís Rafael e três anos depois nasceu o André, que era a cara chapada do pai.
Um dia souberam de um apartamento à venda na Travagem, pediram dinheiro ao banco e acabaram por comprá-lo, dando como entrada os mil e quinhentos contos resultantes da venda de umas propriedades, que lhe tinham tocado por morte da mãe.
Os filhos cresceram, a Luísa largou a modista que entretanto se tinha reformado e arranjou emprego numa fábrica de confecções em Ermesinde, onde rapidamente ascendeu a chefe de linha.
O dono da calandra, que ainda era seu parente afastado, cada vez ligava menos à oficina, deixando-lhe a responsabilidade dos clientes e da produção. Ele apenas tratava das papeladas e dos bancos, era raro aparecer durante a manhã, só de tarde e nem sempre.
Quando se divorciara andou uns tempos acabrunhado, mas depois dedicou-se à boa vida e eram frequentes os comentários dos operários que casualmente viam o patrão acompanhado de mulheres vistosas, com idade para serem suas filhas.
(continua)

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