sexta-feira, 13 de junho de 2008

O Abel da Chocalha


Não conheci pessoalmente o meu avô materno Abel Nascimento Brito, de sua graça. Quando eu nasci, já ele tinha falecido há cerca de 10 anos. Era pai de quatro raparigas, quatro manas, como eu carinhosamente lhes chamo, até porque uma delas é minha mãe. Teve um filho mais novo, o António, que morreu ainda criança.
O Abel era um senhor dotado de uma calma monástica, que nada o fazia enervar, que nada o apressava, característica que certamente herdou do seu pai Luís Brito, nascido criado e vivido em Segadães, às portas de Valença do Minho. Eu disse que nada o apressava, mas não é totalmente verdade, porque apenas umas saias tinham o condão de espevitar o pachorrento Abel.
O meu avô era conhecido pelo Abel da Chocalha, apelido que herdou da sogra do seu primeiro matrimónio Maria José Gandra, que curiosamente foi sua ama de leite. A Chocalha era de Gontinhães, mas por artes do acaso, foi ter a Segadães onde desempenhou a função de ama de leite do Abel, nascido em 1880 e do Manuel, seu irmão mais velho quatro ou cinco anos.
Esta senhora que era solteira, tinha uma filha de nome Felisbela Gandra, casada com um tal Pereira, do Amonde, que morreu poucos anos volvidos com tuberculose. Deste casamento já tinha nascido o Américo, que ficou órfão ainda catraio, mas que ganhou rapidamente uma madrasta, pois o Abel casou em segundas núpcias com a sua conterrânea Delfina Gomes.
Por essa época já o Abel Brito e a sua ex-sogra estavam estabelecidos em Gontinhães com uma pensão e loja que chamaram Pensão Âncora, mais tarde pensão Meira e actualmente hotel Meira, naquela que é hoje a Rua 5 de Outubro. Não sei se já assim se chamava nessa altura, pois a republica se já estava implantada, estava ainda muito verde.
Do casamento com a Delfina nasceram quatro filhas e um filho a um ritmo praticamente anual. Primeiro a Felisbela, a seguir a Arminda, depois a Maria José e ainda a Julieta. Finalmente o António, o benjamim dos pais e o querido das irmãs que tragicamente morre de doença com dez anos. Era da idade do nosso conterrâneo Sr. Durval Brito, que apesar do apelido, não tem connosco qualquer relacionamento familiar. Outro conterrâneo da mesma idade era o Sr. Luís Gomes, recentemente falecido em acidente de viação.
A filha mais velha, Felisbela casou com Simão Meira e abriram uma pensão na Praça da Republica, no chamado prédio da Assembleia. A Arminda casou em Valença com o António Gomes, seu primo legítimo, filho de um irmão da Delfina. A Maria José, minha mãe, casou com o Ribeiro, caixeiro-viajante e foi viver, embora por pouco tempo, para o Porto, regressando poucos anos depois a Vila Praia de Âncora. A Julieta casou com o Castilho, foi viver para o Porto e por lá ficou.
Mas a personagem principal desta história é o avô Abel, um bonacheirão que metia-se em negócios (mais ou menos da China) e que acabavam sempre por dar fiasco e prejuízo.
Uma vez convenceu o genro Ribeiro, meu saudoso pai, a fazer um negócio de marmelada. O Ribeiro dava o açúcar e o Abel arranjava os marmelos e enlatava a dita. É mesmo, não me enganei, era marmelada enlatada. O resultado foi montes de latas que ninguém comprava e que acabaram por ser abertas e o produto deitado aos porcos. Mas por estranho que pareça ou talvez não, nem os porcos quiseram a marmelada, que teve de ser enterrada no quintal. Muitos anos mais tarde, quando falávamos deste episódio na frente do meu pai, era vê-lo a sair “à francesa”, como se nada fosse com ele.
Outro negócio que correu mal foi uma importação de bicicletas que ele ia buscar a França na sua camioneta e com um intérprete às ordens, um sujeito de Viana que ele convenceu a acompanhá-lo. Naquela época uma viagem a França por estrada, não se fazia com a facilidade de hoje e o Abel gastou mais na aventura, que o valor das bicicletas. Mais uma vez para se ver livre da mercadoria teve de vender com prejuízo e ouvir as recriminações da minha avó, que tremia cada vez que o Abel dizia que andava a matutar num negócio.
Outra coisa que punha a avó em polvorosa eram as repetidas aventuras amorosas do marido. Nunca lhe perdoou ter o facto de uma das amantes, a Felicidade, uma viúva ainda fresca, como dizemos hoje ”que ainda rompia meias solas”, ter ido morar a pouco mais de cinquenta metros da sua casa, mais ou menos onde hoje é a ourivesaria do Catarino.
Outra das suas “amigas”, a Ester da Pelada quando teve um filho, o José Luís que é o mais novo de três, logo disseram que seria filho do Abel. Não há certezas, naquele tempo não se sabia nada sobre ADN, mas outro dos suspeitos da paternidade, seria o Toninho Tinta Fina, que também por lá andava.
O Abel tinha um parceiro que fisicamente ainda era mais avantajado que ele. Pois, eu ainda não vos descrevi o Abel da Chocalha, que era um homenzarrão que embora não fosse muito alto, era forte e barrigudo. O Fontes, o tal parceiro de que vos falei, ainda era mais corpulento, pois media perto de dois metros e acompanhava o Abel, nas suas palavras, para "fazer de contrapeso" na camioneta.
Este Fontes foi faroleiro na Ínsua durante muitos anos, morava mesmo em frente à pensão Âncora, onde hoje é o Hotel Meira. Eram bons amigos e davam grandes passeatas na camioneta do Abel, na companhia dos netos que foram surgindo dos casamentos das filhas. Aqueles que conheceram o avô foram os meus primos Jorge e Zé Meira e as minhas irmãs Julieta e Delfina, conhecidas por Mimi e Fininha respectivamente. O Jorge e a Mimi eram uns vivaços; o Zé e a Fininha, pelo contrário eram muito tranquilos. Muitas vezes ouvi os meus pais dizerem que o neto mais parecido com o Abel da Chocalha era o Zé Meira, não só fisicamente, mas no carácter e na imaginação. O Zé, que era meu padrinho, talvez dê um dia destes um pequeno conto, vamos a ver!
A pachorra do Abel era tanta que quando encostado à parede em frente à sua casa, onde estão as alminhas, e as pombas no beiral do telhado lhe sujavam a cabeça, em vez de se desviar, dizia para a Maria Ninom, mulher do Sr. Barata:
- Oh Maria, empresta-me a boina, que as pombas estão a cagar-me na cabeça.
O avô Abel alem de bom cozinheiro, era também um óptimo fotógrafo, que até possuía câmara escura para revelação das suas fotos. Infelizmente apenas duas ou três fotos da sua autoria chegaram à minha posse e desconheço se alguns dos meus primos possuem mais fotografias tiradas por ele. Tenho bastantes fotos antigas, mas são de estúdio ou tiradas pelo meu pai, já na década de trinta.
Após a morte da minha avó Delfina, o Abel sossegou e dizem que até se deixou de aventuras amorosas. Não sei se isso foi totalmente verdade, mas que ele sentiu muito a falta da esposa, não tenho dúvidas. Ele próprio o reconheceu, mais que uma vez.
Apenas lhe sobreviveu seis anos, sendo vitima dum acidente vascular cerebral, que o deixou totalmente incapacitado, para se repetir poucas semanas depois, causando-lhe a morte.

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