O dia nascera soalheiro, como seria de esperar de um dia
primaveril em que os melros e pardais se afadigam na construção dos ninhos e as
plantas vicejam pelas terras férteis e húmidas dos vales e das encostas.
Estávamos no dia 26 de Abril de 1957, em Vila Praia de
Âncora, pacata vila e porta de entrada do Vale do Âncora, herdeira legítima da
velha Gontinhães. Era sexta-feira e em nada se distinguia dos demais dias da
semana. No Portinho, as masseiras varavam na areia suavemente empurradas pelo impulso
dos remos. Em terra, as mulheres esperavam o peixe para logo abalarem terra
dentro, na venda que irá render uns magros tostões a repartir pela companha
Na serração, à força do vapor da caldeira, máquinas de
dentes traiçoeiros, transformavam troncos em tábuas e estas em caixas, depois
de aplicados os grampos metálicos. Ali ao lado, na estação, os comboios
chegavam e partiam entre silvos e baforadas de fumo e vapor; as agulhas viravam
ao ritmo da manobra, passageiros e mercadorias entabulavam um bailado, ora para
cá, ora para lá. Da Sandia e da Cruz Velha regressavam os rangentes carros de
bois, elementos estruturantes na economia de qualquer casa de lavoura,
conduzidos à soga por moçoilas de saia riscada e lenço garrido à cabeça.
Da fábrica do leite, assim chamada pelo povo à fábrica de
lacticínios, chegava o carro com as caixas de manteiga e queijo, uma rotina
bissemanal para despachar as encomendas dos clientes para o Porto e Lisboa.
Dizia-se que os cavalos, conhecedores dos hábitos do cocheiro, dispensavam
ordens para parar à porta de certas tascas.
De repente o sossego é interrompido pelo silvo longo e
arrepiante de uma sirene.
- É dos bombeiros – gritam um número indefinido de
gargantas.
As pessoas olham umas para as outras numa interrogação muda.
Depois põe os olhos no ar à procura de um vestígio de fumo. As narinas abrem-se
na busca de um odor a queimado ali perto.
- Não, não é na serração, Graças a Deus!
- Será na do Pereira? – Alguém se lembrou da outra serração
existente no extremo oposto da Vila.
Espicaçados pela curiosidade muitos deixaram os seus
afazeres e arrastando os tamancos partiam em direcção ao quartel dos Bombeiros.
Queriam assistir à azáfama que precedia a saída dos carros da “bomba”. Por eles
passavam como lebres os bombeiros em corrida desenfreada, era sempre uma
vergonha ser dos últimos a perfilar aguardando ordens do chefe.
O Silvino Perruco e o Zé do Toneca trabalhavam na serração e
mal ouviram a sirene, largaram a correr em direcção à entrada das instalações.
Encostadas à parede do escritório estavam as bicicletas dos diversos
trabalhadores.
- Agarra essa do Zé Nita que é mais pequena! – Grita o Zé do
Toneca para o companheiro, lembrando-se que este era de baixa estatura.
Foram os primeiros a chegar ao quartel. Os outros bombeiros
não tardariam; o Armando Ferreira, o Velhinho, o Balau, o Camilo… Agora chega o
Zèzinho, aquele chefe de passo tranquilo, poupado nas palavras, com respostas
concisas às interrogações dos seus homens.
- Barata, Armando, Silvino, Balau, Toneca, Camilo e…
Joaquim! Avancem para o pronto-socorro.
O dolman, o cinturão e o capacete, transformaram aqueles
vulgares e pachorrentos cidadãos em seres determinados a combater as chamas,
para lá dos medos e das hesitações quando se tratava de salvar vidas.
O pronto-socorro Bedford tinha sido inaugurado em 1954 e era
o orgulho da Corporação. Todos os bombeiros ansiavam integrar a equipa que
arrancava nesta viatura para os incêndios.
O motor de seis cilindros a gasolina ronronava baixinho
dentro da garagem. O Barata engatou a primeira e aliviou a embraiagem. O carro
deu salto em frente levando em debandada a multidão que se acotovelava na
frente ao quartel em busca de informações. Mal os homens se instalaram no
carro, outro solavanco marcou o arranque a toda a brida, sirene ao vento a
anunciar a urgência e a necessidade do caminho livre até Caminha, onde ardia o
Convento de Santo António.
A meia encosta do Monte de Santo Antão, ao lado do cemitério
de Caminha, este convento albergava uma vasta comunidade de freiras, as Irmãs
Franciscanas Hospitaleiras, que já por lá estavam desde 1898. Pelo meio,
escorraçadas pelo anticlericalismo da primeira República, aconteceu uma saída
forçada para a vila galega de Tuy e o regresso a Caminha ainda durante os anos
vinte do século passado.
O Barata era um condutor destemido e atravessou a Rua dos
Pescadores em Caminha, a uma velocidade alucinante, roçando as paredes de tão
estreita artéria, desviando-se de carros e carroças como por magia. Os seus
companheiros sabiam bem o que ele dizia nestes momentos de emergência “Agarrem-se que isto é para andar”; e
todos se seguravam o melhor que podiam, entre os equipamentos de combate a
incêndio que enchiam a Bedford.
A meio da Corredoura ultrapassaram um dos carros da
Corporação de Caminha e num instante já saltavam em terra para iniciar o
combate, que as labaredas já lambiam a fachada do convento. Os lances de escada
estavam montados, a bomba a funcionar e o Balau carregava a mangueira escada
acima, o Silvino como primeira ajuda, alguns degraus mais abaixo.
- Água p´ra agulheta número dois! – pede o Balau com a voz
fanhosa.
- Eiii… vocês, saiam daí! Tem de ir lá para trás – ordena um
indivíduo de pêra que todos reconheceram, era o chefe Lino dos Voluntários de
Caminha e que acabara de saltar do carro recem chegado.
- Mas aqui é que precisamos de atacar – contrapõe o Armando
Ferreira, o mais graduado dos Bombeiros Ancorenses.
- Quem está ao comando sou eu… e aqui fica por nossa conta.
Vocês vão defender a capela.
- Vocês não vão conseguir aguentar isto – ainda retorquiu o
Armando Ferreira, homem experiente e conhecedor das manhas e da violência que
as chamas podem ter se forem bem alimentadas.
Contrariados, porém disciplinados, recolheram as mangueiras,
desmontaram as escadas e iniciaram o combate no ponto que lhes foi atribuído.
Ao longo da tarde foram chegando outros bombeiros, de
Cerveira, Viana e até os municipais do Porto foram convocados. A população não
se fez rogada e uma verdadeira cadeia humana permitiu salvar muitos pertences
do convento.
Junto à capela, depois de terem posto em funcionamento a moto-bomba,
a água sugada do tanque era despejada pelas agulhetas de forma a conter as
chamas que teimavam em aproximar-se da capela.
- Água p’ra agulheta número dois – repetiu o Balau.
- … E p’ra número um, também – respondeu-lhe o Zé do Toneca,
enquanto Barata manobrava as alavancas.
Por todo o lado os longos hábitos das freiras esvoaçavam,
como um exército de formigas, ora carregando haveres, ora matando a fome e a
sede aos combatentes, sob o olhar diligente da madre que tinha uma serrada pronúncia
italiana.
Durou toda a noite este combate desigual, onde homens
cansados viam as chamas inexoravelmente apoderar-se das memórias de uma
comunidade. Pela alvorada, quando foi dado por dominado, pouco mais restava do
convento que umas paredes enegrecidas e montes de entulho fumegante… além da
capela que escapara incólume.
Como prova de confiança e porque dispunham da melhor moto-bomba,
o comandante dos Municipais do Porto, que assumira o comando das operações,
encarregou os Bombeiros Ancorenses de coordenar o rescaldo, alimentando as
mangueiras de outras Corporações.
Regressaram ao quartel a meio da tarde, vinte e quatro horas
após terem sido chamados pelo toque da sirene, silenciosos, exaustos do
esforço, desanimados por não terem sido capazes de derrotar o fogo, mas cientes
do dever cumprido, briosos de terem contribuído para que a Capela do Convento não
fosse consumida pelas chamas e para o bom nome dos Bombeiros Voluntários de
Vila Praia de Âncora.