domingo, 31 de dezembro de 2017

Morte na Academia

Coçou a orelha direita e deixou-se ficar encostado à ombreira da porta que dava para o longo corredor. O inspector Maurício seguia com olhar as idas e vindas dos elementos da brigada técnica que recolhiam os vestígios possíveis.
- Raio de sítio para um gajo esticar o pernil – observa o Cabral espreitando para dentro da sala – Encontraram alguma coisa?
- Não… e tu?
- É pá, cambada de murcões… ninguém sabe nada. Não viram o gajo chegar e a sala devia estar fechada.
- Quem é que tem a chave?
- Deve haver uma dúzia de chaves pelo menos. Desde as gajas da limpeza, aos professores, o segurança… sei lá, são mais que as mães!
- Vais apurar isso de seguida e aproveitar para dizer-lhes que não saem daqui até novas ordens. Temos de os começar a interrogar em seguida… O Ramos deve estar aí a chegar e vêm um ou dois estagiários para ajudar.
- Ajudar ou estorvar, carago! Sabes bem…
- Deixa-te de coisas, que tu também foste maçarico… Vai lá saber da questão das chaves e diz ao segurança que venha ter aqui comigo. – Atalha o inspector da Judiciária.
Dentro da sala um dos técnicos esvaziava os bolsos ao cadáver que teve de ser virado pois fora encontrado de bruços. Uma grande mancha de sangue tinha ensopado a camisa de flanela na zona do peito.
- Passa-me a carteira – pede o Inspector enquanto enfiava umas luvas de látex.
A carteira preta era fina, vulgar, em material sintético e fechada com velcro. No interior a carta de condução, o bilhete de identidade, um talão de compras de uma conhecida loja de material electrónico e um cartão multibanco. Indiferente, voltou a entregar a carteira que foi fazer companhia aos outros objectos retirados do cadáver e acondicionados num saco de plástico transparente.
- Foi o senhor que me mandou chamar? – pergunta um homem fardado no meio do corredor.
- Aaah… o segurança! Sim, quero perguntar-lhe umas coisas. Não é um interrogatório formal, mas preciso que me elucide sobre o ambiente aqui na escola.
-Sim senhor, estou à sua disposição.
- Há por aqui algum sítio onde se pode falar…
- Uma das outras salas ou então temos lá ao fundo uma pequena sala de convívio usada pelos funcionários.
- É longe?
- É ali ao fundo, à esquerda e não deve estar lá ninguém a esta hora.
- Então vamos lá.
O segurança percorreu o corredor um passo à frente do inspector que aproveitou para melhor o apreciar. Calças e blusão da farda cinzentos, um crachá brilhante ao peito com a insígnia da empresa. Cerca de um metro e oitenta, crânio rapado a disfarçar uma calvície precoce, não deveria ultrapassar os trinta e cinco anos.
- Então diga-me lá, o homem era presidente da associação de estudantes?
- Exactamente.
- Mas ele já não é novo!
- Pois não, ele já está na escola há muitos anos.
- Estou a ver, não ligava nada aos estudos e a família…
- Não é isso – interrompe o segurança – ele já está a fazer o terceiro curso.
- Não tinha mais nada que fazer?
- Ele tem uma empresa de alumínios… Acho que tem um sócio. Não sei bem.
- Sabe o nome da empresa?
- Não sei o nome da firma, mas ele é de Santa Marta.
- De Penaguião? Tão longe?
- Não, senhor inspector. Estou a referir-me a Santa Marta de Portuzelo. Aqui perto na estrada para Ponte de Lima.
- E da chave da sala que me diz?
- Todos os professores que dão aulas nessa sala têm a chave. Eu tenho outra na portaria e uma no chaveiro central.
- E o pessoal de limpeza?
- É verdade, já me esquecia.
- Hoje de manhã o falecido… tenho aqui anotado o nome… Exactamente, Jorge Gonçalves! O que eu quero saber é se o viu entrar?
- Não senhor, pela porta principal não passou.
- Tem a certeza?
- Absoluta, absoluta… não!
- Porquê?
- Porque houve um momento que fui ao WC e mais tarde fui ao gabinete do Sr. Ricardo dar-lhe um recado.
- Onde?
- Na secretaria, foram só uns segundos, mas podia muito bem ter entrado nesse momento e eu não o ter visto.
- Tem alguma ideia do que podia estar a fazer na escola logo de manhã?
- Que saiba não havia nenhuma reunião agendada e não faço ideia o que o levou até àquela sala.
- O Jorge Gonçalves tinha lá aulas habitualmente?
- Ele é de desporto que só usam as salas novas.
- Explique-me isso que não estou a perceber.
- Ele é aluno… huum… era aluno do curso de desporto, que só tem aulas teóricas na parte nova da escola. Posso levá-lo lá se quiser…
- Mais tarde. Quer dizer que o crime foi cometido numa das salas antigas.
- Exactamente, senhor inspector.
- Sabe se ele tinha algum problema com alguém? Um colega ou professor…
- Não lhe sei dizer. Repare, eu pouco lido com os alunos, apesar de os ver passar todos os dias à minha frente ao entrarem e à saída. Da maior parte, nem sei os nomes, nem os cursos. Apenas os conheço de vista…
- Mas este era bem conhecido.
- Claro, já fazia parte da mobília, como se costuma dizer. Além disso passava muito tempo na associação…
- Que tem instalações na escola…
- Exactamente e bem perto daqui, por sinal.
- Sim?
- Por trás deste espaço há umas escadas que levam às duas salas da associação de estudantes.
- E já foi lá alguém ver se estava tudo normal?
- Quando chamamos a polícia fui lá com um agente e a porta está fechada.
- Entraram?
- Não senhor…
- Tem as chaves dessa porta?
- Tenho… quero dizer, não! Estão na portaria.
- Então vá buscá-las para darmos uma vista de olhos.
Enquanto aguardava, o inspector Maurício tirou do bolso a caixa das cigarrilhas e meteu uma entre os lábios. Percorreu o largo corredor para lá e para cá distraidamente, olhando para o campo de jogos relvado que ocupava todo o espaço traseiro do recinto escola. Voltou a guardar a cigarrilha enquanto reflectia sobre o que levaria um aluno, que era também presidente da associação de estudantes a comparecer às 9 da manhã de um dia de férias numa sala de aulas. Sobre a causa da morte não subsistiam grandes dúvidas, pois eram visíveis dois golpes profundos no lado esquerdo do peito, apesar de não terem ainda encontrado a arma do crime. Uma faca bastante fina ou um estilete tinha-lhe dito o técnico que examinara o cadáver.
- Preciso de um café – resmungou e dirigiu-se para o bar quando viu o segurança avançar na sua direcção. Deu meia volta e encaminhou-se para as escadas estreitas que levavam a sede da associação de estudantes.
Quando o segurança abriu a porta e viram uma sala que se tinha como iluminação natural a luz que se esgueirava pelos acanhados postigos posicionados ao nível do jardim. A sede estava a precisar de uma boa arrumação pensou o inspector ao avançar para a sala do fundo, um misto de sala de reuniões e gabinete da direcção. Parou à porta ao distinguir um vulto caído sobre a puída carpete.
- Outro…
- Outro, quê, senhor inspector?
- Outro corpo, carago… Esta merda vai-nos dar que fazer… Vá lá acima dizer a um dos técnicos que venha cá. Eu fico por aqui.
Pegou no telemóvel, ligou para o inspector chefe Peres a comunicar a descoberta e a pedir reforços perante o avolumar de trabalho que iria ter pela frente.
- Tenha paciência mas de momento não tenho ninguém para o ir ajudar – dizia-lhe o chefe - Vá-se desenrascando com o seu pessoal, mais logo, quando tiver gente livre envio-os aí para Viana… Antes que me esqueça, tenha cuidado…
- Com a imprensa! Já sei, chefe, já sei!
- Ponha esses calões da PSP a trabalhar! Estão mal habituados, só a passar multas e com o cu alapado na cadeira.
O inspector Maurício sorriu ao pensar que o Peres passara os últimos quatro anos com o “cu alapado”, como ele dizia, desde que fora promovido a inspector chefe.
- Se um dia lá chegar, até fico apanhado só de pensar que tenho de estar o tempo todo a folhear relatórios que nem para limpar o cu servem – dizia o inspector Maurício aos colegas, quando o tema de conversa caía nas sempre polémicas promoções e nos louvores atribuídos.
O cadáver encontrado na sala da associação foi rapidamente identificado como sendo de um aluno de gestão artística, que também pertencia à direcção da associação de estudantes.
Os agentes Ramos e Cabral tinham-se instalado em duas salas de aulas e começaram os interrogatórios sob um coro de protestos dos professores, que se viam impedidos de sair das instalações. Os dois estagiários desdobravam-se em múltiplas diligências, mais parecendo moços de recados que agentes de investigação criminal.
O inspector Maurício tivera uma entrevista com a directora da escola e o director de serviços académicos mas tinha sido inconclusiva. Ninguém tinha ideia do que tinha acontecido. A esperança residia nos vestígios que os técnicos estavam a recolher, mas todos tinham consciência que estavam num espaço utilizado diariamente por centenas de alunos, professores e funcionários. Nem queria imaginar a quantidade de impressões digitais que os técnicos de dactiloscopia teriam de analisar.
Depois de engolir no bar da escola uma sanduíche de fiambre e um sumo, convocou a sua equipa para um pequeno brienfing que teve a particularidade de se realizar no exterior junto à entrada, de forma a puder saborear a cigarrilha que passara a manhã a sair e a entrar na caixa.
- Estes gajos estão a procurar proteger-se uns aos outros.
- Ó Ramos, isso nem parece teu. Então achas que nos iriam dar pistas que os pudessem incriminar.
- Bem, afinal o que apuraram nos interrogatórios que efectuaram? – Pergunta o Maurício.
- Ninguém os viu entrar na escola, não foi Cabral?
- Pois foi… Mas os gajos foram assassinados há poucas horas… Que é que disse o Dr. Pimenta?
- O exame preliminar aponta o momento do óbito para um intervalo entre as sete e as oito da manhã… e a família deles confirma que passaram a noite em casa. A PSP já encontrou os seus automóveis?
- Ainda não senhor inspector – diz um dos estagiários – mas o mais novo… aquele que foi encontrado na cave da associação, tem o carro estacionado à porta de casa.
- Será que o outro o foi buscar?
- Falei com a irmã dele e ela ouviu-o sair de casa, mas não se apercebeu do barulho de algum automóvel a arrancar.
- Continuem com os interrogatórios que eu vou falar com o comissário da polícia. Vocês – virando-se para os estagiários - vão passar a pente fino as imediações da escola. Já vi uma estação dos correios e do outro lado há um bairro. Deve haver algum café ou mercearias… Interroguem os comerciantes e se encontrarem algo relacionado com o caso, chamem de imediato o Ramos ou o Cabral. Entendido?


- Resumindo, andamos às aranhas… concluiu o inspector chefe Peres, recostando-se na cadeira.
- Às aranhas não andamos, mas também não temos muito a que nos agarrar… – responde o inspector Maurício, sabendo que não adianta nada argumentar com o chefe.
- Bem… recebi um telefonema relacionado com o caso que tem de ser levado em consideração… Assunto sob reserva…
- Mau…
- Temos os Serviços de Informação metidos no assunto.
- Qual deles? O SIS?
- Exactamente. O tipo da associação de estudantes era agente deles.
- O presidente?
- Sim – Admite o inspector-chefe soltando um longo suspiro.
- E o outro?
- Não tinha qualquer ligação com essa gente.
- Então vamos abandonar a investigação?
- Não, eles estão igualmente preocupados, porque não encontram ligação com as tarefas desse agente… pelo que percebi ele nem sequer tinha nada entre mãos, não tinha qualquer dossier à sua responsabilidade.
- Limitava-se a vigiar..
- A coçá-los, diz muito bem… e nós a descontar para esses inúteis… Agora que pretende fazer?
- Regresso a Viana após falar com o dr. Pimenta e com alguém do laboratório.
- Mantenha-me informado e tenha cuidado com…
- Os jornalistas! – Rematou o inspector Maurício, que conhecia de ginjeira o discurso do chefe.
- Isto é pólvora, Maurício! Se cai nas malhas desses gajos, pfff…

 Reunidos à volta da mesa onde tomavam o pequeno-almoço, os investigadores ouviam o resumo feito pelo inspector Maurício.
- O patologista diz que foi com uma faca de escalar peixe ou algo semelhante o que nos abre outras possibilidades; podemos estar a lidar com um pescador ou pelo menos alguém que tem acesso a esse tipo de facas, em casa ou no trabalho…
- Ó pá… e o motivo carago?... não temos um motivo que justifique estes assassinatos – enerva-se o Cabral – A não ser que fossem paneleiros e viessem…
- Deixa-te disso! Já investigamos por esse lado e nada. É provável que hoje ou amanhã tenhamos a listagem com os telefonemas deles.
Toca um telemóvel, o inspector Maurício olha para o visor, franze o sobrolho, atende com um “sim” expectante.
- O próprio, não incomoda nada… diga comissário.
- …
- Vou imediatamente… Isso é para norte?
- …
- Quinze quilómetros, Sereia da Gelfa… logo a seguir, à esquerda – repete o homem da Judiciária, desligando o telefone.
- Encontraram o automóvel do Jorge Gonçalves abandonado, junto ao mar, na praia da Gelfa.
- Eu sei onde fica – diz um dos estagiários – é uma zona isolada, tem um pequeno castelo e um sanatório para malucos, mas acho que está fechado.
- Eu vou lá ver, vocês continuam com os trabalhos em curso.

Estacionou quando o agente da GNR o mandou parar e dirigiu-se para o bosque de austrálias que invadiam as dunas litorais. Para trás ficara o Forte do Cão, umas ruínas do século dezassete a precisarem de intervenção sempre adiada pela razão tão velha como a nacionalidade, a falta de verbas. Ao longe avistava-se uma povoação subindo a encosta do monte e uma imensa língua de areia dourada, a praia de Âncora.
Uma área tinha sido delimitada com fita plástica multicolor e vários agentes da GNR observavam os trabalhos de dois colegas do núcleo de investigação criminal. Depois de feitas as apresentações informaram-no que o automóvel fora encontrado aberto, com as chaves na ignição e sido alvo de limpeza de impressões digitais. Volante, alavanca de velocidades, manípulos de portas e outros pontos tinham sido limpos antes de o abandonarem, o que revelava a precaução consciente dos criminosos. Era ponto assente que estavam a lidar com mais de uma pessoa porque o lado direito do carro também tinha sido limpo. Dois, pelo menos, provavelmente três, porque alguém os deve ter vindo recolher àquele ponto ermo da Praia da Gelfa.
- Já vem a caminho um reboque para levar o automóvel ao laboratório. Façam-me o favor de verificar nas imediações se há algo de interesse. – pediu o inspector Maurício.
- Já demos uma volta por aí, mas vamos repetir com mais calma – informa o sargento da GNR – Amílcar e Pereira vão com o cabo Presa para o norte, por ali; os outros vão para aquele lado. Atenção, qualquer indício deve ser sinalizado…
- Já agora… - interrompe o inspector – prestem atenção a alguma situação de solo revolvido. Deve estar tudo coberto de folhas secas, não é fácil distinguir, mas pode ser importante.

Entre duas garfadas de esparguete atende o telemóvel, a Rosa saía de serviço no Hospital de S. João à meia-noite e não lhe agradava passar a noite sozinha. Não teria outro remédio…
- Sei lá, isto está complicado. Talvez amanhã… Tenho uma chamada da directoria em espera, desculpa… um beijo.
Do laboratório informaram-no que o automóvel encontrado poucos indícios revelava, mas um dos cães treinado na detecção de explosivos sinalizou claramente um transporte recente na bagageira.
- Andaram a transportar explosivos no carro.
- Encontraram vestígios? – Perguntou o Ramos sem levantar o olhar da costeleta de novilho que lhe enchia o prato.
- Foi o cão que detectou o cheiro.
- Dois cabrões esticados! Um deles era bufo na escola! Agora um carro que transporta explosivos… só nos falta dar de caras com uns gajos da ETA – resmunga o Cabral com a habitual linguagem de calão da Ribeira, mais propriamente da Cantareira.
- Já pensei nisso e temos que abordar a caso também por esse prisma, mas agora vamos apanhar com o SIS em cima… de certeza. O chefe já lhes deve ter telefonado.
- Então amanhã temos esses maricões a meter o nariz nos nossos cus!
- Tenho de ir ver o e-mail que o Dr. Pimenta me enviou com os dados preliminares da perícia ao automóvel. Aguentem aqui, vou ao quarto ligar o portátil e já venho.

O relatório revelou-se pouco esclarecedor. Na bagageira, onde o cão tinha detectado o odor de explosivos foram encontrados alguns grãos de areia grosseira e terra com elevados níveis de azoto.
- Provavelmente puseram um plástico a cobrir o fundo do carro e ao retirarem-no caiu um pouco de terra. Eles estão a fazer análises comparativas para ver se detectam a região de origem.
- Inspector – começa um dos estagiários, algo acanhado – ocorreu-me uma ideia…
- Diga, diga…
- Azoto é um fertilizante, um adubo e há zonas onde misturam areia na terra para a tomar mais macia, melhor, menos compacta e mais apropriada para certas culturas.
- Está a falar-nos de terrenos agrícolas?
- Humm… Exactamente, inspector. Estou a falar de terrenos de cultura intensiva. Possivelmente estufas…
- Onde?
- Talvez na zona da Póvoa de Varzim.
- Porquê na Póvoa? Pode ser noutro lado qualquer!
- Poder, pode… Mas na zona da Póvoa é vulgar misturar areia grossa na terra e no relatório falam de “areia grossa”. Mais, na Póvoa produzem hortícolas que precisam de muito azoto para se desenvolver. Não fala de níveis elevados de outros fertilizantes, apenas azoto.
- Bem pensado, vale a pena investigar.
- É pá onde é que aprendeste isso da agricultura? – Pergunta o Ramos intrigado.
- Os meus pais são comerciantes, mas os meus tios e os meus avós são agricultores… na Apúlia.
- Já que tens ligações à zona e ao meio vais auxiliar o Ramos a averiguar se há alguma conexão entre as vítimas e a zona da Póvoa.

- Sente-se e conte-me como é que arrumou o caso de Viana – convidou o inspector chefe, fechando a pasta que tinha à sua frente.
- Um caso complexo. Nem faz ideia das voltas que aquilo levou… Quem diria!
- Faça-me um resumo. Os pormenores ficam para o relatório.
- A chave estava nos grãos de areia e terra encontrados na mala do carro. Um dos nossos estagiários estabeleceu ligação com a zona da Póvoa de Varzim que coincidia com a morada da namorada do Jorge Guimarães e apurou-se que ela possuía várias estufas em A-Ver-O-Mar, não sei se sabe onde…
-Eu sei, continue!
- Ao princípio refugiou-se na choradeira do costume, mas quando recolhemos uma amostra da terra das estufas, falamos dos explosivos e de levar lá o cão para farejar… abriu-se toda! Atirou com as culpas para o namorado falecido, que a convencera a enterrar uns bidões plásticos, que de início ela pensara que era droga, mas que ele lhe mostrara que tinham apenas explosivos para serem usados pelos pescadores das traineiras. Algo inofensivo, no dizer dela.
- Para a pesca da sardinha?
- Sim… Principalmente para a sardinha. Parece-me que também se usa para outros peixes, desde que estejam em cardume. Fazem um cerco com as redes, atiram o explosivo lá para o meio e o peixe ou morre na explosão ou foge e vai ao encontro da rede. Mas eu de pesca… pouco sei. O que sabemos agora é que o tipo da associação de estudantes alem de ser agente do SIS, contrabandeava explosivos que comprava numa empresa da Póvoa de Lanhoso. Também já os entalamos, porque aquilo era uma vigarice pegada… Parecia um supermercado de material explosivo. Amonite, gelamonite, goma2, havia de tudo! Continuando… Depois enterrava o material nas estufas da namorada, tudo acondicionado dentro de uns bidões plásticos herméticos e vendia a retalho a alguns mestres de traineiras de Viana, da Póvoa e principalmente de espanhóis de Vigo e de outros portos da Galiza. O problema é que o tipo além de vender ainda quis fazer chantagem com um dos armadores, um tal Gallardo de Pontevedra, quando se apercebeu que o tipo revendia parte do material a outros e que acabavam por se perder não se sabe bem onde.
- País Basco? – Pergunta o inspector Chefe Peres.
- Não sabemos… É possível. O Jorge Gonçalves queria os contactos do Gallardo para fazer directamente o negócio ou ameaçava-o acusar perante a polícia espanhola de fornecedor dos terroristas.
- Que filho da mãe…
- O que ele não sabia é que o Gallardo é cunhado de um professor da escola e lhe montou uma armadilha ao marcar…
- O professor? – Interrompe o inspector chefe Peres.
- Bem… agora atiram as culpas um para o outro. O mais provável é que o professor soubesse que era uma armadilha, mas provavelmente pensou que o cunhado apenas queria meter um susto aos dois rapazes. Foi o professor que abriu uma porta de emergência nas traseiras, perto da sede da associação de estudantes, ao espanhol e mais tarde aos outros dois que foram habilmente separados e assassinados.
- Só não percebo porque é que o outro rapaz da associação foi ao tal encontro, se efectivamente não tinha qualquer participação no negócio dos explosivos.
- O Jorge Gonçalves levou o colega da Associação por segurança. Devia pressentir que o Gallardo era perigoso. Está detido em Pontevedra e o juiz de instrução já emitiu o respectivo pedido de extradição.
- E como descobriram o professor?

- Pelas impressões digitais deixadas na barra de abertura da porta de emergência. O normal seria encontrar impressões do pessoal auxiliar e dos seguranças, não de um professor. A partir do momento que detectamos o relacionamento familiar com o Gallardo foi simples pôr o melro a cantar. Por algum motivo ele era professor de música…

domingo, 22 de junho de 2014

Água para a agulheta número dois

O dia nascera soalheiro, como seria de esperar de um dia primaveril em que os melros e pardais se afadigam na construção dos ninhos e as plantas vicejam pelas terras férteis e húmidas dos vales e das encostas.
Estávamos no dia 26 de Abril de 1957, em Vila Praia de Âncora, pacata vila e porta de entrada do Vale do Âncora, herdeira legítima da velha Gontinhães. Era sexta-feira e em nada se distinguia dos demais dias da semana. No Portinho, as masseiras varavam na areia suavemente empurradas pelo impulso dos remos. Em terra, as mulheres esperavam o peixe para logo abalarem terra dentro, na venda que irá render uns magros tostões a repartir pela companha
Na serração, à força do vapor da caldeira, máquinas de dentes traiçoeiros, transformavam troncos em tábuas e estas em caixas, depois de aplicados os grampos metálicos. Ali ao lado, na estação, os comboios chegavam e partiam entre silvos e baforadas de fumo e vapor; as agulhas viravam ao ritmo da manobra, passageiros e mercadorias entabulavam um bailado, ora para cá, ora para lá. Da Sandia e da Cruz Velha regressavam os rangentes carros de bois, elementos estruturantes na economia de qualquer casa de lavoura, conduzidos à soga por moçoilas de saia riscada e lenço garrido à cabeça.
Da fábrica do leite, assim chamada pelo povo à fábrica de lacticínios, chegava o carro com as caixas de manteiga e queijo, uma rotina bissemanal para despachar as encomendas dos clientes para o Porto e Lisboa. Dizia-se que os cavalos, conhecedores dos hábitos do cocheiro, dispensavam ordens para parar à porta de certas tascas.
De repente o sossego é interrompido pelo silvo longo e arrepiante de uma sirene.
- É dos bombeiros – gritam um número indefinido de gargantas.
As pessoas olham umas para as outras numa interrogação muda. Depois põe os olhos no ar à procura de um vestígio de fumo. As narinas abrem-se na busca de um odor a queimado ali perto.
- Não, não é na serração, Graças a Deus!
- Será na do Pereira? – Alguém se lembrou da outra serração existente no extremo oposto da Vila.
Espicaçados pela curiosidade muitos deixaram os seus afazeres e arrastando os tamancos partiam em direcção ao quartel dos Bombeiros. Queriam assistir à azáfama que precedia a saída dos carros da “bomba”. Por eles passavam como lebres os bombeiros em corrida desenfreada, era sempre uma vergonha ser dos últimos a perfilar aguardando ordens do chefe.
O Silvino Perruco e o Zé do Toneca trabalhavam na serração e mal ouviram a sirene, largaram a correr em direcção à entrada das instalações. Encostadas à parede do escritório estavam as bicicletas dos diversos trabalhadores.
- Agarra essa do Zé Nita que é mais pequena! – Grita o Zé do Toneca para o companheiro, lembrando-se que este era de baixa estatura.
Foram os primeiros a chegar ao quartel. Os outros bombeiros não tardariam; o Armando Ferreira, o Velhinho, o Balau, o Camilo… Agora chega o Zèzinho, aquele chefe de passo tranquilo, poupado nas palavras, com respostas concisas às interrogações dos seus homens.
- Barata, Armando, Silvino, Balau, Toneca, Camilo e… Joaquim! Avancem para o pronto-socorro.
O dolman, o cinturão e o capacete, transformaram aqueles vulgares e pachorrentos cidadãos em seres determinados a combater as chamas, para lá dos medos e das hesitações quando se tratava de salvar vidas.
O pronto-socorro Bedford tinha sido inaugurado em 1954 e era o orgulho da Corporação. Todos os bombeiros ansiavam integrar a equipa que arrancava nesta viatura para os incêndios.
O motor de seis cilindros a gasolina ronronava baixinho dentro da garagem. O Barata engatou a primeira e aliviou a embraiagem. O carro deu salto em frente levando em debandada a multidão que se acotovelava na frente ao quartel em busca de informações. Mal os homens se instalaram no carro, outro solavanco marcou o arranque a toda a brida, sirene ao vento a anunciar a urgência e a necessidade do caminho livre até Caminha, onde ardia o Convento de Santo António.
A meia encosta do Monte de Santo Antão, ao lado do cemitério de Caminha, este convento albergava uma vasta comunidade de freiras, as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras, que já por lá estavam desde 1898. Pelo meio, escorraçadas pelo anticlericalismo da primeira República, aconteceu uma saída forçada para a vila galega de Tuy e o regresso a Caminha ainda durante os anos vinte do século passado.
O Barata era um condutor destemido e atravessou a Rua dos Pescadores em Caminha, a uma velocidade alucinante, roçando as paredes de tão estreita artéria, desviando-se de carros e carroças como por magia. Os seus companheiros sabiam bem o que ele dizia nestes momentos de emergência “Agarrem-se que isto é para andar”; e todos se seguravam o melhor que podiam, entre os equipamentos de combate a incêndio que enchiam a Bedford.
A meio da Corredoura ultrapassaram um dos carros da Corporação de Caminha e num instante já saltavam em terra para iniciar o combate, que as labaredas já lambiam a fachada do convento. Os lances de escada estavam montados, a bomba a funcionar e o Balau carregava a mangueira escada acima, o Silvino como primeira ajuda, alguns degraus mais abaixo.
- Água p´ra agulheta número dois! – pede o Balau com a voz fanhosa.
- Eiii… vocês, saiam daí! Tem de ir lá para trás – ordena um indivíduo de pêra que todos reconheceram, era o chefe Lino dos Voluntários de Caminha e que acabara de saltar do carro recem chegado.
- Mas aqui é que precisamos de atacar – contrapõe o Armando Ferreira, o mais graduado dos Bombeiros Ancorenses.
- Quem está ao comando sou eu… e aqui fica por nossa conta. Vocês vão defender a capela.
- Vocês não vão conseguir aguentar isto – ainda retorquiu o Armando Ferreira, homem experiente e conhecedor das manhas e da violência que as chamas podem ter se forem bem alimentadas.
Contrariados, porém disciplinados, recolheram as mangueiras, desmontaram as escadas e iniciaram o combate no ponto que lhes foi atribuído.
Ao longo da tarde foram chegando outros bombeiros, de Cerveira, Viana e até os municipais do Porto foram convocados. A população não se fez rogada e uma verdadeira cadeia humana permitiu salvar muitos pertences do convento.
Junto à capela, depois de terem posto em funcionamento a moto-bomba, a água sugada do tanque era despejada pelas agulhetas de forma a conter as chamas que teimavam em aproximar-se da capela.
- Água p’ra agulheta número dois – repetiu o Balau.
- … E p’ra número um, também – respondeu-lhe o Zé do Toneca, enquanto Barata manobrava as alavancas.
Por todo o lado os longos hábitos das freiras esvoaçavam, como um exército de formigas, ora carregando haveres, ora matando a fome e a sede aos combatentes, sob o olhar diligente da madre que tinha uma serrada pronúncia italiana.
Durou toda a noite este combate desigual, onde homens cansados viam as chamas inexoravelmente apoderar-se das memórias de uma comunidade. Pela alvorada, quando foi dado por dominado, pouco mais restava do convento que umas paredes enegrecidas e montes de entulho fumegante… além da capela que escapara incólume.
Como prova de confiança e porque dispunham da melhor moto-bomba, o comandante dos Municipais do Porto, que assumira o comando das operações, encarregou os Bombeiros Ancorenses de coordenar o rescaldo, alimentando as mangueiras de outras Corporações.
Regressaram ao quartel a meio da tarde, vinte e quatro horas após terem sido chamados pelo toque da sirene, silenciosos, exaustos do esforço, desanimados por não terem sido capazes de derrotar o fogo, mas cientes do dever cumprido, briosos de terem contribuído para que a Capela do Convento não fosse consumida pelas chamas e para o bom nome dos Bombeiros Voluntários de Vila Praia de Âncora.



segunda-feira, 7 de abril de 2014

A fome dos invernos longos


Aurora desperta a razão
Nas águas agitadas do mar gélido
Como gigante impondo a vontade
Ao pobre pescador aperta o coração
Por a maresia não fazer sentido
E amarrá-los em terra à mendicidade

Terras a dentro vão em procissão
Casa a casa pedem pão
Arrastam os tamancos pelo caminho
As lajes testemunham a submissão
Homens famintos com o grilhão
De filhos que esperam bucha e carinho

A brisa virou a noroeste
O mar engole a espuma e as mágoas
Retira-se para onde impera
A refrega já não é agreste
Redes, anzóis, velas e masseiras
Vamos ao mar que arribou a primavera

Para trás fica a triste lembrança
A fome e a miséria aplacadas
Com côdeas e caldos magros
O Senhor dos Aflitos lhes dá esperança
A agulha os guiará pelas águas diáfanas
Peixe será ouro nos seus desejos

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Ao cair das vésperas



Naqueles tempos a vida era dura, tanto para os pescadores que por cá ficavam, como para os que se aventuravam na pesca do bacalhau. Partiam para a Terra Nova e Gronelândia no final do inverno, regressando a meados do Outono, dependia da sorte e da habilidade do capitão para encherem mais ou menos depressa os porões soturnos do navio.
O Manuel João, tal como outros jovens da sua idade, agarrou a oportunidade de largar a pesca artesanal onde se ganhava uma côdea, para “ir ao bacalhau”; além disso, quem fizesse sete temporadas de bacalhau, livrava à tropa e à guerra em África.
Para quem sai a primeira vez da sua aldeia natal, tudo é uma aventura e sempre será melhor que receber umas míseras moedas no final de cada maré. Se o mar o permitir, porque de Inverno os frágeis barcos de boca aberta cavalgam rua acima entre o casario, para se furtarem às arremetidas do mar que fustiga o portinho, escavado entre as rochas agrestes do Moureiro e o Forte da Lagarteira..
Acabara de fazer a sua terceira viagem no “Rio Lima”, um barco lento, mas seguro, construído em 1952 pelos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. As condições de vida a bordo, apesar de duras, não se comparavam aos velhos lugres à vela, onde o seu pai e os irmãos mais velhos tinham pescado. Aí sim, era uma vida de escravidão e de perigo constante a pescar nos frágeis dóris, a viverem amontoados em cubículos como animais, a trabalhar perto de vinte horas por dia, sob as inclemências climatéricas do Atlântico Norte.
O “Rio Lima” tinha atracado a meio da manhã na doca de Viana do Castelo. Já lá estava o “Senhor dos Mareantes” e o “S. Ruy”, atracados desde a semana anterior. A roupa sebosa estava ensacada há muito, tal como as bugigangas compradas em St. Johns para a mãe e para as irmãs. Para o pai trazia, como de costume, pacotes de tabaco com filtro. O último banho a bordo libertou-o das escamas, disfarçou o odor a vísceras e a suor, mas não apagou as marcas do cansaço, as mãos gretadas e gastas, a barba hirsuta e o cabelo ensalitrado.
Após da manobra de atracar, cumpridas as formalidades, desembarcou pelo instável portaló ao encontro do abraço sentido dos familiares que o aguardavam no cais. Mais que um reencontro, era o renascer de uma coesão familiar, uma celebração da vida que recomeçava. Era dia de festa, a viagem para casa foi de carro de praça, um luxo reservado para bodas, emergências e para estas ocasiões.
Uma acha de pinheiro no fogão espevitou o fogo inundando a cozinha de aroma resinoso, que o refogado estava pronto de véspera e a cabidela surgiria enquanto contava as peripécias da viagem. Só as vitórias, os lances carregados de bacalhau, as partidas que pregaram aos colegas, as horas intermináveis na escala e salga. Os sustos, as lágrimas, as saudades e o medo não se apregoam, iriam sombrear os rostos felizes da família, que o escutam com um fervor quase religioso.
Depois do almoço saiu com rumo certo, o barbeiro que o expurgou das pilosidades acumuladas em sete meses de mar, vestígios sombrios que importa esquecer até à próxima viagem. No Poipa reencontrou companheiros, leu o jornal, soube as últimas do futebol e das coscuvilhices locais, antes da tesoura e da navalha cumprirem a sua missão. Quando olhou ao espelho não se reconheceu, custava-lhe acreditar que aquele rosto lhe pertencia, tão pálido e exangue, as orelhas penduradas na cabeça estreita, onde o nariz ganhava destaque, tal como um promontório avança mar a dentro.
Aviado do barbeiro, seguiu em direcção ao portinho, lugar que o viu nascer e crescer, onde se juntavam os amigos, onde se trocavam olhares e ditos com as raparigas, onde os homens enchiam as tabernas, nas quais ele já tinha entrada por direito próprio. A tarde correu rápida, talvez a conversa retida durante meses a tenha apressado, a noite cobriu a terra e o mar, despediu-se de cada um para regressar ao lar aquecido pela chama mortiça do fogão, onde o caldo de hortaliça papujava lentamente.
Estavam à sua espera, pois era hábito daquela comunidade cear após as vésperas.
- Por onde andaste meu filho, que se faz tarde.
- Ó mãe, ainda ficou gente na Curraca e no Coxo da Faena.
- Mas o teu pai já está à espera para depois se deitar… Afinal onde é que andaste?
- Fui ao Poipa cortar o cabelo e a barba…
- Graças a Deus…
- … Depois fui para o portinho e estive à conversa com os amigos… o Daniel, o João, o Nel do Côto, o…
- Qual João?
- Da tia Ermelinda… e bebemos umas malgas de vinho novo.
- Vê lá, já não estás habituado e pode fazer-te mal.
- Não se apoquente, minha mãe. Pouco bebi e só demorei mais um bocadinho porque encontrei na esquina da pensão um companheiro de escola e fiquei à conversa. Depois ele seguiu para casa e eu pelo Sol Posto acima… Aqui me tem!
- Quem é esse companheiro de escola? O Camilo?
- Esse ainda não vi. Era o Berto da Nila…
A tigela caiu com fragor no chão, espalhando cacos e caldo em todas as direcções. A cor fugiu das faces rosadas da Lurdes, petrificada de espanto e horror.
- Que foi, mãe? Parece que viu um lobisomem… Conhece o Berto da Nila… onde está o espanto?
- Tens a certeza, meu filho? – Balbucia a Lurdes, procurando o rosário no bolso do avental.
- Tenho, mãe! Então eu não conheço o Berto?! Olhe que fizemos juntos a quarta classe…
- Mas isso não é possível… a Nossa Senhora nos acuda…
- Então qual é o problema? Ele até estava tão bem disposto…
- Virgem Santíssima – gemeu a Lurdes com as lágrimas nos olhos – a sua alma não está tranquila.
- Que está aí a dizer, minha mãe! A sua alma?!...
- Sim, filho… O teu amigo… o Berto da Nila, esteve muito doente, chegaram a levá-lo para o Hospital de Viana, mas mandaram-no de volta para casa… o Berto… coitadinho, foi enterrado ontem…