Coçou a orelha direita e deixou-se ficar
encostado à ombreira da porta que dava para o longo corredor. O inspector
Maurício seguia com olhar as idas e vindas dos elementos da brigada técnica que
recolhiam os vestígios possíveis.
- Raio de sítio para um gajo esticar o
pernil – observa o Cabral espreitando para dentro da sala – Encontraram alguma
coisa?
- Não… e tu?
- É pá, cambada de murcões… ninguém sabe
nada. Não viram o gajo chegar e a sala devia estar fechada.
- Quem é que tem a chave?
- Deve haver uma dúzia de chaves pelo
menos. Desde as gajas da limpeza, aos professores, o segurança… sei lá, são
mais que as mães!
- Vais apurar isso de seguida e
aproveitar para dizer-lhes que não saem daqui até novas ordens. Temos de os
começar a interrogar em seguida… O Ramos deve estar aí a chegar e vêm um ou
dois estagiários para ajudar.
- Ajudar ou estorvar, carago! Sabes bem…
- Deixa-te de coisas, que tu também
foste maçarico… Vai lá saber da questão das chaves e diz ao segurança que venha
ter aqui comigo. – Atalha o inspector da Judiciária.
Dentro da sala um dos técnicos esvaziava
os bolsos ao cadáver que teve de ser virado pois fora encontrado de bruços. Uma
grande mancha de sangue tinha ensopado a camisa de flanela na zona do peito.
- Passa-me a carteira – pede o Inspector
enquanto enfiava umas luvas de látex.
A carteira preta era fina, vulgar, em
material sintético e fechada com velcro. No interior a carta de condução, o
bilhete de identidade, um talão de compras de uma conhecida loja de material
electrónico e um cartão multibanco. Indiferente, voltou a entregar a carteira
que foi fazer companhia aos outros objectos retirados do cadáver e
acondicionados num saco de plástico transparente.
- Foi o senhor que me mandou chamar? –
pergunta um homem fardado no meio do corredor.
- Aaah… o segurança! Sim, quero
perguntar-lhe umas coisas. Não é um interrogatório formal, mas preciso que me elucide
sobre o ambiente aqui na escola.
-Sim senhor, estou à sua disposição.
- Há por aqui algum sítio onde se pode falar…
- Uma das outras salas ou então temos lá
ao fundo uma pequena sala de convívio usada pelos funcionários.
- É longe?
- É ali ao fundo, à esquerda e não deve
estar lá ninguém a esta hora.
- Então vamos lá.
O segurança percorreu o corredor um
passo à frente do inspector que aproveitou para melhor o apreciar. Calças e
blusão da farda cinzentos, um crachá brilhante ao peito com a insígnia da
empresa. Cerca de um metro e oitenta, crânio rapado a disfarçar uma calvície
precoce, não deveria ultrapassar os trinta e cinco anos.
- Então diga-me lá, o homem era
presidente da associação de estudantes?
- Exactamente.
- Mas ele já não é novo!
- Pois não, ele já está na escola há
muitos anos.
- Estou a ver, não ligava nada aos
estudos e a família…
- Não é isso – interrompe o segurança –
ele já está a fazer o terceiro curso.
- Não tinha mais nada que fazer?
- Ele tem uma empresa de alumínios… Acho
que tem um sócio. Não sei bem.
- Sabe o nome da empresa?
- Não sei o nome da firma, mas ele é de
Santa Marta.
- De Penaguião? Tão longe?
- Não, senhor inspector. Estou a
referir-me a Santa Marta de Portuzelo. Aqui perto na estrada para Ponte de
Lima.
- E da chave da sala que me diz?
- Todos os professores que dão aulas
nessa sala têm a chave. Eu tenho outra na portaria e uma no chaveiro central.
- E o pessoal de limpeza?
- É verdade, já me esquecia.
- Hoje de manhã o falecido… tenho aqui
anotado o nome… Exactamente, Jorge Gonçalves! O que eu quero saber é se o viu
entrar?
- Não senhor, pela porta principal não
passou.
- Tem a certeza?
- Absoluta, absoluta… não!
- Porquê?
- Porque houve um momento que fui ao WC
e mais tarde fui ao gabinete do Sr. Ricardo dar-lhe um recado.
- Onde?
- Na secretaria, foram só uns segundos,
mas podia muito bem ter entrado nesse momento e eu não o ter visto.
- Tem alguma ideia do que podia estar a
fazer na escola logo de manhã?
- Que saiba não havia nenhuma reunião
agendada e não faço ideia o que o levou até àquela sala.
- O Jorge Gonçalves tinha lá aulas
habitualmente?
- Ele é de desporto que só usam as salas
novas.
- Explique-me isso que não estou a
perceber.
- Ele é aluno… huum… era aluno do curso
de desporto, que só tem aulas teóricas na parte nova da escola. Posso levá-lo
lá se quiser…
- Mais tarde. Quer dizer que o crime foi
cometido numa das salas antigas.
- Exactamente, senhor inspector.
- Sabe se ele tinha algum problema com
alguém? Um colega ou professor…
- Não lhe sei dizer. Repare, eu pouco
lido com os alunos, apesar de os ver passar todos os dias à minha frente ao
entrarem e à saída. Da maior parte, nem sei os nomes, nem os cursos. Apenas os
conheço de vista…
- Mas este era bem conhecido.
- Claro, já fazia parte da mobília, como
se costuma dizer. Além disso passava muito tempo na associação…
- Que tem instalações na escola…
- Exactamente e bem perto daqui, por
sinal.
- Sim?
- Por trás deste espaço há umas escadas
que levam às duas salas da associação de estudantes.
- E já foi lá alguém ver se estava tudo
normal?
- Quando chamamos a polícia fui lá com
um agente e a porta está fechada.
- Entraram?
- Não senhor…
- Tem as chaves dessa porta?
- Tenho… quero dizer, não! Estão na
portaria.
- Então vá buscá-las para darmos uma
vista de olhos.
Enquanto aguardava, o inspector Maurício
tirou do bolso a caixa das cigarrilhas e meteu uma entre os lábios. Percorreu o
largo corredor para lá e para cá distraidamente, olhando para o campo de jogos
relvado que ocupava todo o espaço traseiro do recinto escola. Voltou a guardar
a cigarrilha enquanto reflectia sobre o que levaria um aluno, que era também
presidente da associação de estudantes a comparecer às 9 da manhã de um dia de
férias numa sala de aulas. Sobre a causa da morte não subsistiam grandes
dúvidas, pois eram visíveis dois golpes profundos no lado esquerdo do peito,
apesar de não terem ainda encontrado a arma do crime. Uma faca bastante fina ou
um estilete tinha-lhe dito o técnico que examinara o cadáver.
- Preciso de um café – resmungou e
dirigiu-se para o bar quando viu o segurança avançar na sua direcção. Deu meia
volta e encaminhou-se para as escadas estreitas que levavam a sede da
associação de estudantes.
Quando o segurança abriu a porta e viram
uma sala que se tinha como iluminação natural a luz que se esgueirava pelos
acanhados postigos posicionados ao nível do jardim. A sede estava a precisar de
uma boa arrumação pensou o inspector ao avançar para a sala do fundo, um misto
de sala de reuniões e gabinete da direcção. Parou à porta ao distinguir um
vulto caído sobre a puída carpete.
- Outro…
- Outro, quê, senhor inspector?
- Outro corpo, carago… Esta merda
vai-nos dar que fazer… Vá lá acima dizer a um dos técnicos que venha cá. Eu
fico por aqui.
Pegou no telemóvel, ligou para o
inspector chefe Peres a comunicar a descoberta e a pedir reforços perante o
avolumar de trabalho que iria ter pela frente.
- Tenha paciência mas de momento não
tenho ninguém para o ir ajudar – dizia-lhe o chefe - Vá-se desenrascando com o
seu pessoal, mais logo, quando tiver gente livre envio-os aí para Viana… Antes
que me esqueça, tenha cuidado…
- Com a imprensa! Já sei, chefe, já sei!
- Ponha esses calões da PSP a trabalhar!
Estão mal habituados, só a passar multas e com o cu alapado na cadeira.
O inspector Maurício sorriu ao pensar
que o Peres passara os últimos quatro anos com o “cu alapado”, como ele dizia, desde
que fora promovido a inspector chefe.
- Se um dia lá chegar, até fico apanhado
só de pensar que tenho de estar o tempo todo a folhear relatórios que nem para
limpar o cu servem – dizia o inspector Maurício aos colegas, quando o tema de
conversa caía nas sempre polémicas promoções e nos louvores atribuídos.
O cadáver encontrado na sala da
associação foi rapidamente identificado como sendo de um aluno de gestão
artística, que também pertencia à direcção da associação de estudantes.
Os agentes Ramos e Cabral tinham-se instalado
em duas salas de aulas e começaram os interrogatórios sob um coro de protestos
dos professores, que se viam impedidos de sair das instalações. Os dois
estagiários desdobravam-se em múltiplas diligências, mais parecendo moços de
recados que agentes de investigação criminal.
O inspector Maurício tivera uma
entrevista com a directora da escola e o director de serviços académicos mas
tinha sido inconclusiva. Ninguém tinha ideia do que tinha acontecido. A
esperança residia nos vestígios que os técnicos estavam a recolher, mas todos
tinham consciência que estavam num espaço utilizado diariamente por centenas de
alunos, professores e funcionários. Nem queria imaginar a quantidade de
impressões digitais que os técnicos de dactiloscopia teriam de analisar.
Depois de engolir no bar da escola uma sanduíche
de fiambre e um sumo, convocou a sua equipa para um pequeno brienfing que teve
a particularidade de se realizar no exterior junto à entrada, de forma a puder
saborear a cigarrilha que passara a manhã a sair e a entrar na caixa.
- Estes gajos estão a procurar
proteger-se uns aos outros.
- Ó Ramos, isso nem parece teu. Então
achas que nos iriam dar pistas que os pudessem incriminar.
- Bem, afinal o que apuraram nos
interrogatórios que efectuaram? – Pergunta o Maurício.
- Ninguém os viu entrar na escola, não
foi Cabral?
- Pois foi… Mas os gajos foram
assassinados há poucas horas… Que é que disse o Dr. Pimenta?
- O exame preliminar aponta o momento do
óbito para um intervalo entre as sete e as oito da manhã… e a família deles
confirma que passaram a noite em casa. A PSP
já encontrou os seus automóveis?
- Ainda não senhor inspector – diz um dos
estagiários – mas o mais novo… aquele que foi encontrado na cave da associação,
tem o carro estacionado à porta de casa.
- Será que o outro o foi buscar?
- Falei com a irmã dele e ela ouviu-o
sair de casa, mas não se apercebeu do barulho de algum automóvel a arrancar.
- Continuem com os interrogatórios que eu
vou falar com o comissário da polícia. Vocês – virando-se para os estagiários -
vão passar a pente fino as imediações da escola. Já vi uma estação dos correios
e do outro lado há um bairro. Deve haver algum café ou mercearias… Interroguem
os comerciantes e se encontrarem algo relacionado com o caso, chamem de
imediato o Ramos ou o Cabral. Entendido?
- Resumindo, andamos às aranhas…
concluiu o inspector chefe Peres, recostando-se na cadeira.
- Às aranhas não andamos, mas também não
temos muito a que nos agarrar… – responde o inspector Maurício, sabendo que não
adianta nada argumentar com o chefe.
- Bem… recebi um telefonema relacionado
com o caso que tem de ser levado em consideração… Assunto sob reserva…
- Mau…
- Temos os Serviços de Informação
metidos no assunto.
- Qual deles? O SIS?
- Exactamente. O tipo da associação de estudantes
era agente deles.
- O presidente?
- Sim – Admite o inspector-chefe
soltando um longo suspiro.
- E o outro?
- Não tinha qualquer ligação com essa
gente.
- Então vamos abandonar a investigação?
- Não, eles estão igualmente
preocupados, porque não encontram ligação com as tarefas desse agente… pelo que
percebi ele nem sequer tinha nada entre mãos, não tinha qualquer dossier à sua
responsabilidade.
- Limitava-se a vigiar..
- A coçá-los, diz muito bem… e nós a
descontar para esses inúteis… Agora que pretende fazer?
- Regresso a Viana após falar com o dr.
Pimenta e com alguém do laboratório.
- Mantenha-me informado e tenha cuidado
com…
- Os jornalistas! – Rematou o inspector
Maurício, que conhecia de ginjeira o discurso do chefe.
- Isto é pólvora, Maurício! Se cai nas
malhas desses gajos, pfff…
Reunidos à volta da mesa onde tomavam o
pequeno-almoço, os investigadores ouviam o resumo feito pelo inspector
Maurício.
- O patologista diz que foi com uma faca
de escalar peixe ou algo semelhante o que nos abre outras possibilidades;
podemos estar a lidar com um pescador ou pelo menos alguém que tem acesso a
esse tipo de facas, em casa ou no trabalho…
- Ó pá… e o motivo carago?... não temos
um motivo que justifique estes assassinatos – enerva-se o Cabral – A não ser
que fossem paneleiros e viessem…
- Deixa-te disso! Já investigamos por
esse lado e nada. É provável que hoje ou amanhã tenhamos a listagem com os
telefonemas deles.
Toca um telemóvel, o inspector Maurício
olha para o visor, franze o sobrolho, atende com um “sim” expectante.
- O próprio, não incomoda nada… diga
comissário.
- …
- Vou imediatamente… Isso é para norte?
- …
- Quinze quilómetros, Sereia da Gelfa… logo
a seguir, à esquerda – repete o homem da Judiciária, desligando o telefone.
- Encontraram o automóvel do Jorge
Gonçalves abandonado, junto ao mar, na praia da Gelfa.
- Eu sei onde fica – diz um dos
estagiários – é uma zona isolada, tem um pequeno castelo e um sanatório para
malucos, mas acho que está fechado.
- Eu vou lá ver, vocês continuam com os trabalhos
em curso.
Estacionou quando o agente da GNR o
mandou parar e dirigiu-se para o bosque de austrálias que invadiam as dunas
litorais. Para trás ficara o Forte do Cão, umas ruínas do século dezassete a
precisarem de intervenção sempre adiada pela razão tão velha como a
nacionalidade, a falta de verbas. Ao longe avistava-se uma povoação subindo a
encosta do monte e uma imensa língua de areia dourada, a praia de Âncora.
Uma área tinha sido delimitada com fita
plástica multicolor e vários agentes da GNR observavam os trabalhos de dois
colegas do núcleo de investigação criminal. Depois de feitas as apresentações
informaram-no que o automóvel fora encontrado aberto, com as chaves na ignição
e sido alvo de limpeza de impressões digitais. Volante, alavanca de
velocidades, manípulos de portas e outros pontos tinham sido limpos antes de o
abandonarem, o que revelava a precaução consciente dos criminosos. Era ponto
assente que estavam a lidar com mais de uma pessoa porque o lado direito do
carro também tinha sido limpo. Dois, pelo menos, provavelmente três, porque
alguém os deve ter vindo recolher àquele ponto ermo da Praia da Gelfa.
- Já vem a caminho um reboque para levar
o automóvel ao laboratório. Façam-me o favor de verificar nas imediações se há
algo de interesse. – pediu o inspector Maurício.
- Já demos uma volta por aí, mas vamos
repetir com mais calma – informa o sargento da GNR – Amílcar e Pereira vão com
o cabo Presa para o norte, por ali; os outros vão para aquele lado. Atenção,
qualquer indício deve ser sinalizado…
- Já agora… - interrompe o inspector –
prestem atenção a alguma situação de solo revolvido. Deve estar tudo coberto de
folhas secas, não é fácil distinguir, mas pode ser importante.
Entre duas garfadas de esparguete atende
o telemóvel, a Rosa saía de serviço no Hospital de S. João à meia-noite e não
lhe agradava passar a noite sozinha. Não teria outro remédio…
- Sei lá, isto está complicado. Talvez
amanhã… Tenho uma chamada da directoria em espera, desculpa… um beijo.
Do laboratório informaram-no que o
automóvel encontrado poucos indícios revelava, mas um dos cães treinado na
detecção de explosivos sinalizou claramente um transporte recente na bagageira.
- Andaram a transportar explosivos no
carro.
- Encontraram vestígios? – Perguntou o
Ramos sem levantar o olhar da costeleta de novilho que lhe enchia o prato.
- Foi o cão que detectou o cheiro.
- Dois cabrões esticados! Um deles era
bufo na escola! Agora um carro que transporta explosivos… só nos falta dar de
caras com uns gajos da ETA – resmunga o Cabral com a habitual linguagem de
calão da Ribeira, mais propriamente da Cantareira.
- Já pensei nisso e temos que abordar a
caso também por esse prisma, mas agora vamos apanhar com o SIS em cima… de
certeza. O chefe já lhes deve ter telefonado.
- Então amanhã temos esses maricões a
meter o nariz nos nossos cus!
- Tenho de ir ver o e-mail que o Dr.
Pimenta me enviou com os dados preliminares da perícia ao automóvel. Aguentem
aqui, vou ao quarto ligar o portátil e já venho.
O relatório revelou-se pouco
esclarecedor. Na bagageira, onde o cão tinha detectado o odor de explosivos
foram encontrados alguns grãos de areia grosseira e terra com elevados níveis
de azoto.
- Provavelmente puseram um plástico a
cobrir o fundo do carro e ao retirarem-no caiu um pouco de terra. Eles estão a
fazer análises comparativas para ver se detectam a região de origem.
- Inspector – começa um dos estagiários,
algo acanhado – ocorreu-me uma ideia…
- Diga, diga…
- Azoto é um fertilizante, um adubo e há
zonas onde misturam areia na terra para a tomar mais macia, melhor, menos
compacta e mais apropriada para certas culturas.
- Está a falar-nos de terrenos
agrícolas?
- Humm… Exactamente, inspector. Estou a
falar de terrenos de cultura intensiva. Possivelmente estufas…
- Onde?
- Talvez na zona da Póvoa de Varzim.
- Porquê na Póvoa? Pode ser noutro lado
qualquer!
- Poder, pode… Mas na zona da Póvoa é
vulgar misturar areia grossa na terra e no relatório falam de “areia grossa”.
Mais, na Póvoa produzem hortícolas que precisam de muito azoto para se
desenvolver. Não fala de níveis elevados de outros fertilizantes, apenas azoto.
- Bem pensado, vale a pena investigar.
- É pá onde é que aprendeste isso da
agricultura? – Pergunta o Ramos intrigado.
- Os meus pais são comerciantes, mas os
meus tios e os meus avós são agricultores… na Apúlia.
- Já que tens ligações à zona e ao meio
vais auxiliar o Ramos a averiguar se há alguma conexão entre as vítimas e a
zona da Póvoa.
- Sente-se e conte-me como é que arrumou
o caso de Viana – convidou o inspector chefe, fechando a pasta que tinha à sua
frente.
- Um caso complexo. Nem faz ideia das
voltas que aquilo levou… Quem diria!
- Faça-me um resumo. Os pormenores ficam
para o relatório.
- A chave estava nos grãos de areia e
terra encontrados na mala do carro. Um dos nossos estagiários estabeleceu
ligação com a zona da Póvoa de Varzim que coincidia com a morada da namorada do
Jorge Guimarães e apurou-se que ela possuía várias estufas em A-Ver-O-Mar, não
sei se sabe onde…
-Eu sei, continue!
- Ao princípio refugiou-se na choradeira
do costume, mas quando recolhemos uma amostra da terra das estufas, falamos dos
explosivos e de levar lá o cão para farejar… abriu-se toda! Atirou com as
culpas para o namorado falecido, que a convencera a enterrar uns bidões
plásticos, que de início ela pensara que era droga, mas que ele lhe mostrara
que tinham apenas explosivos para serem usados pelos pescadores das traineiras.
Algo inofensivo, no dizer dela.
- Para a pesca da sardinha?
- Sim… Principalmente para a sardinha.
Parece-me que também se usa para outros peixes, desde que estejam em cardume. Fazem um
cerco com as redes, atiram o explosivo lá para o meio e o peixe ou morre na
explosão ou foge e vai ao encontro da rede. Mas eu de pesca… pouco sei. O que sabemos
agora é que o tipo da associação de estudantes alem de ser agente do SIS, contrabandeava
explosivos que comprava numa empresa da Póvoa de Lanhoso. Também já os
entalamos, porque aquilo era uma vigarice pegada… Parecia um supermercado de
material explosivo. Amonite, gelamonite, goma2, havia de tudo! Continuando… Depois
enterrava o material nas estufas da namorada, tudo acondicionado dentro de uns
bidões plásticos herméticos e vendia a retalho a alguns mestres de traineiras
de Viana, da Póvoa e principalmente de espanhóis de Vigo e de outros portos da Galiza.
O problema é que o tipo além de vender ainda quis fazer chantagem com um dos armadores,
um tal Gallardo de Pontevedra, quando se apercebeu que o tipo revendia parte do
material a outros e que acabavam por se perder não se sabe bem onde.
- País Basco? – Pergunta o inspector
Chefe Peres.
- Não sabemos… É possível. O Jorge
Gonçalves queria os contactos do Gallardo para fazer directamente o negócio ou
ameaçava-o acusar perante a polícia espanhola de fornecedor dos terroristas.
- Que filho da mãe…
- O que ele não sabia é que o Gallardo é
cunhado de um professor da escola e lhe montou uma armadilha ao marcar…
- O professor? – Interrompe o inspector
chefe Peres.
- Bem… agora atiram as culpas um para o
outro. O mais provável é que o professor soubesse que era uma armadilha, mas
provavelmente pensou que o cunhado apenas queria meter um susto aos dois
rapazes. Foi o professor que abriu uma porta de emergência nas traseiras, perto
da sede da associação de estudantes, ao espanhol e mais tarde aos outros dois
que foram habilmente separados e assassinados.
- Só não percebo porque é que o outro
rapaz da associação foi ao tal encontro, se efectivamente não tinha qualquer
participação no negócio dos explosivos.
- O Jorge Gonçalves levou o colega da
Associação por segurança. Devia pressentir que o Gallardo era perigoso. Está
detido em Pontevedra e o juiz de instrução já emitiu o respectivo pedido de extradição.
- E como descobriram o professor?
- Pelas impressões digitais deixadas na
barra de abertura da porta de emergência. O normal seria encontrar impressões
do pessoal auxiliar e dos seguranças, não de um professor. A partir do momento
que detectamos o relacionamento familiar com o Gallardo foi simples pôr o melro
a cantar. Por algum motivo ele era professor de música…