Naqueles tempos a vida era dura, tanto para os pescadores que
por cá ficavam, como para os que se aventuravam na pesca do bacalhau. Partiam
para a Terra Nova e Gronelândia no final do inverno, regressando a meados do
Outono, dependia da sorte e da habilidade do capitão para encherem mais ou
menos depressa os porões soturnos do navio.
O Manuel João, tal como outros jovens da sua idade, agarrou
a oportunidade de largar a pesca artesanal onde se ganhava uma côdea, para “ir
ao bacalhau”; além disso, quem fizesse sete temporadas de bacalhau, livrava à
tropa e à guerra em África.
Para quem sai a primeira vez da sua aldeia natal, tudo é uma
aventura e sempre será melhor que receber umas míseras moedas no final de cada
maré. Se o mar o permitir, porque de Inverno os frágeis barcos de boca aberta
cavalgam rua acima entre o casario, para se furtarem às arremetidas do mar que
fustiga o portinho, escavado entre as rochas agrestes do Moureiro e o Forte da
Lagarteira..
Acabara de fazer a sua terceira viagem no “Rio Lima”, um
barco lento, mas seguro, construído em 1952 pelos Estaleiros Navais de Viana do
Castelo. As condições de vida a bordo, apesar de duras, não se comparavam aos
velhos lugres à vela, onde o seu pai e os irmãos mais velhos tinham pescado. Aí
sim, era uma vida de escravidão e de perigo constante a pescar nos frágeis dóris,
a viverem amontoados em cubículos como animais, a trabalhar perto de vinte
horas por dia, sob as inclemências climatéricas do Atlântico Norte.
O “Rio Lima” tinha atracado a meio da manhã na doca de Viana
do Castelo. Já lá estava o “Senhor dos Mareantes” e o “S. Ruy”, atracados desde
a semana anterior. A roupa sebosa estava ensacada há muito, tal como as
bugigangas compradas em St. Johns para a mãe e para as irmãs. Para o pai
trazia, como de costume, pacotes de tabaco com filtro. O último banho a bordo libertou-o
das escamas, disfarçou o odor a vísceras e a suor, mas não apagou as marcas do
cansaço, as mãos gretadas e gastas, a barba hirsuta e o cabelo ensalitrado.
Após da manobra de atracar, cumpridas as formalidades,
desembarcou pelo instável portaló ao encontro do abraço sentido dos familiares
que o aguardavam no cais. Mais que um reencontro, era o renascer de uma coesão
familiar, uma celebração da vida que recomeçava. Era dia de festa, a viagem
para casa foi de carro de praça, um luxo reservado para bodas, emergências e para
estas ocasiões.
Uma acha de pinheiro no fogão espevitou o fogo inundando a
cozinha de aroma resinoso, que o refogado estava pronto de véspera e a cabidela
surgiria enquanto contava as peripécias da viagem. Só as vitórias, os lances
carregados de bacalhau, as partidas que pregaram aos colegas, as horas
intermináveis na escala e salga. Os sustos, as lágrimas, as saudades e o medo
não se apregoam, iriam sombrear os rostos felizes da família, que o escutam com
um fervor quase religioso.
Depois do almoço saiu com rumo certo, o barbeiro que o
expurgou das pilosidades acumuladas em sete meses de mar, vestígios sombrios
que importa esquecer até à próxima viagem. No Poipa reencontrou companheiros,
leu o jornal, soube as últimas do futebol e das coscuvilhices locais, antes da
tesoura e da navalha cumprirem a sua missão. Quando olhou ao espelho não se
reconheceu, custava-lhe acreditar que aquele rosto lhe pertencia, tão pálido e
exangue, as orelhas penduradas na cabeça estreita, onde o nariz ganhava destaque,
tal como um promontório avança mar a dentro.
Aviado do barbeiro, seguiu em direcção ao portinho, lugar
que o viu nascer e crescer, onde se juntavam os amigos, onde se trocavam
olhares e ditos com as raparigas, onde os homens enchiam as tabernas, nas quais
ele já tinha entrada por direito próprio. A tarde correu rápida, talvez a
conversa retida durante meses a tenha apressado, a noite cobriu a terra e o mar,
despediu-se de cada um para regressar ao lar aquecido pela chama mortiça do
fogão, onde o caldo de hortaliça papujava lentamente.
Estavam à sua espera, pois era hábito daquela comunidade cear
após as vésperas.
- Por onde andaste meu filho, que se faz tarde.
- Ó mãe, ainda ficou gente na Curraca e no Coxo da Faena.
- Mas o teu pai já está à espera para depois se deitar…
Afinal onde é que andaste?
- Fui ao Poipa cortar o cabelo e a barba…
- Graças a Deus…
- … Depois fui para o portinho e estive à conversa com os
amigos… o Daniel, o João, o Nel do Côto, o…
- Qual João?
- Da tia Ermelinda… e bebemos umas malgas de vinho novo.
- Vê lá, já não estás habituado e pode fazer-te mal.
- Não se apoquente, minha mãe. Pouco bebi e só demorei mais
um bocadinho porque encontrei na esquina da pensão um companheiro de escola e fiquei
à conversa. Depois ele seguiu para casa e eu pelo Sol Posto acima… Aqui me tem!
- Quem é esse companheiro de escola? O Camilo?
- Esse ainda não vi. Era o Berto da Nila…
A tigela caiu com fragor no chão, espalhando cacos e caldo
em todas as direcções. A cor fugiu das faces rosadas da Lurdes, petrificada de
espanto e horror.
- Que foi, mãe? Parece que viu um lobisomem… Conhece o Berto
da Nila… onde está o espanto?
- Tens a certeza, meu filho? – Balbucia a Lurdes, procurando
o rosário no bolso do avental.
- Tenho, mãe! Então eu não conheço o Berto?! Olhe que
fizemos juntos a quarta classe…
- Mas isso não é possível… a Nossa Senhora nos acuda…
- Então qual é o problema? Ele até estava tão bem disposto…
- Virgem Santíssima – gemeu a Lurdes com as lágrimas nos
olhos – a sua alma não está tranquila.
- Que está aí a dizer, minha mãe! A sua alma?!...
- Sim, filho… O teu amigo… o Berto da Nila, esteve muito
doente, chegaram a levá-lo para o Hospital de Viana, mas mandaram-no de volta
para casa… o Berto… coitadinho, foi enterrado ontem…